Sistema de Incentivos, Um Nobel da Economia e Hipócrates: O que isso tudo pode nos ensinar sobre o Funcionalismo Público?
20/09/2019 18:32 - Atualizado em 20/09/2019 18:35
 
Hipócrates e Friedman
Hipócrates e Friedman / Internet
Recentemente a cidade de Campos vem presenciando a escalada de tensões entre a Administração Pública e os Servidores Públicos do Município, notadamente entre a categoria dos Médicos, embora não apenas.
Ao observador comum, pode parecer tratar-se, num primeiro momento, da contraposição entre Forte e Fraco, entre “Patrão” e “Empregado”. Ou, em outros termos, na luta por “Direitos”, ante um suposto desejo “exploratório” do Município. Toda a estética da luta operária é importada para a tensão entre Servidor Público e Administração Pública, ou, para tornar mais pessoal o dilema, entre Político Eleito - seja ele Prefeito ou Parlamentar -, e burocrata não eleito (admitido por Concurso Público).
Em que pese entendimento contrário, a importação da lógica entre Patrão e Trabalhador da iniciativa privada para o serviço público é um grande equívoco, quando não uma estratégia pouco republicana. Ocorre que diferentemente da relação privada, o servidor público não é parte hipossuficiente nesta relação, que possui características muito diferentes.
Em primeiro lugar, o empregador da iniciativa privada tem fortes incentivos para perseguir a maior eficiência em seu negócio, ou seja, uma maior produtividade ao menor custo possível. Deste interesse deriva um forte trabalho para controlar rigorosamente a assiduidade de seus empregados, a eficiência, a produtividade e a qualidade de seus funcionários. Também deseja sempre pagar o menor preço possível para obter este resultado almejado que faça seu negócio competitivo.
A sabedoria popular inclusive sintetizou este cenário em ditado: “É o olho do dono que engorda o gado”. Caso não possua sucesso neste objetivo, a punição ao empresário pode ser severa: A falência de sua empresa, e a perda de muito dinheiro investido.
O trabalhador da iniciativa privada, por sua vez, tem fortes incentivos para buscar ser o mais produtivo possível para este empregador, uma vez que esta produtividade pode evitar uma demissão, ou proporcioná-lo uma promoção e até mesmo um aumento salarial. Contudo, trata-se da parte mais fraca da relação de trabalho, já que tem poucas ferramentas para contrapor o ímpeto de seu empregador em pagar sempre o mínimo possível por seu trabalho. Tal situação se agrava em situações de crise econômica, onde o forte desemprego traz maior gravidade ao problema do Exército de Reserva, qual seja a existência de um sem número de desempregados que estariam aptos a assumir o mesmo posto de trabalho por cada vez menos.
Buscando equilibrar esta relação que, apesar de tender para grande produtividade e eficiência, pode desaguar em prejuízo do trabalhador, a política vem tentando ao longo dos séculos, por vezes de forma bem sucedida, por vezes de forma desastrada e irresponsável, editar leis trabalhistas que venham a proteger este trabalhador, sem contudo destruir o poderoso sistema de incentivos à produtividade que é inerente à iniciativa privada, ou seja, a competição entre empresas, o desejo de lucro e o risco de prejuízo que fazem com que o empresário busque incessantemente ter um produto melhor por um preço menor; e a competição no mercado de trabalho, a possibilidade de evolução na carreira, bem como o risco da demissão que fazem com que o empregado busque sempre ser mais produtivo, eficiente e responsável.
Observando o Funcionalismo Público pela ótica acima proposta do Sistema de Incentivos, o serviço público é extremamente mal projetado para a produtividade. Não por outro motivo, qualquer cidadão lúcido que tenha dependido de uma repartição pública, que tenha sido atendido por um funcionário público ou mesmo que frequente os corredores da Administração, constatará que trata-se de um serviço predominantemente ruim.
É notória a percepção da sociedade de que o serviço público tem um expediente estranhamente menor que o da iniciativa privada, apesar de já termos normalizado a ideia de que - por algum motivo que se desconhece - tal diferença “é normal”. Os famosos “enforcamentos”, pontos facultativos, para não mencionar aqueles que trabalham no famigerado regime “TQQ”, isto é, Terça, Quarta e Quinta, são algumas destas características.
