Crônica: Tinha uma pandemia no meio do caminho do Seu Euzébio.
Seu Euzébio tinha pensado em várias coisas. Fizera planos, somou e subtraiu quantos votos precisaria, escrevendo nas costas duma correspondência que encontrara na cozinha. Recolocou o lápis atrás da orelha direita, coçou o cocuruto com a mão esquerda, e mesmo com algumas dúvidas, pensou: “Dá. Acho que dá sim”.
Ficou orgulhoso. Sentiu um acréscimo de estima por si mesmo. Seria a primeira vez que ia ser, de fato, um homem importante. Fora eleito presidente. A associação de moradores agora teria alguém para trazer a ordem e os bons costumes. “Estava uma bagunça!”. O presidente que perdeu a eleição era um professor. Andrade. Na visão de Seu Euzébio, ele era permissivo demais. Deixava os moradores muito excitados, animados demais. Tinha aula de música na comunidade e muitos livros na sua gestão. Andrade teria criado um sistema de empréstimo de livros entre os associados. Era gratuito e as pessoas se responsabilizavam mutuamente. Foi instalado um caixote de madeira no bar do Messias com os livros. Toda gente passava por lá. Mas Seu Euzébio achava desnecessário gastar tempo e dinheiro com isso. “Isso é coisa de maricas”. Eram livros daqueles com poucas figuras e muita coisa para ler. “Esses livros são perigosos demais”.
O principal instrumento de Seu Euzébio para vencer as eleições foi um grupo de WhatsApp que ele criou. Ali ele fazia o que queria e conseguia atenção dos moradores. As eleições para a associação acontecera um pouco depois do carnaval de 2020. Seu Euzébio tinha acabado de chegar a casa, na noite de quarta-feira de cinzas. Viu no muro de Dona Marta, sua vizinha, um casal namorando. Achou estranho. Ao se aproximar, viu que eram dois rapazes. Rapidamente tirou o celular do bolso e tratou de tirar uma foto. Em ato contínuo, a enviou pelo zap ao presidente Andrade.
—Olha isso, Andrade — Dizia a legenda da foto.
Andrade depois de olhar atentamente a imagem, achou por bem ligar.
—Boa noite, Euzébio. O que tem a foto?
—Foi aqui, em frente à casa da Marta.
—Sim, reconheci. Mas, não entendi por que me enviou.
—Não podemos aceitar isso. Esses maricas. O que você vai fazer a respeito?
—Nada. Não estão cometendo crime algum, Euzébio. Lembra quando fez isso com o filho daquele senhor da Rua 15? Que você achava que era bandido?
—É diferente, Andrade, é diferente. Sim, eu sei que naquela vez eu me enganei. O menino era esquisito, com aqueles bermudões e boné. Sei que você vai falar que era por ele ser preto, mas não tem nada disso. O pai dele é ia lá em casa e tudo. Uma vez até sentou nma mesa comigo. Não sou racista. Mas podemos voltar a falar dessa pouca vergonha aqui?
—Olha Euzébio, eu não tenho nada com a sexualidade das pessoas.
A conversa se estendeu e terminou sem que Seu Euzébio ficasse satisfeito. Lá no seu grupo de WhatsApp enviou a mesma foto, com uma legenda diferente: “Andrade acha isso certo”.
As eleições vieram, Seu Euzébio venceu. Se o episódio da quarta-feira de cinzas foi determinante para a vitória, não se sabe. Mas Dona Marta disse para todas as suas amigas que ele havia defendido a moral e os bons costumes.
Tudo corria bem na gestão de Seu Euzébio. Até que veio a pandemia. A comunidade sofreu muito, comércios fecharam, pessoas ficaram desempregadas. Seu Euzébio tentava falar de costumes, criticava uma menina da Rua 20 que havia abortado, mandava mensagens no grupo dizendo que aquilo tudo era um castigo de Deus. Mas as pessoas estavam preocupadas com outras coisas. O marido de Dona Marta havia falecido naquela semana, por complicações do coronavírus. Diziam os vizinhos que ele havia contraído de sua amante.
Seu Euzébio andava preocupado. Sua gestão ia ladeira abaixo. Entrou no bar do Messias, este já sem nenhum resquício do caixote com os livros, e viu o dono atrás do balcão com a camisa branca de costume e sua tolha no ombro. Mas, dessa vez, usava uma máscara.
“Que isso, Messias?” “Tá doente?”. Messias tentava argumentar sobre a gravidade da pandemia, e que a máscara era necessária. Nada fazia sentido para Seu Euzébio. Achava aquilo tudo exagerado e certamente uma conspiração da China com a Globo. Virando-se para a porta do bar, com o cotovelo no balcão, como se não quisesse olhar para o amigo, disse, enfático:
—Isso é coisa de maricas.

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    Edmundo Siqueira

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