Arthur Soffiati: Norte do Rio de Janeiro pelo enfoque da eco-história (Final)
* Arthur Soffiati - Atualizado em 20/10/2020 11:02
Encerrando a breve abordagem da história da planície goitacá e dos tabuleiros que a circundam pelo prisma da eco-história, entremos no período republicano e cheguemos aos dias atuais.
República
Os projetos de saneamento para as quatro baixadas do estado do Rio de Janeiro acumularam experiências, mas nenhum foi concluído conforme planejado. A falta de recursos e de continuidade foi um dos principais fatores responsáveis pelo fracasso. Na verdade, saneamento significava drenagem. Perdurava ainda a concepção de que as endemias derivavam de miasmas gerados pela podridão das águas paradas. Mas os interesses econômicos ocultos na expressão “saneamento” eram poderosos. De todos os projetos, sobressaiu-se o do engenheiro campista Francisco Saturnino Rodrigues de Brito, que foi contratado pelo governo estadual. Ele só pôde formular o projeto, entendido por Hildebrando de Araujo Góes como o único que se salvou de todos os investimentos feitos pelos poderes públicos em comissões que pouco produziram.
Em 1933, o Governo Federal criou a Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense, sob a presidência de Hildebrando de Araujo Góes. Getúlio Vargas havia chegado ao poder por um golpe, em 1930. Ele inaugurou o estado intervencionista na economia, como nos Estados Unidos a partir de 1932, com Franklin Roosevelt. A Comissão logo apresentou resultados. Em 1934, Hildebrando de Araujo Góes conclui um relatório revendo todos os trabalhos anteriores e só salvando o de Saturnino de Brito. Em 1935, as obras de drenagem começam nas quatro baixadas: Sepetiba, Guanabara, Região dos Lagos e Norte Fluminense. Essas obras consistiam em retilinizar os sistemas naturais de drenagem entre os rios Paraíba do Sul e Iguaçu. Os trabalhos foram tão bem-sucedidos que, em 1940, a Comissão passou a se denominar Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS), podendo atuar em todo o território brasileiro.
As obras se concentraram, até 1960, na margem direita do Paraíba do Sul, cujo baixo curso foi tomado como limite norte. Entre a lagoa Feia e o mar, o órgão abriu o grande canal da Flecha, que passou a ser o limite sul das obras. Entre os dois limites, cumpria abrir canais primários que ligassem o Paraíba do Sul ao canal da Flecha ou que se ligassem entre si até alcançar o grande canal. O eixo do conjunto foi o canal de São Bento, o único que liga diretamente o Paraíba do Sul ao canal da Flecha. O mais comprido deles é o de Quitingute, que nasce no de São Bento e que retorna a ele já no Flecha.
Na década de 1970, o DNOS pretendeu levar suas obras na margem direita do rio Paraíba do Sul até o fim. Abriu um canal submerso na lagoa Feia ligando a foz do rio Ururaí ao início do canal da Flecha. A esse canal central, reunir-se-iam um canal partindo da foz do rio Macabu e outro partindo da lagoa do Jacaré, seção da lagoa Feia onde desemboca o canal de Tocos. Os três juntos formariam uma espécie de tridente. A intenção era transportar os sedimentos carreados pelos dois rios e pelo canal para a origem do canal da Flecha e ali dragá-los. O nível da lagoa seria regulado por uma bateria de comportas instalada no canal próxima à foz. O vertedouro da Valeta (“Durinho da Veleta”) seria removido. Para fixar a foz do canal da Flecha, dois guias-corrente de pedra avançariam mar a dentro. O rio Ururaí, já retilinizado no seu baixo curso, entre a BR 101 e a lagoa Feia, seria também canalizado entre a lagoa de Cima, onde nasce, e a BR 101. Na nascente do rio Ururaí, seria erguida uma barragem para regular o nível da lagoa de Cima.
Os pescadores se rebelaram contra essas obras entre 1978 e 1981. A draga flutuante incumbida de remover o Durinho da Valeta foi paralisada por eles. Em Barra do Furado também ocorreram movimentos de pescadores contra as obras. Os guias-corrente construídos na foz do canal da Flecha interferiram diretamente na corrente marinha dominante, retendo areia no lado direito e provocando erosão no lado esquerdo. O rio Ururaí não foi canalizado no seu alto curso nem foi construída a barragem em sua nascente.