Você, que trabalha com a carteira assinada, seja na Indústria, no Setor de Serviços ou no Campo; ou mesmo aqueles que trabalham informalmente, e até o empresário que conduz um negócio, tem alguma dúvida de que trabalha mais, com mais afinco e mais dedicação que a ampla maioria integrantes de uma repartição pública? Alguém visualiza um vendedor de loja de um shopping trabalhando menos, com menos atenção e dedicação ao te vender uma camisa, que um servidor de alguma Secretaria da Prefeitura ao recebê-lo para expedir um alvará do teu estabelecimento?
Quem já se dirigiu, por exemplo, à Receita Federal e passou pela via crucis de obter uma senha num horário de distribuição curtíssimo pela manhã, para que o horário de atendimento aconteça apenas durante à tarde, também em horário curtíssimo, talvez tenha a dimensão do absurdo. E não para pela Receita, poderia citar o DETRAN, a Secretaria de uma Universidade, a Secretaria de Fazenda do Município, o Cartório de uma Comarca. Já imaginaram o mesmo cenário quando fossemos a um restaurante almoçar com a família?
E o problema não é apenas o exíguo período de atendimento. O tratamento dispensado pelo Servidor Público ao Jurisdicionado é, via de regra, um tratamento rude e hostil. Impera a lei do menor esforço, a má vontade, que por sua vez faz com que este funcionário opte sempre pelos caminhos que levem ao seu maior conforto, e não à resolução da demanda do cidadão.
A esta altura pode parecer que está se formulando uma crítica pessoal aos Servidores Públicos, mas tal percepção se mostra totalmente equivocada. Não é por ser menos virtuoso, ter menos caráter, ser mais preguiçoso ou menos empático que o Burocrata presta um serviço com estas características negativas. O problema é absolutamente estrutural.
O Ser Humano tende a buscar sempre a maior satisfação pessoal, sem prejuízo dos momentos em que exerce a caridade, a doação, e as virtudes cristãs de amor ao próximo. É da natureza humana, inclusive biológica e evolutiva, buscar sempre o maior Estado de Conforto que puder. Considerando esta premissa, os sistemas de trabalho devem ser tal que, na busca do auto-interesse, o indivíduo realize por tabela, mesmo que sem intenção, o bem comum.
Quem primeiro teve a perspicácia de observar esta fenomenal característica na iniciativa privada foi Adam Smith, que a sintetizou em sua célebre frase: “Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro e do padeiro que nós esperamos o nosso jantar, mas da consideração deles com seus próprios interesses”.
Ora, não é da benevolência dos trabalhadores ou patrões da iniciativa privada que se obtém destes um serviço de maior qualidade e por menor preço. É pela estrutura de incentivos que faz com que o trabalhador que queira um aumento, e manter-se empregado, assim como o empresário que queira lucro e manter sua empresa aberta, busque mais produtividade, reduzindo assim o custo do consumidor e melhorando o produto do trabalho.
No caso do serviço público este poderoso sistema de incentivos é ferido de morte. Tal situação ocorre porque as peças-chaves do sistema são retiradas por diversos motivos.
Em primeiro lugar, o Administrador Público, seja o político eleito, seja o servidor-chefe, não está lidando com o próprio dinheiro, pelo contrário, ele gere o “dinheiro público”, ou, nas palavras da Dama de Ferro, o dinheiro do pagador de impostos. Ao contrário do empresário, não há a perspectiva de enriquecimento com lucro caso o serviço seja prestado com mais qualidade e a um preço menor, nem o temor do prejuízo caso as contas não fechem, o produto seja péssimo e o preço seja alto.
Sobre a gestão de dinheiro alheio, Milton Friedman - economista que ganhou o prêmio Nobel de Economia no ano de 1976 – nos ensina. Segundo o renomado economista, são quatro o número de formas de gastar dinheiro, considerando um indivíduo racional médio que busca normalmente o auto-interesse:
Categoria I: Refere-se ao gasto do seu próprio dinheiro com você mesmo. Você faz compras em um supermercado, por exemplo. Certamente há um forte incentivo tanto para economizar quanto para obter o máximo de valor possível para cada dólar gasto.
Categoria II: Refere-se ao gasto do seu próprio dinheiro com outra pessoa. Você compra presentes para o Natal ou algum aniversário. Há o mesmo incentivo para economizar que há na Categoria I, mas não o mesmo incentivo para obter o máximo de valor para seu próprio dinheiro, ao menos segundo a avaliação do gosto do destinatário. Você vai querer comprar, é claro, alguma coisa que o destinatário talvez goste — contanto que isso também cause a impressão correta e não requeira muito tempo ou esforço seu. (Se, de fato, seu objetivo principal fosse o de permitir que o beneficiário obtivesse o máximo de valor possível por dólar, você daria a ele dinheiro, convertendo o gasto da Categoria II em gasto da Categoria I, a ser feito por ele.)
