Sérgio Arruda de Moura: A cultura do humor
Sérgio Arruda de Moura - Atualizado em 12/11/2020 16:24
O humor e todas as demais figuras da linguagem e do falar são poderosas fontes de crítica do cotidiano e da história. Sempre existiu e operou um aparato cultural crítico em todos os períodos históricos com uma só função: parodiar, no sentido mesmo de ridicularizar as instituições, para que elas se enxergassem na sua nudez, no ridículo, no inconveniente que é quando o poder se exerce de forma risível ou incompatível com o decoro. Ou seja, quem está encarregado de fazer rir é o comediante, o palhaço, o pícaro, o homem comum, e não o governante, o monarca, o imperador ou o que seja. a história não poupará nenhum, e o dispositivo encarregado dessa crítica é o humor, a retomada da história nos seus aspectos ridículos.
Na Grécia antiga, esse papel estava reservado ao teatro pela via da comédia, gênero que não tinha muito prestígio. Aristóteles simplesmente o ignorou quando escreveu sobre os gêneros literários, com especial reverência apenas ao lírico, ao épico e ao dramático, e nada à comédia. Aristófanes, autor de comédias, tem pelo menos duas, “As nuvens” e “Lisístrata”, peças em que, pela via cômica, ele discute temas importantes. Na primeira, tem como foco uma crítica ao poder judiciário e à nova moda de eleger divindades outras que não fossem as já clássicas. Na segunda, “Lisístrata”, feminista antes do feminismo — quem sabe? — incita nas mulheres uma greve de sexo como forma de forçar os homens à paz.
Na Idade Média, o quadro é amplo. Tem o autor francês François Rabelais, que caricaturou o poder de forma inclemente, criando os seus personagens Gargântua e Pantagruel, gigantes glutões, festeiros, talvez pícaros, e críticos ferozes dos costumes e das leis. A lista prosseguiria sólida com autores outros como Boccaccio, Chaucer, Cervantes, Shakespeare.
Na contemporaneidade, como fruto do desenvolvimento da imprensa e dos meios atuais de comunicação e informação digitais, nunca o desenho cômico, as chamadas charges, ganharam lugar tão relevante na crítica ao poder e aos costumes.
O humor é um sinal de inteligência ou de capacidade de criar sentidos instantâneos na voragem da linguagem, se fazendo nas suas expressões mais acuradas. Aprendi a dar valor à piada cortante, ao humor voluntário e sagaz, à paródia crítica, em muitas frentes, e acabei desenvolvendo minha instrução ao seu lado. Não concebo a vida sem rir, gargalhar. Tenho meus ídolos entre os engraçados.
Recentemente, por ocasião da apuração das eleições americanas, com um modelo bem diferente do nosso, que também está longe da perfeição, não faltaram comentários sob a forma de charges e comentários bem situados no quadro do humor e do ridículo. Há charges muito inventivas, como a estátua da liberdade demitindo Trump do seu cargo. A força discursiva desta charge é muito elucidativa do grau que o sentimento antilibertário caracterizou o agora ex-presidente americano. Em outra, Trump, na marcha lenta das apurações e precisando de um pretexto pra melar a eleição em que já se apontava a sua derrota, liga para o ex-juiz Sérgio Moro perguntando se ele não arrumaria alguma história de um tríplex para o Biden...
Outras situam-se em contextos que me foram estranhos. Por exemplo, o Trump ligando para o Brasil precisando falar com um tal de VAR do Flamengo... Dancei, embora suspeite de um quadro enunciativo que apenas me escapa.
Uma das melhores veio sob a forma de uma frase postada nas redes: “É incrível ver um sujeito que trapaceou através do Facebook e Twitter sendo derrotado pelos Correios”, numa clara alusão às trapaças midiáticas da eleição anterior e à avalanche de votos chegando dia após dia pelos Correios, majoritariamente pró-Biden, votos decisivos.
A pérola das frases é esta, de autoria muito sagaz, representando o eterno dilema da incômoda declaração que no mundo acadêmico e profissional temos de fazer sobre nossa competência em língua inglesa e sobre o caráter inconteste dos Estados Unidos como democracia e o seu sistema eleitoral, para nós, confuso: “Se eles podem chamar essa zona de 'maior democracia do mundo', você pode colocar 'inglês fluente' no seu currículo”.
Os gracejos, as bem-humoradas “sacações” de brasileiros sobre as coisas mais trágicas da nossa vida, continuam de pé e atualizadas com sucesso. Não importa o quadro, a piada vem. Diante do trágico e —pior ainda — do trágico reincidindo na nossa vida, rir ainda é o melhor remédio. Ou o que não tem remédio, remediado está.
Mas, os comediantes e humoristas não estão muito satisfeitos, preocupados em perderem as suas posições profissionais. É que está difícil competir com Bolsonaro...

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