Felipe Fernandes - Blues, vampirismo e resistência
*Felipe Fernandes - Atualizado em 30/04/2025 07:31
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Filme: Pecadores - O cinema de gênero traz regras e características pré estabelecidas, que dialogam como uma série de outros filmes que compartilham o mesmo gênero. São elementos narrativos, estéticos e sensoriais que buscam construir uma narrativa especifica.

Ao longo da história, grandes cineastas se utilizaram do cinema de gênero, subvertendo suas regras ou simplesmente trabalhando com elas, para contar histórias que vão muito além de sua camada principal, trazendo comentários políticos e sociais sobre seu tempo ou sobre aspectos históricos.

Historicamente , o terror é o gênero mais bem sucedido nessa proposta, não por acaso um dos cineastas estadunidenses mais interessantes da nova geração, Jordan Peele se utiliza justamente do terror pra falar de seus temas.

Outro diretor muito eficiente nessa proposta é Ryan Coogler, que através de blockbusters debate temas como ancestralidade, identidade, a busca por liberdade e resistência, em filmes que vão muito além do puro entretenimento.

Seu novo filme “Pecadores” traz o terror como um dos gêneros, em uma mistura muito eficiente, que entretém e traz em seu subtexto temáticas poderosas, trabalhadas de forma muito criativa sobre a história dos diferentes povos nos Estados Unidos e da luta por liberdade dos negros, através da música, de sua ancestralidade e da interminável resistência.

Em sua primeira camada, é um filme sobre dois irmãos gângsters que retornam a sua terra natal para abrir um novo negócio, que em sua noite de estreia acaba chamando atenção de vampiros. Essa é a sinopse mais superficial possível.

A história se passa na década de 30 no Mississipi. Estado com um histórico violento de segregação e com forte atuação da Ku Klux Kan. O período histórico escolhido não é por acaso, com um contexto que dialoga diretamente com todas as questões que Coogler busca dialogar.

A história dos irmãos que fugiram de sua terra por conta da violência paterna, migrando para a cidade grande, onde também através da violência subiram na vida, construindo uma reputação que os precede.

Eles retornam com dinheiro e consequentemente com poder. Fator que incomoda os conservadores que mandam na cidade. Nesse sentido, a construção do clube de Blues, tendo como funcionários, várias pessoas do passado, diz muito sobre as relações deles e sobre como aquele local é um espaço de resistência, de celebração da cultura negra, mas também da reunião de suas histórias, de reencontro com o passado.

O filme trabalha alguns aspectos sociais muito interessantes, que enriquecem historicamente aquela história. Como a questão do dinheiro por exemplo, com os agricultores que não recebem em dólar de fato, uma forma de controle social por meio financeiro.

Naquela sociedade, o pobre sempre será pobre, o negro sempre será excluído, sendo a violência e a união, as únicas formas de resistência daquele povo.

Através do Blues, Coogler trabalha todo um subtexto sobre ancestralidade através da arte e de aspectos religiosos, que são diretamente ligados com a questão sobrenatural que o filme tem, culminando em uma sequência absurda, certamente uma das melhores cenas do ano, daqueles momentos em que o cinema transcende a tela.

Tendo o Blues como um elemento narrativo primordial, o som do filme é extraordinário. As cenas com músicas são ora pulsantes, cheias de vida, ritmo e sensualidade.

A questão dos vampiros traz toda uma metáfora até meio óbvia, mas eficiente sobre as criaturas que sugam o sangue pra sobreviver. A questão aqui vai além do corpo, com o vampiro principal roubando as memórias e toda identidade de suas vítimas, se utilizando em seus interesses, em um comentário sobre apropriação cultural bem relevante, que ganha mais força com os aspectos do conflito de povos e culturas naquela terra.

O povo indígena aparece brevemente, algo que poderia ser mais explorado, mas o conflito entre negros, indígenas e o homem branco, aqui representado por um vampiro irlandês, que também teve sua terra tomada e pela Ku Klux Kan, constrói um cenário complexo, trabalhando uma história de vampiro para simbolizar os conflitos reais daquela região.

A música reforça a questão da dominação e da apropriação cultural, mas também da liberdade da ancestralidade. Nossa arte e nossa cultura é que nos define enquanto povo, enquanto indivíduos, uma mensagem poderosa que ressoa em Sammie e ganha ecos na surpreendente última cena. Nem a imortalidade pode mudar quem nós verdadeiramente somos.

“Pecadores” é uma grande surpresa. Um filme de vampiro em sua superfície, mas repleto de poderosos subtextos, que dialogam com o Mississipi de 100 anos atrás e ressoam nos dias de hoje. Muita coisa mudou, mas a luta e a resistência continuam.

E o blues, claro.

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