A oração em sua melhor forma
24/02/2020 16:40 - Atualizado em 13/05/2020 17:39
Ontem, a Estação Primeira de Mangueira entrou na avenida para contar a história de Jesus Cristo. Uma das mais, talvez a mais famosa biografia do mundo, narrada por um ponto e vista crítico e contemporâneo. Na Apoteose, Jesus foi homem negro, periférico. Foi gay, foi indígena e foi mulher. Uma mulher, rainha da bateria, que em respeito ao tema de sua fantasia cobriu todo o corpo e atravessou a avenida sem sambar.
Mas o samba não é uma forma de oração?
Na versão etimológica oficial, a palavra “samba” se origina de uma corruptela da palavra “semba”, que significa “umbigada”, movimento corporal praticado pelo ato religioso, no idioma quimbundo. Porém, alguns linguistas apontam que a etimologia da palavra é “samba” mesmo e não “semba”. E que o idioma quimbundo tem os dois vocábulos distintos, assim como seus distintos significados. Segundo estes estudiosos, “samba” em quimbundo, significa orar, rezar.
A Igreja Católica e seu líder na época (1452), o Papa Nicolau V, autorizou aos portugueses, por meio da bula papal Dum Diversas, a conquistar territórios não cristianizados e escravizar perpetuamente os sarracenos e pagãos que capturassem naquele que hoje conhecemos como continente africano. Inaugurava-se a escravidão mercantilista.
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O colonialismo mercantil e patriarcal atacou os corpos negros desde sua concepção. Domesticados pelo trabalho forçado, pela violência dos castigos aos que se rebelavam e violados pelos estupros, o corpo negro foi dominado não somente pelo físico, mas também simbolicamente. A mesma igreja que permitiu a escravidão espalhou pelo Novo Mundo sua ideologia da superioridade da cabeça sobre o corpo. Segundo o Cristianismo, o corpo é profano e é por meio dele que pecamos. Por isso Jesus não samba. Por isso ele nasceu de um corpo virgem, de uma mulher que não pecou. Para ascender e evoluir espiritualmente, primeiro precisamos dominar a carne. Escondê-las com roupas. Privá-las dos movimentos. Não há sacralidade possível quando o corpo é livre. Não há sacralidade possível quando o corpo samba, quando a cabeça se rende aos desejos carnais.
Para os povos Bantu, Nagô, Gegê, Fanti-Ashanti e outras culturas de transe, o corpo é a ponte para o sagrado. É preciso dançar, movimentos de rotações anti-horários, espiralares, para conectar aos seus antepassados. Só pelo corpo é possível alcançar o divino.A Festa da Carne, uma brecha pagã do calendário cristão foi aproveitada pelos negros para iludir a perspicácia dos brancos opressores e festejar seus reis, suas religiões e instituições.
Os maracatus, o samba, a congada e tantas outras expressões culturais negras assimiladas pelo carnaval cristão eram, na sua essência, um festejo cultural e religioso de diferentes povos de origens e etnias diversas que acreditavam num deus que soubesse dançar.
O sábio Zaratrusta, talvez mais sábio fosse, ou quem sabe seria menos descrente na vida e nos homens, se conhecesse o samba e as religiões que cultuam o corpo como sagrado. Onde os deuses só existem porque dançam.
A mangueira trouxe para a passarela do samba, um Jesus contemporâneo, um Jesus “possível”.
Mas POSSÍVEL para quem?
Não penso que os indígenas, massacrados pela Companhia de Jesus desde as missões de 1500, precisassem de tal Cristo. Não penso que o Cristo neopentecostal que hoje leva a "salvação" às aldeias seja-lhes necessário. Esta mudança, apenas estética de quem foi Jesus não significa nada para povos que acreditam no coletivo. Que não vêem como imagem e semelhança divina, porque o divino é a natureza e o indígena é a natureza assim como as águas, os pássaros, os mamíferos. Não há superioridade. 
Concordo que Jesus pode não ter sido um homem branco. Se nasceu mesmo em Belém como diz a bíblia, era um homem mouro. Mas nesse Cristianismo tal qual o conhecemos e tal qual a História construiu - usado como instrumento de conquista e dominação de um povo sobre outros povos, a única imagem possível de Jesus é esta imagem oficial. Um homem loiro e de olhos azuis. Um Europeu, desbravador do Novo Mundo - que é novo apenas para ele.
Esse Cristianismo que autorizou a dominação, o epistemicídio e o massacre físico de povos indígenas e negros não pode ser feminino, nem afro-descendente, muito menos indígena. Jesus Cristo só importa aos cristãos e a mais ninguém. E é este o Cristo possível. Aquele que não é hegemônico. 

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    Mariana Luiza

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