Categoria III: Refere-se ao gasto do dinheiro de outra pessoa com você mesmo — almoço pago por uma conta de despesas de terceiros, por exemplo. Você não tem um forte incentivo para manter baixo o custo do almoço, mas com certeza tem um forte incentivo para fazer valer seu dinheiro.
Categoria IV: Refere-se ao gasto do dinheiro de terceiros com outra pessoa. Você está pagando o almoço de alguém com o dinheiro de uma conta de despesas de terceiros. Há pouco incentivo tanto para economizar quanto para tentar obter para seu convidado o almoço que ele poderá apreciar mais. Entretanto, se você estiver almoçando com ele, de modo que o almoço seja uma mistura da Categoria III com a Categoria IV, há, na verdade, um forte incentivo para satisfazer seu próprio paladar em detrimento do dele, se necessário.
Como se observa, o Administrador Público está exatamente na situação de nº 3 e 4.
Não se ignora a possibilidade de um Administrador ou outro, apesar da quase inexistência de incentivos, promover uma boa administração, por meio de suas virtudes pessoais elevadas. Acontece que todo sistema que dependa exclusivamente de que a totalidade de seus integrantes sejam os mais virtuosos dos indivíduos, fracassará. Principalmente se comparado a um sistema em que o mero auto-interesse produz o bem-estar geral, e que a virtude apenas amplia este cenário já positivo.
É verdade que o mencionado incentivo decorrente do auto-interesse que move o empresário também existe, em alguma medida (ainda que substancialmente menor) para o político eleito, já que desperdício de dinheiro público, serviços mal prestados e irresponsabilidade fiscal podem trazer consequências políticas para sua carreira, a depender de como seus eleitores avaliam estas situações. Se a sociedade civil for informada, vigilante e unida, ela poderá exercer o controle que torna a pressão de grupos de interesse menos perigosa.
Um político que encontra um eleitorado desejoso de um perfil populista, ou sem qualquer instrução e informação, por sua vez, não tem incentivos para evitar este cenário, ao contrário, pode vir a comprometer o orçamento futuro com dividas bilionárias apenas para satisfação momentânea (Qualquer semelhança com Campos é mera coincidência). Isto ocorre porque o custo político de enfrentar corporações poderosas e organizadas, que se mobilizam contra o político e podem afetar sua carreira, se não for contraposta com uma organização e uma vigilância do resto da sociedade, fará com que, para este político, a ideia de atender a esta corporação seja uma boa ideia.
Se para o Administrador Público o sistema de incentivos é ruim, melhor sorte não socorre ao Servidor Público. Diferente de seu par na iniciativa privada, este não possui o temor da demissão, já que goza da estabilidade quase que absoluta que nosso ordenamento jurídico confere aos mesmos, e também não tem qualquer perspectiva de promoção ou aumento remuneratório baseado em produtividade, já que não existe a possibilidade de ser investido em cargo público superior sem a realização de novo concurso público.
Que não se faça objeções à tese de que não há aumento remuneratório no serviço público por produtividade mencionando as esvaziadas leis que tentam promover um caricato sistema de incentivos neste sentido. A prática nos mostra de forma contundente que se trata de mero teatro, como podemos observar desta matéria da Revista Exame, representativa de tantas repartições públicas pelo país, de onde se extrai o seguinte trecho:
"Uma análise das avaliações dos servidores da cidade de São Paulo, com base em dados do Diário Oficial, mostra que, dos 105.000 servidores na ativa em 2018, 86% tiraram a nota máxima, 1.000 pontos. Outros 13% emplacaram notas ótimas, na casa dos 900. Ninguém tirou menos de 700 pontos. Média geral: 997. Será que todo mundo faz por merecer esses notões?
As notas dos servidores de São Paulo são utilizadas para impulsionar gratificações, promoções e progressões de cargo. Ao que parece, impera uma espécie de camaradagem entre chefes e subordinados para que todos sejam agraciados com aumentos salariais ao longo da carreira. Afinal, são concursados e tendem a permanecer no emprego até a aposentadoria"
Ainda que o Servidor Público não seja análogo ao trabalhador da iniciativa privada em termos de hipossuficiência, vulnerabilidade e necessidade de proteção, este se comporta como se fosse. Inclusive, a reunião de servidores em sindicatos ou corporações de classe, instrumentos notadamente criados e pensados para os trabalhadores vulneráveis, se tornam verdadeiras agências de pressão ao poder público (ou Lobby, para utilizar o termo mais apropriado).