Na margem esquerda do rio Paraíba do Sul, no âmbito dos tabuleiros e de uma parte da restinga, o DNOS regularizou o canal já existente entre a lagoa da Onça e o rio Muriaé, efetuando obras similares nas lagoas do Lameiro, Limpa e das Pedras. Abriu um canal — o do Vigário — ligando o rio Paraíba do Sul à lagoa do Campelo. Desta, abriu outro, ligando-a ao rio Guaxindiba, do qual subtraiu a foz e o tornou seu afluente. O córrego da Cataia, que fazia a ligação natural da lagoa do Campelo com o rio Paraíba do Sul, passou a ser regulado por comportas. Na margem esquerda, os pescadores da lagoa do Campelo também se rebelaram contra as obras do DNOS. Mais abaixo, o canal de Cacimbas, aberto para navegação na década de 1830, foi transformado em canal de drenagem.
Restou um problema para os pescadores: os diques de terra erguidos por proprietários rurais dentro da lagoa Feia para ampliar suas propriedades com a conivência do DNOS, que foi extinto em 1990 pelo primeiro pacote de medidas do presidente Fernando Collor de Melo. Daí em diante, a conservação das obras executadas pelo DNOS ficou, de certa forma, sem um órgão responsável, assim como aconteceu quando os jesuítas foram expulsos do Brasil. Os proprietários rurais passaram a efetuar a manutenção apenas no âmbito de sua propriedade. Teoricamente, a superintendência Estadual de Rios e Lagoas (Serla) respondia pela estrutura deixada pelo DNOS. Na prática, faltavam recursos financeiros.
A enchente de 2008 no sistema Ururaí permitiu a detonação de quatro diques na lagoa Feia e a ampliação de sua área para o ecossistema e para a atividade pesqueira. Daí em diante, Feema, Serla e IEF foram fundidos no Inea, que assumiu o controle das obras deixadas pelo DNOS. O Estado do Rio de Janeiro, em consonância com a lei federal n° 9.433/97, que instituiu a Política Nacional dos Recursos Hídricos, foi dividido em sete regiões hídricas bastante artificiais em relação à realidade das bacias hídricas do estado. Depois de marcante discussão em Quissamã, reformulou-se a divisão com a criação de 10 regiões hidrográficas. Finalmente, a RH n° 10 foi incorporada à RH n° 9.
Esse grande sistema de diques, canais e comportas, talvez o maior do mundo, aos poucos foi abandonado. Hoje, ele apresenta desgastes acentuados. A economia canavieira entrou em declínio. A Petrobras instalou um porto em Macaé para atender às inúmeras plataformas de exploração de petróleo e gás natural no mar. A nova atividade atraiu muitas empresas e gerou muitos empregos na região, mas também saturou Macaé ao atrair pessoas de todo Brasil à procura de emprego. A Petrobras acentuou a ilusão do progresso. Os pobres sem qualificação para o trabalho não retornaram a seus lares. Ao contrário, fixaram-se em Macaé sempre à procura de emprego. O processo de favelização mudou a paisagem de uma cidade tranquila. Aumentaram a mendicância, a prostituição, a criminalidade e a violência. A cidade cresceu para o interior, ocupando ricas e importantes áreas de brejos. A necessidade de água ultrapassou a capacidade do rio Macaé em fornecê-la.
Em outro ponto da região, instalou-se outro megaempreendimento igualmente bastante impactante pelo prisma ambiental e social. Trata-se do Porto do Açu, que não se limita apenas a um porto. O complexo inclui um mineroduto, um estaleiro e diversas unidades industriais sobre a mais nova e frágil restinga da planície. Muitas injustiças foram cometidas em sua instalação. Pequenos produtores rurais perderam suas terras, casas e produção. Vários foram tratados com violência pela Polícia Militar do Estado. O Governo Estadual colocou a Codin à disposição do empreendimento. Os estudos de impacto ambiental apresentavam falhas, mas foram aprovados pelo Inea. Finalmente, investigações revelaram que houve muita corrupção para que o complexo se instalasse. Ele também já vem provocando mudanças socioambientais profundas, com promessas de acentuá-las.
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