Arthur Soffiati - O pioneirismo modernista de Di Cavalcanti
Arthur Soffiati - Atualizado em 23/08/2021 17:49
Seu nome completo é Emiliano Augusto Cavalcanti de Albuquerque, encurtado para Di Cavalcanti apenas como nome artístico. Nascido em 1897 em família tradicional de Pernambuco, estudou piano e começou a trabalhar como ilustrador em 1914 em “Fon-Fon”, famosa revista da primeira metade do século XX em que despontava principalmente o grande desenhista J. Carlos. Di começou nas artes como ilustrador de revistas e livros, como mostra Ana Paula Cavalcanti Simioni [“Di Cavalcanti ilustrador: trajetória de um jovem artista gráfico na imprensa (1914-1922)”. São Paulo: Sumaré, 2002].
Era muito difícil, naquela época, distinguir com clareza a diferença entre um artista tradicional e um modernista. Mesmo os modernistas começaram suas carreiras como parnasianos e simbolistas. É o caso de Di Cavalcanti. Simioni comenta: “Graças ao apadrinhamento de Bilac e às relações que este lhe proporciona, consegue empregos, amigos, e expor duas vezes os seus trabalhos [...] Nesse momento ocorrem várias parcerias entre artistas plásticos e escritores (entre elas as de Di e Oswald, e as de Di e Guilherme de Almeida) e delas resultam vários trabalhos conjuntos.”
Em 1916, Di Cavalcanti se transferiu para São Paulo e passou a desenhar para as revistas “A Cigarra” e “O Pirralho”. Matriculou-se na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e iniciou sua atividade de pintor no ateliê do pintor impressionistaGeorge Fischer. Sua carreira não foi diferente de muitos nomes modernistas: nascido em família com posses, embora não fosse rico, aproximou-se de intelectuais desejosos de renovação tendo antes contatos com artistas tradicionais.
Em 1917, fez sua primeira exposição individual nas dependências de “A Cigarra”, mostrando suas caricaturas. A redação noticiou sua mostra: “Inaugurou-se numa das salas da redação de ‘A Cigarra’ a exposição de caricaturas do nosso companheiro de trabalho Emiliano de Albuquerque — Di, que reparte conosco a sua atividade, deve estar satisfeito com o êxito da sua exposição, que tem sido bastante apreciada. Ao fino artista do cinzel e do lápis enviamos os nossos parabéns sinceros, de envolta com votos que fazemos, de mil e uma prosperidades na carreira artística que com tanto gosto abraçou. Parabéns ao Di”. (Primeira exposição de Di Cavalcanti em S. Paulo, 1917. “O Pirralho”, 20 de abril de 1917. Apud. AMARAL Aracy. Artes plásticas na Semana de 22, 4ª edição. São Paulo: Perspectiva, 1979).
Até então, Di Cavalcanti não era mais conhecido que J. Carlos, Raul Pederneiras e K. Lixto. Além de desenhista, Pederneiras era pintor e participou de exposições coletivas em 1905, 1907 e 1909. A exposição de Di Cavalcanti ganhou projeção a posteriori, em vista de ter participado da Semana de Arte Moderna e de ter se tornado pintor famoso. Aracy Amaral ressalta que o desenho de Di já revelava tendência cubista, reduzindo as figuras a linhas básicas, como numa caricatura de Caio Prado publicada em “O Pirralho” em 1917. Contudo, sua primeira exposição não causará a polêmica que a exposição de Anita Malfatti provocou no mesmo ano. Diriam os estudiosos que faltou a Di uma crítica negativa de Monteiro Lobato, como sucedeu a Anita. Mas isso fica no campo das suposições.
Atribui-se também a Di Cavalcanti a idealização da Semana de Arte Moderna. A história foi mais complexa, não se resumindo ao fiat de uma pessoa. Em 1920, Di passou alguns meses no Rio de Janeiro, sua cidade natal. Voltou de lá com alguns quadros e a série de desenhos que ele intitulou “Fantoches da Meia-Noite”. Esses desenhos foram expostos na famosa livraria “O Livro”, de Jacinto Silva, em 1921. Em novembro deste ano, o dono da livraria pediu a Di Cavalcanti que reunisse os jovens escritores e artistas de São Paulo para um encontro com Graça Aranha, nome consagrado na literatura e que visitava São Paulo. Graça, então, encontrou-se com Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Menotti Del Picchia, prometendo aproximar os modernistas de São Paulo aos do Rio de Janeiro. Eles já haviam se aproximado em outubro de 1921, quando Mário de Andrade e Armando Pamplona entraram em contato com Ribeiro Couto, Manuel Bandeira, Renato de Almeida, Villa-Lobos, Álvaro Moreira e Ronald de Carvalho.