Via de regra, o sindicato dos servidores públicos, assim como as corporações de classe, são agentes extremamente poderosos e influentes nas tomadas públicas de decisões, fazendo intensas pressões por seus interesses, e não raro obtendo vitórias em detrimento de toda sociedade.
São várias as corporações que exemplificam o acima exposto. A Associação de Juízes Federais (AJUFE) tem uma poderosa parcela de responsabilidade na manutenção do status quo dos juízes, sejam suas férias de 60 dias, sejam os famosos “penduricalhos” que integram os vencimentos dos nobres magistrados.
Em Campos, contudo, a categoria dos Médicos é especialmente representativa da questão. Seja pela força do sindicato, seja pela força do Conselho de Classe (CRM). O CRM - assim como a OAB - frequentemente tenta restringir a oferta de vagas dos cursos de medicina sob a desculpa de manter a qualidade dos serviços médicos no país. Contudo, como um observador atento já terá percebido, esta medida contribui fortemente para a manutenção artificial de altos salários da classe, já que restringe a oferta de profissionais num cenário em que a demanda está em franco aumento.
Quanto menos médicos formados, mais dinheiro os médicos já formados receberão, por uma simples lei da oferta e da procura. Aqui, pela primeira vez, vemos um motivo nobre como pretexto para a defesa de um interesse puramente particular e de classe.
O Sindicato dos médicos na cidade, por outro lado, fez um grande alarde após a implementação pelo poder executivo do controle da assiduidade por meio do ponto eletrônico.
Antes de aprofundar na questão, é importante mencionar novamente que aqui não se faz qualquer crítica pessoal a médico algum. Trata-se de um problema estrutural, em que o sistema de incentivos vigente estimula um cenário onde disfuncionalidades acontecem.
Em verdade, não é difícil aceitar que os médicos realmente acreditem estar atuando em prol da sociedade, do bem comum, de causas nobres e republicanas, pois, como diria o já mencionado Milton Friedman: “Já estamos familiarizados com a capacidade que todos temos de acreditar que o que é do nosso interesse é do interesse social.”.
Retomando a discussão, o movimento grevista dos médicos da cidade de Campos foi uma reação virulenta à redução de gratificações, férias e sobretudo ao controle de assiduidade dos médicos da cidade por meio do ponto eletrônico. Um importante fenômeno se observa quando os médicos não assumiram tratar-se de uma revolta em relação a estes pontos, e tentaram convencer a população de que na verdade a greve ocorreu pela preocupação da classe com a infraestrutura dos hospitais.
Ora, aqui é preciso de uma grande ingenuidade para crer em algo desse tipo. A absoluta coincidência e o timing da classe para ter esta poderosa reação ter acontecido exatamente quando da implementação do ponto eletrônico, e da redução de alguns chamados “penduricalhos” nos vencimentos deixa clara a questão controvertida.
A própria tentativa de ocultar estes interesses de classe como sendo o causador da greve demonstra que existe a percepção de que o interesse da classe não é o interesse público, e que na verdade é um interesse às custas de todo o resto da sociedade. O que se tentou, novamente, foi instrumentalizar uma sabida deficiência da rede de saúde para obtenção ou manutenção de vantagens pecuniárias e de suavização da carga horária, com o pretexto de um motivo que contemple o interesse público.
Em “Livres Para Escolher”, coincidentemente, Friedman comenta a classe média nos Estados Unidos da América, e o mencionado trecho é essencial para entendermos o que ocorre por aqui:
"Na realidade, o sindicato dos trabalhadores contemporâneo pode remontar a uma época ainda mais distante, quase 2.500 anos, quando foi selado um acordo entre os médicos na Grécia.
Hipócrates, universalmente conhecido como o pai da medicina moderna, nasceu por volta de 460 a.C. em Cós, uma das ilhas gregas que ficam a apenas alguns quilômetros da costa da Ásia Menor. Na época, era uma ilha próspera e já um centro médico. Depois de estudar medicina em Cós, Hipócrates viajou muito, desenvolvendo uma grande reputação como médico, particularmente por sua capacidade de exterminar pragas e epidemias. Depois de um tempo, voltou a Cós, onde fundou, ou tomou sob seu encargo, uma escola de medicina e centro de tratamento. Ele ensinava a todos que queriam aprender — contanto que pagassem as taxas. Seu centro tornou-se famoso em todo o mundo grego, atraindo estudantes, pacientes e médicos de todas as partes.
