Ethmar Filho - Vícius de Mais
Ethmar Filho - Atualizado em 23/08/2021 18:17
O formato e o conteúdo musical da Bossa Nova — melodia, harmonia, batida do violão, arranjos originais, instrumentação e o jeito próprio de cantar — já determinariam uma grande revolução artística, tanto no Brasil como no mundo, mas as letras, compostas por letristas e poetas que conheciam bem e moravam no Rio de Janeiro nos chamados “Anos Dourados”, que também revolucionariam a forma de se expressar a respeito do amor e de outras coisas simples, diriam muito sobre a atmosfera política e social do Brasil entre os anos de 1950 e 1964. A Bossa apresentava uma leveza em suas letras, que os jovens brasileiros precisavam, depois de anos de samba-canção e boleros tristes traduzidos do Espanhol, tais como: “Estou perdido / Ele não me ama / Ele nunca me disse / E agora estou sozinho no mundo”. Um dos maiores sucessos de 1952 foi “Ninguém me ama”, do jornalista notívago Antônio Maria: “Ninguém me ama / Ninguém me quer / Ninguém me chama / De meu amor. A vida passa / E, eu, sem ninguém / E quem me abraça / Não me quer bem”. E assim por diante.
Era uma coisa muito melancólica! O novo conceito, trazido pela Bossa Nova, de “O Amor, O Sorriso e A Flor”, caiu como uma brisa fresca do mar naquela juventude. Porém, já nos anos sessenta, quando a Bossa começa a ganhar o mundo, algumas músicas faziam tanto sucesso que necessitavam de versões, para que a indústria fonográfica pudesse colocá-las nas vozes de outros cantores que faziam sucesso em seus países. A primeira dessas versões seria gravada nos Estados Unidos, com João Gilberto, o saxofonista norte-americano Stan Getz, Astrud Gilberto, mulher do João, que estava casualmente no estúdio acompanhando o marido, o autor Tom Jobim, os músicos e o produtor Creed Taylor. Na sessão original de gravação do disco que se chamaria “Getz / Gilberto”, João Gilberto ambientou Stan Getz na elasticidade lírica da Bossa Nova, uma vez que o Stan já apresentava uma certa “bossa” em seu instrumento. A esposa de João, Astrud Gilberto, também cantou. A versão original de “The Girl From Ipanema” apresentava ambas as vozes, a voz do João e a voz da Astrud, mas os editores do projeto, visionariamente, eliminaram a parte do João, tornando a música mais curta (mais comercial e mais fácil de ser absorvida pelas rádios), lançando a pequena voz de Astrud Gilberto para milhões no mundo inteiro. O LP “Getz / Gilberto” foi lançado logo depois e continua sendo o maior registro de Bossa Nova na história norte-americana e mundial, com a versão para a língua inglesa feita por Norman Gimbel:
“The Girl From Ipanema” (Versão para o Inglês de Norman Gimbel)
“Tall and tan and young and lovely / The girl from Ipanema goes walking /And when she passes, each one she passes goes "a-a-ah! " / When she walks she's like a samba that /Swings so cool and sways so gentle
That when she passes, each one she passes goes "a-a-ah! "
Oh, but I watch her so sadly / How can I tell her I love her? / Yes, I would give my heart gladly
But each day when she walks to the sea / She looks straight ahead not at me
Tall and tan and young and lovely /The girl from Ipanema goes walking / And when she passes I smile, but she doesn't see / She just doesn't see / No she doesn't see”.
 
“A garota de Ipanema” (Tradução da versão para o Português)
“Alta e bronzeada e jovem e adorável / A garota de Ipanema vai andando /E quando ela passa, cada um por quem ela passa faz "aa-ah! "/ Quando ela entra, ela é como um samba que
Balança tão legal e tão suave balança / Que quando ela passa, cada um por quem ela passa faz "aa-ah! "
Ah, mas eu a vejo tão tristemente. / Como posso dizer a ela que a amo? / Sim, eu daria meu coração alegremente. / Mas todos os dias quando ela caminha para o mar / Olha em frente, não para mim.