Mário de Andrade negou que tivesse dado a ideia de promover um evento como a Semana. Graça Aranha era amigo do paulista Paulo Prado, homem de grande cultura. Graça apresentou Di Cavalcanti a ele. Desse encontro, teria nascido a sugestão de promover uma reunião de intelectuais e artistas renovadores em São Paulo. Mais ainda, teria sido de Marinette Prado, mulher de Paulo, a ideia de realizar um evento como a Semana de Deauville, um evento da elegância francesa.
Ideia puxa ideia, e Di Cavalcanti teria sugerido aos jovens paulistas um evento que marcasse uma clara ruptura com escritores e artistas tradicionais. No Rio de Janeiro, um evento como esse não seria necessário, pois os antigos conviviam já com os novos há bastante tempo. Além de desnecessário, não teria muito cabimento. Aliás, não havia uma fronteira clara entre ambos. Como dirá Ruy Castro, no Rio de Janeiro, a Modernidade se manifestava de forma diversificada (“Metrópole à Beira-Mar”. São Paulo: Companhia das Letras, 2019).
Mas, para um movimento econômico, social, político e estético, não basta uma ideia. É preciso que exista um clima favorável para que ela vingue. Talvez no Rio de Janeiro, uma Semana de Arte Moderna fosse chover no molhado. Ela poderia não provocar o estardalhaço que causou em São Paulo. Por outro lado, se a Semana ocorresse em São Paulo logo após as exposições de Lasar Segall em 1913, talvez também não vingasse no nascedouro ou na realização. Não havia ainda intelectuais preparados para aderirem à ideia. Mas estamos no plano das conjecturas, usando a palavra ‘talvez’. Enfim, não existia clima, assim como esse clima abundava no Rio de Janeiro. Em São Paulo, a economia cafeeira e a industrialização desenvolveram-se bastante durante a Segunda Guerra Mundial (1914-1918), com a grande movimentação de imigrantes. O ambiente intelectual, contudo, era ainda acanhado, provinciano e elitista. Por outro lado, o Rio de Janeiro era uma cidade cosmopolita procurada por artistas dos outros estados do Brasil e de outros países. Parecia incabível um movimento de ruptura quando a ruptura podia ser manifestada por artistas individualmente, como foram os casos de Villa-Lobos, Manuel Bandeira, Ronald de Carvalho e, no plano do comportamento, os de Júlia Lopes de Almeida e Gilka Machado.
Cabe ressaltar algo mais que o simples clima: a estrutura econômico-social do Rio de Janeiro e de São Paulo. Ruy Castro cita muitos nomes em seu livro. Poucos sobreviveram a sua época. A maioria foi sepultada com ela. Transcenderam seu tempo Manuel Bandeira, Villa-Lobos, Ribeiro Couto (que era paulista), Alceu de Amoroso Lima e, com boa vontade, Ronald de Carvalho. A legião de outros nomes só é conhecida por estudiosos.
Em São Paulo também aconteceu o mesmo. Os nomes mais conhecidos são os de Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, Anita Malfatti e Tarsila do Amaral. Mário de Andrade transcendeu seu tempo como nenhum outro por conta das suas inquietações e do papel que exerceu enquanto criador, pensador de cultura e organizador. Respeitado o peso das estruturas econômico-sociais, deve-se considerar a capacidade individual. Só assim, podemos explicar a permanência de Homero, Dante, Leonardo da Vinci, Goya, Mozart, Beethoven, Darwin, Marx e outros. O fim de uma era não soterra por completo os indivíduos que se expressaram de forma genial em seu tempo e continuam dizendo algo para os tempos ulteriores.
Di Cavalcati é um desses nomes. Ele é mais conhecido atualmente que J. Carlos, K. Lixto, Júlia Lopes de Almeida etc. Talvez não o fosse caso sua obra se limitasse aos trabalhos apresentados na exposição de 1917, a não ser por pesquisadores. Ele também participou ativamente da Semana de Arte Moderna, a começar pela capa do programa e da exposição do evento. Além disso, ele expôs os trabalhos ”Ao pé da cruz - painel para capela”, “O homem do mar”, “Café turco I e II”, “Retrato”, “A dúvida”, “Intimidade I e II”, “Ilustração para um livro”, “Coqueteria”, “Boêmios” e “A piedade da inerte”.
Em 1923, ele parte para Paris e frequenta a Académie Ranson. Faz contatos com Pablo Picasso, Georges Braque, Fernand Léger e Henri Matisse, dos quais recebeu influências sem imitá-los. De volta ao Brasil, dedicou-se a pintar temas das periferias urbanas, como favelas e prostíbulos. Ficou conhecido como pintor das mulatas.

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