Quando Hipócrates morreu, aos 104 anos — pelo menos assim diz a lenda —, Cós estava repleta de médicos, seus estudantes e discípulos. A disputa por pacientes era acirrada e, como era de se esperar, cresceu um movimento coordenado para que se fizesse algo a respeito disso — em terminologia moderna, para “racionalizar” a disciplina, de modo a acabar com a “concorrência desleal”.
Em função disso, pouco mais de vinte anos após a morte de Hipócrates — novamente, como diz a lenda —, os médicos se reuniram e elaboraram um código de conduta, que batizaram de Juramento de Hipócrates em homenagem a seu velho professor e mestre. A partir de então, na ilha de Cós, e aos poucos no resto do mundo, todo médico recém-formado, antes de começar a praticar a medicina, tinha de prestar tal juramento. O costume continua hoje como parte da cerimônia de graduação da maioria das escolas de medicina nos Estados Unidos.
Como a maioria dos códigos profissionais, acordos comerciais de empresas e contratos de sindicatos de trabalho, o Juramento de Hipócrates estava repleto de belos ideais para proteger o paciente: “Usarei meu poder para ajudar o doente no melhor de minha capacidade e discernimento. [...] Sempre que entrar em uma casa, irei para ajudar o doente e nunca com a intenção de lhe causar algum dano ou ferimento” e assim por diante.
Mas ele também cometeu alguns deslizes. Veja este: “Passarei preceitos, preleções e todos os demais conhecimentos aos meus filhos, aos meus professores e àqueles alunos devidamente preparados e juramentados, e a mais ninguém.” Hoje chamaríamos isso de um prelúdio a uma closed shop.*
Ou ainda este, referindo-se a pacientes sofrendo da angustiante doença de pedras nos rins ou na bexiga: “Não cortarei, nem mesmo pela pedra, mas deixarei tais procedimentos para os praticantes do ofício” 1 — um belo acordo de partilha de mercado entre médicos e cirurgiões.
Hipócrates, presumimos, deve se virar no túmulo quando uma nova turma de médicos presta esse juramento. Acredita-se que ele tenha ensinado a todos que demonstraram interesse e pagaram a devida taxa. Provavelmente, ele se oporia ao tipo de práticas restritivas que os médicos em todo o mundo adotaram desde aquela época até os dias de hoje com o intuito de se protegerem da concorrência.
A Associação Médica Americana (AMA) raramente é tida como um sindicato. E é muito mais do que um sindicato comum. Ela presta importantes serviços a seus membros e à profissão médica como um todo. Entretanto, também é um sindicato de trabalhadores e, em nosso modo de ver, tem sido um dos sindicatos mais bem-sucedidos do país. Durante décadas, manteve baixo o número de médicos, manteve alto o custo da assistência médica e evitou a concorrência aos médicos “devidamente preparados e juramentados” de pessoas fora da profissão — tudo, é claro, em nome da assistência ao paciente. Neste ponto do livro, já não é necessário repetir que os líderes da profissão foram sinceros em sua crença de que a restrição ao ingresso na medicina ajudaria o paciente. Já estamos familiarizados com a capacidade que todos temos de acreditar que o que é do nosso interesse é do interesse social."
Infelizmente o Governo Municipal - em lamentável falta de coragem e de defesa do interesse público - após intensa pressão desta classe tão antiga, poderosa e organizada, recuou substancialmente na sua postura diante dos médicos. Se inicialmente a Administração, numa rara e louvável manifestação de virtude ao exigir dos servidores produtividade, eficiência e a prestação de um serviço melhor, exatamente como no caso da iniciativa privada, este ímpeto não resistiu ao lobby do funcionalismo público municipal da classe médica.
E quem perde com isso? Quem perde com isso é uma minoria silenciosa, desorganizada, sem poder de pressão – de lobby -, invisível, vulnerável e hipossuficiente. O jurisdicionado, o pagador de impostos, o dependente da saúde pública, sobretudo os pobres cidadãos da cidade de Campos, perderam a oportunidade de serem atendidos por profissionais mais produtivos, mais assíduos, que frequentem de fato os seus postos de trabalho, por um custo menor para o combalido orçamento público.
Este é, sem dúvida, um dos grandes desafios da democracia moderna. Impedir que minorias organizadas e poderosas triunfem às custas de uma maioria desinformada, desorganizada, mal instruída e vulnerável.

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    Marco Alexandre Gonçalves

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