Alta e bronzeada e jovem e adorável / A garota de Ipanema vai andando /E quando ela passa eu sorrio, mas ela não vê. / Ela simplesmente não vê / Não, ela não vê”.
A letra que Vinícius de Moraes compôs para a música de Tom Jobim descreve o olhar de um homem mais velho, da varanda do Bar Veloso, em Ipanema, direcionado ao andar de uma mulher muito mais jovem, imaginando, talvez, que a menina esteja além do seu alcance. Este é um tema recorrente na poesia mundial e, principalmente, na poesia de Vinícius. Notadamente, essa poesia quase acaba distorcida na tradução para o idioma inglês. O ritmo da letra é ruim. Se você cantar “Tall and tan and young and lovely (Alta, bronzeada, jovem e adorável””, tudo funciona de uma forma muito dura, soando como numa marcha militar. Já a letra de Vinicius, “Olha que coisa mais linda / Mais cheia de graça ...”, é muito diferente; é lânguido, tem bossa, é irregular. O ritmo da letra é deslocado. Tem a extraordinária mobilidade da Garota que passa por eles, imitando o seu andar. Isso também é possível ser observado em todas as letras de Vinicius — elas se baseiam na maneira como o português é falado, de acordo com a sonoridade carioca; com síncopes rítmicas e naturais. Cantar esse tipo de música com um vozeirão soaria mal. A Bossa Nova deve ser cantada como se fosse falada, assim como João Gilberto. Dessa forma soa íntimo, informal e conversacional. A tradução, ao pé da letra, para o inglês, da letra de Vinícius de Moraes seria o ideal, porém não caberia na métrica:
“Garota de Ipanema – The Girl from Ipanema” (Tradução da letra original para o Inglês)
“Look at that beautiful thing / More full of grace / She is the girl, that comes and that passes
In a sweet swinging on the way to the sea / Girl of the gold body / Of the sun of Ipanema
Yours balanced is more than a poem / It is the most beatiful thing that I already saw to pass / Ah! Because everything is so sad / Ah! Because I am so alone / Ah! The beauty that exists
The beauty that is not alone mine / And also passes alone
Ah! if she knew that when she passes / The whole world is filled of grace
And becomes more beautiful / Because of the love...”
Os amantes brasileiros da poesia estão familiarizados com algumas das criações iniciais de Vinicius de Moraes. Um dos seus sonetos descreve a fidelidade dessa mesma forma, referindo-se ao amor... “que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure”. Muitas vezes, você ouve isso lido em casamentos ou declamado em bares. Mas é a letra da sua música que se tornou a essência da Bossa Nova. João Gilberto disse que a Bossa Nova não trata da tristeza. Ela tem, sim, um “um toque de tristeza”, usado como uma espécie de tempero humano. Vinicius também captura isso muito bem na música “Insensatez”, mais conhecida, mundialmente, em sua versão para o inglês, composta por Ray Gilbert, como “How Insensitive”. E aí há que se interpretar que ser insensato é uma coisa, e ser insensível, é outra. Ele, Vinícius, descreve essa doce relação do amor com a tristeza a partir de uma leve atribuição de culpa, pelo término da relação, ao (à) parceiro (a), chamando-o (a) docemente, não de traidor ou até mesmo de insensível, mas de insensato, enquanto Ray, ao inverter o interlocutor, queixa-se de ele mesmo ter acabado com a relação. Vinícius flexibiliza o gênero, Ray usa o pronome (she-ela), fechando a questão na direção homem/mulher, enquanto Vinícius a deixa em aberto. Vinícius é Vinícius, doces Vícius demais, em Vinícius de Moraes.
Maestro Ethmar Filho – Mestre em Cognição e Linguagem, regente de corais e de orquestras sinfônicas há 25 anos

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