Sérgio Arruda de Moura: Deixar o Facebook
Sérgio Arruda de Moura - Atualizado em 22/10/2020 13:09
O FB é um salão de festa mundano, com vários departamentos. Lembra um navio-cruzeiro com viajantes de estilos diferentes de vida, atitudes e modos de compreensão da realidade. Esse navio servirá a todos, compartimentando os salões em gostos e propostas à la carte. Esses passageiros se encontram nos tombadilhos, nos decks, nos espaços comuns, mas aleatoriamente, quando não marcam encontros, segundo algum algoritmo que nem precisou ser criado.
O modo de viver nesse navio resume-se a postar. Postar é o que importa, e isso significa manter-se vivo. O vício dessa vida melancólica é ficar com o polegar passando a tela por horas a fio, buscando uma novidade, um rosto amigo, uma manifestação lacradora, o anúncio de uma live, uma dica importante, uma receita de vida feliz, uma sacanagem, uma charge, uma notícia do mundo de lá... Sobretudo, o que importa é exercitar o polegar buscando a salvação. Estar vivo é dar as caras todos os dias, de cinco a seis vezes, aparecendo. Outra opção é não deixar o FB protagonizar a vida pessoal, o que significa esquecê-lo momentaneamente, deixando para postar apenas quando tiver algo para postar. Mesmo assim, a dependência dele vem cobrar uma passadinha rápida a todo instante.
O que mata no FB é a dispersão, ou a ênfase opressiva em um único episódio. É como se tivéssemos que ler um jornal dispersivo, sem edição, critério ou política, manifestado pessoalmente a partir de pontos de vista muito variados, mesmo quando estamos numa bolha de amigos que selecionamos seguindo critérios não só afetivos, mas também ideológicos.
Há pelo menos dois grupos de postadores — os intimistas e os engajados. Não deixa de haver diversidade na unidade. Os intimistas são aqueles que anunciam o seu caráter, seu humor, suas relações, a leveza, mas também a crueza da vida. Comemoram os aniversários, o seu e os dos mais próximos. Amam a natureza, a amizade, o amor. Dão bom dia e publicizam os episódios prazerosos da vida, como um bom prato que pediu em um restaurante ou um que eles mesmos prepararam em casa. Vez ou outra anunciam a morte de algum parente ou conhecido, ou mesmo a de uma celebridade.
Já os engajados são aqueles que fazem a sua parte denunciando o muito que há para se denunciar hoje, desde os desmandos do nosso vão desgoverno, até as decapitações lá fora, os episódios de racismos e as vitórias eleitorais exemplares mundo afora.
Individualmente, esses editores da vida cotidiana produzida on-line são de diversos tipos: há os fofos, os agressivos, os antenados, os raivosos, os sabichões, os blogueiros, os articulistas, os photoshopeiros, os repetidores de fotos de viagem porque nunca mais viajaram, os famílias, os amantes de bichinhos, o filho piedoso, o marido e a mulher fidelíssimos festejando bodas, o profissional e o reposteiro (aquele que nunca posta nada que não seja algo já postado). Continua com o ondeiro, ou seja, aquele que relaciona o episódio trágico para alertar em cadeia, pedindo para repassar. Tem o prestador de serviço, que nos ensina como tirar o mofo do armário, a tisna da panela, a mancha do azulejo, o pelo do gato na roupa. Tem também os que fazem todos os jogos, criam avatar, procuram saber quem foram em vidas passadas, o que os seus nomes significas — e que acreditam piamente que finalmente uma voz cósmica se instalou entre nós para tudo revelar.
Há os que estão atualizando os seus diplomas, por exemplo quando postam “Ninguém me ensinou isso na escola!”, frase a que segue uma foto de Stalin, outra de Mao Tsé Tung e outra não sei de quem com as cifras de gente que o seu regime de terror matou.
O FB é um território preferencial de quem não lê, não gosta de ler, não tem livro em casa para ler. Jornais, já não os lê há muito tempo, e que agora tem a ilusão de que lê, nem que seja títulos e legendas de fotos e ilustrações. É assustador o percentual de gente no Brasil que não lê, ou porque não tem necessidade, ou porque pode levar perfeitamente uma vida sem ler, ou que não gosta mesmo de ler, mas não confessa. Assustem-se: são 75% os brasileiros que, mesmo sabendo ler, não leem. Isso dá 165 milhões de pessoas. Destes, cerca de 50 milhões sofrem tanto em cima de uma frase que desistem dela, resignados.
O Brasil é um país triste, mas eu estou falando do Facebook — que é o mais triste legado da revolução cibernética. O Instagram consegue deixar um legado ainda pior, porque é um domínio em que a indigência do FB é elevado à quinta potência. Já o WhatsApp é bem mais restrito e, por isso mesmo, mais útil, agregador e interativo.
Não, eu não vou deixar o FB. Vou ficar até ele se acabar e botarem algo no seu lugar. Dizem que é o Instagram, mas não pode ser! Seria um retrocesso dentro de outro.
Às vezes, soa como presunção essa crítica às redes, na esteira do que Umberto Eco afirmou certa vez. Mas vale uma reflexão. O uso da internet entrou em uma nova era, e, quem sabe, ela se preste a um propósito maior quando for usada pelo indivíduo com um objetivo mais centrado na razão e menos na emoção.

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