Marcelo Lessa: Os umbigos de Habermas
- Atualizado em 21/04/2021 17:08
Jürgen Habermas, filósofo e sociólogo alemão contemporâneo, com sua Teoria da Ação Comunicativa, pode ajudar a compreender o quão difícil é tirar um consenso quando se dispõe a compartilhar decisões acerca das medidas a serem tomadas como forma de enfrentar a pandemia de Covid-19.
É que, nas reuniões do Gabinete de Crise, tem ficado mais evidentes as ações estratégicas, do que as ações comunicativas. A ação comunicativa, de acordo com o pensamento habermasiano, é a comunicação propriamente dita, sem nenhuma intenção dissimulada. É a ação voltada para o entendimento. Já a ação estratégica é a comunicação manipulada, o discurso insincero, que beira o estelionato, ainda que possa estar voltada para um fim legítimo. Tem sido emblemático o fato de que, logo após a exposição minuciosa de argumentos técnicos, embasados na ciência médica e na ciência matemática (ainda que se possa discordar técnica e racionalmente da primeira, porque uma ciência humana, da segunda isto não é possível, pois é uma ciência exata!), por parte de quem traz na biografia mais do que qualquer autoridade política de ocasião, mas uma inquestionável autoridade acadêmica, seguem-se falas leigas, às vezes com referências a terceiros, às vezes com referências a meros palpites reverberados pelas redes sociais, na busca de desqualificar o discurso afinado e endossado pelas principais comunidades médicas e entidades científicas mundialmente reconhecidas. E isto no intuito de privilegiar seus próprios interesses, que vão de religiosos a econômicos. Em outras palavras, dizem os “oradores estratégicos” que apoiam as medidas de restrição, desde que restrinjam as atividades dos outros, não as suas, porque acreditam, ora com base nos palpites que entoam como mantras, ora até com base em estudos técnicos, mas de aceitação minoritária entre os especialistas, que a sua própria atividade não tem relevância para a disseminação do novo coronavírus. Fosse acolher a proposta de cada “orador estratégico” individualmente, absolutamente tudo estaria aberto, nada se restringiria, e os “oradores comunicativos”, cuja fala se embasa na Ciência, seriam meros profetas do Apocalipse, unidos numa conspiração para arruinar as economias local e, quiçá, mundial. Seria como se não houvesse amanhã. E provavelmente não haveria mesmo...
Enquanto os debatedores não conseguirem deixar um pouco de lado os seus próprios interesses e pararem de olhar para o seu próprio umbigo, nunca essas reuniões chegarão à situação ideal de fala como ensina Habermas, embora reconheça que isto é uma utopia e somente exista no mundo contrafático. No entanto, ainda que utópica, a situação ideal de fala é um paradigma importante para se aferir a legitimidade da deliberação pública, porque quanto mais próxima dela estiver (resultado de ações comunicativas), mais democrática será; e quanto mais longe estiver da situação ideal de fala (porque resultado de ações estratégicas), mais arbitrária será.
Para que se tenha uma situação ideal de fala é preciso, segundo a lição habermasiana, que o grupo que se reúne para chegar a um acordo tenha as seguintes características: não-limitação (inexista qualquer limitação entre os debatedores, que precisam ter o mesmo nível cultural e as mesmas características, conhecendo — conhecendo mesmo, através da ciência, não da reprodução de palpites! — amplamente o assunto em debate); não-violência (inexista qualquer tipo de pressão sobre os debatedores ou, pior, dos próprios debatedores, para contextualizar a lição); e seriedade (no sentido de nenhum dos debatedores estarem orientados por ações estratégicas, com ideias pré-concebidas para defesa de seus próprios interesses econômicos acima de tudo, pré-conceitos, inclusive de origem ideológica, tudo isto para contextualizar também a lição, trazendo-a para os dias atuais).
Em uma situação ideal de fala, não há critérios de autoridade e nem grupos de pressão econômica, religiosa, ideológica, ou o que seja. Em uma situação ideal de fala, obtém-se um acordo racionalmente fundamentado, pela força do melhor argumento.
Quando o gestor público se dispõe a compartilhar decisões que, pela legitimidade de sua investidura, seriam suas por direito, dá um importante e elogiável passo no sentido de construir uma decisão racional. Merecia uma situação ideal de fala. E não ter que, depois dessa nobre iniciativa, ficar administrando conflitos de umbigos.
A insinceridade de alguns debatedores fica mais do que evidenciada quando, vencidos na reunião de que participam, organizam manifestações que resultam em aglomerações de pessoas, no que deixam clara e indisfarçável sua ação estratégica, mesmo que, no fundo, saibam que o preço disto pode vir a ser contribuir para uma quarta onda, a desencadear, de uma forma ou de outra, a retomada de todas as restrições, estágio a que nenhum dos debatedores (nem os “oradores comunicativos”) deseja retroceder. Mas, se assim tiver que ser, é uma responsabilidade a que a autoridade maior jamais poderá se furtar.
Saindo um pouco da filosofia, para deixar ainda mais clara a mensagem que pretendo deixar com esse texto: estamos todos no mesmo barco! E só há uma forma de sairmos vivos dele — juntos!

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