Arthur Soffiati: Reflexões sobre natureza e cultura (VI)
Arthur Soffiati 21/01/2021 16:45 - Atualizado em 04/02/2021 20:27
Existe muita confusão entre cérebro, mente, consciente, consciência, memória, inteligência etc. Cérebro é um órgão físico-biológico. Ele pode ser visto, tocado, pesado, examinado, uma vez fora da caixa craniana. Não se pode fazer o mesmo com a mente, o consciente, a consciência, a memória, a inteligência, pois todas são emergências do funcionamento do cérebro. As formas de aferi-las são sutis. Perdura ainda a divisão entre as ciências sobre cérebro e suas emergências: neurologia, psiquiatria, psicologia, psicanálise. Elas definem seu território e se ignoram ou só se comunicam de vez em quando. As neurociências começam a constituir um terreno comum a todos os estudos voltados para o cérebro humano, que não podem ser concebidos sem os estudos sobre os cérebros animais.
O cérebro humano é o resultado mais complexo do processo evolutivo até o momento. Mesmo assim, não pode ser entendido isoladamente. As baleias, os golfinhos, os macacos, os cães, a gralha e outros animais também desenvolveram cérebros complexos. Mas cabe reconhecer que o cérebro humano é divino e diabólico ao mesmo tempo. Não vem ao caso discutir sua singularidade como isolada da natureza, de outros cérebros. Até prova em contrário, ele é fruto de mutações, seleções, adaptações do processo de evolução, segundo os estudos pioneiros de Darwin.
Pode-se discutir se esse cérebro hipercomplexo levou seu portador a sentir necessidade de criar explicações para o sobrenatural diante desse problema terrível que é a morte ou se ele alcançou um grau que lhe permite perceber algo para além do físico. O que sabemos, com sólida certeza, é que a cultura nasce no cérebro. Se admitimos algo parecido com cultura em alguns animais, o cérebro é responsável por esse algo. Se o macaco-prego usa pedras e paus para obter alimento, esse emprego de ferramentas não fabricadas, mas colhidas na natureza, nasce no cérebro. É o raciocínio que leva o animal a associar uma pedra a um quebrador.
O mesmo se aplica aos hominídeos, talvez desde o primeiro conhecido deles até o momento, com sete milhões de anos. A partir do “Homo habilis”, já se pode falar em fabricação de instrumentos, não apenas em utilização do que a natureza fornece em estado bruto. Enfim, a cultura é primeiramente imaterial para se tornar material. No início, os hominídeos colhiam o fogo na natureza e o mantinham aceso, perdendo-o com frequência. O ato de colher o fogo gerado por raios ou espontaneamente já é demonstração de cultura. Conceber instrumentos que permitam produzir o fogo exige um processo mental refinado. Antes de ser material, as formas de produzir fogo são imateriais. Em seguida, a prática frequente de produção permite o refinamento da tecnologia. O fogo, por sua vez, franqueia novas concepções imateriais que se tornam materiais, como a conquista de cavernas, o endurecimento de pontas de lança, o cozimento da carne e até o emprego do fogo para eliminação de florestas, prática muito usada nos dias de hoje.
É difícil precisar o intervalo entre a concepção mental e a produção material. Mas, o imaterial sempre precede o material. As primeiras sepulturas pressupõem crença no sobrenatural. Claro que a cultura material pode ser cada vez mais elaborada, mas o imaterial, o mental sempre a precede. A mais antiga pintura humana, encontrada recentemente na Indonésia e com idade de 45 mil anos, foi pensada antes de tudo para ser materializada na forma de porco selvagem.
Cabe agora refletir sobre meio ambiente e cultura. O ser humano não produz cultura isoladamente, mas em grupos. Os grupos humanos não produzem cultura imaterial e material em abstrato. O ambiente desempenha um papel crucial. Os esquimós lidam com o gelo, não com a floresta. Os povos que habitaram a ilha de Marajó antes dos europeus lidaram com a água e a floresta, não com o gelo. Os tuaregues lidam com o deserto e a escassez, não com o gelo, a água e a floresta. O cérebro humano concebe a cultura de acordo com o meio.
Concluímos, portanto, que não pode existir cultura material sem o imaterial, o mental. Os bens materiais que encontramos no Egito, tais como pirâmides, sepulturas, templos, estátuas, superfícies escritas representam o esqueleto de um corpo que não mais existe. Equivoca-se quem pensa que o povo do Egito atual descende da civilização egípcia. Os muçulmanos e cristãos do Egito de hoje são monoteístas. O povo das pirâmides era politeísta. Sua cultura imaterial e material era muito diferente da do Egito atual. A cultura imaterial do Egito antigo morreu. A cultura material dele sobreviveu em parte e chegou até nós. Os estudiosos de uma cultura morta contam com parte dos seus ossos, pois muitos foram consumidos pelo tempo. A partir do que restou, cabe reconstituir o que foi destruído e, a partir de então, tentar penetrar no campo sempre perigoso da cultura imaterial.

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