Folha Letras - Dois poetas
* Arthur Soffiati 29/11/2018 18:15 - Atualizado em 03/12/2018 17:26
Entendo o percurso da poesia brasileira como João Cabral de Melo Neto. Segundo ele, o modernismo rompeu com as técnicas de metrificar e de rimar do parnasianismo principalmente. Chegou-se a um ponto em que a exterioridade era mais importante que os sentimentos, as emoções, os fluxos psicológicos de simultaneidade. A primeira fase do modernismo rompeu com o formalismo parnasiano em nome da espontaneidade. Irrompeu então uma avalanche de liberdade poética nos jovens escritores. “Pauliceia desvairada”, de Mário de Andrade, é um bom exemplo dessa rebeldia jovem. Ao longo do tempo, o livro do paulistano guardou sua força. Tornou-se um clássico.
A partir de 1930, os poetas começam a retomar o formalismo na poesia, mas evitando um retorno ao parnasianismo. Carlos Drummond de Andrade começa a escrever com bastante liberdade, mas retomando o soneto. A geração de 1945 retorna ao formalismo, porém de forma muito distinta da do parnasianismo. João Cabral de Melo Neto é o grande nome desta fase. Ele não apenas pratica o verso com rigor, mas afasta o “eu” poético (melhor que o “eu” lírico) do que escreve. Em vez de poesia, temos o poema com versos trabalhados, com rimas toantes, com a secura da areia, do vento, dos ossos, das pedras. Até hoje, volto anualmente a reler “A educação pela pedra”, de 1966, minha primeira paixão poética.
Depois da morte de Drummond, João Cabral, Manoel de Barros e Ferreira Gullar, confesso que não notei o aparecimento de grandes poetas. Dirão que sou injusto por não mencionar o nome de Adélia Prado e Hilda Hilst, por exemplo. Não sou especialista em teoria literária. Considero-me apenas um leitor. Confesso que me agrada a poesia que esconde o “eu” poético. Confesso que gosto de um certo formalismo na poesia. Assim, os poetas da atualidade me parecem frágeis. Tenho lido muitos poetas com bastante tédio.
Mas há exceções. Gosto da poesia marginal dos anos de 1970 e posteriores. Entre eles destaco o nome de Paulo Leminski. Atualmente, distingo dois: Paulo Henriques Britto e Antonio Carlos Secchin. Britto publicou sete livros entre 1982 e hoje. O sétimo – “Nenhum mistério” (São Paulo: Companhia das Letras) – data de 2018. O autor não estampa grandes títulos acadêmicos, mas é um grande tradutor e um poeta na linha de João Cabral.
Na verdade, Britto é um pensador que expressa sua visão de mundo por meio de versos. Seria reducionismo da minha parte valorizar apenas sua filosofia. Ele é também um grande artesão. Seus poemas são cuidadosamente esculpidos. Ele não é um mero imitador de João Cabral. Enquanto este escrevia poemas construtivistas e animados por sua convicção marxista, Britto é mais um cético, um estoico, um irônico. Até mesmo cínico. Aliás, o mundo helênico está muito presente nos seus poemas. Com frequência, ele fala em deuses, em destino, em descrença, em tragédia.
Num de seus poemas do livro mais recente, ele escreve: “Princípio? Tudo é contingente./Fim? Toda luz termina em breu./ Sentido? quemquiser que invente,/quem não quiser se contente/com este presente besta/que, quando acaba a festa,/a vida avara lhe deu:/nada que te pertence é teu.”. Há métrica e rima, mas, acima de tudo, a descrença.
Ele retorna ao soneto clássico, mas com liberdade, em vários momentos. Um exemplo é “Mirante”: “Há certos patamares na existência/de onde se divisam coisas não/belas, mas necessárias a quem pensa/que forjar uma significação//seja talvez – à falta de melhor –/ uma maneira de arremate/àquilo que sobreviveu à dor,/à confusão, à culpa, aos disparates.//Se o panorama, então, desapontar,/lá de cima, quem teve em tempos planos/um sonho alpino, ao menos terá tido//o mérito menor de revelar/que a decepção, arrematando os anos,/é o que há em matéria de sentido.”
Os versos são decassílabos. As rimas estão presentes. O enjambement é frequente. A falta de sentido para o mundo perpassa todo o soneto como, de resto, toda sua produção poética. Em “Spleen 2¹/², ele lamenta sem dor: “Não se fazem mais lembranças/como antigamente./Agora a memória apenas/acumula indiferente.” No primeiro poema de “Nenhum mistério”, que dá título ao livro, Britto mostra sua diferença em relação a João Cabral: “Não chega a ser desespero,/mas não por haver esperança./Falta a ênfase, o tempero,/o sal da intemperança,// sem o qual não é iguaria/à altura de grandes gestos./É mais da categoria/das migalhas, dos restos.//Pois dessa matéria escassa/háque se tirar sustância./(Até mesmo na desgraça/é pra poucos a abundância).
O tom destes quartetos é lembra o simbolista Augusto dos Anjos. Britto não recusa a tradição. Ele já confessou ter pensado em nunca entrar no campo da poesia depois de João Cabral, como se este poeta tivesse esgotado as possibilidades da poesia.Além da crueza, espanta seu ceticismo: “Seria igual se fosse diferente”. “... acaba-se chegando sempre ao ponto/exato de onde se partiu (o nada).” “um nada – nada novo – sob o céu.” “... só consciência e solidão.”
Paulo Henrique Britto não é saudosista. O retorno ao formalismo é, segundo ele, uma tentativa de controlar as palavras, que não devem viver soltas por aí. Cabe domá-las. Sempre há o “eu” poético, mesmo quando o poeta o esconde. O de Britto está expresso no seu ceticismo. Há um ressaibo de Fernando Pessoa em alguns poemas: “É, sem tirar nem pôr, exatamente/ como no pesadelo. É o lugar/onde se está agora. O presente.//Estar aqui é pensar,/e pensar é sempre ser o que se pensa.”
Há nele também um lado taoísta. Num poema, depois de evocar Heráclito e a filosofia de altos patamares, ele conclui que não vale a pena encharcar os sapatos e manchar a calça na lama atravessando um rio, pois tudo terá “efeito idêntico/ao que teria ter ficado/em casa, quietinho na cama.”
Não sei de onde vim e para onde vou. Não sei como cheguei a este planeta na forma humana, heterossexual, branco e de classe média no Brasil desse tempo. Também não tenho certeza sobre algum lugar para onde devo ir depois da minha morte. Fui jogado neste mundo como um animal consciente da vida e da morte. Mas eu gostei dele e não queria sair. Parece que a solução de Britto foi aceitar a falta de sentido do mundo: “Pode não dar em nada, no final, mas ao menos não dói. O que é melhor/que nada – fazer nada faz mais mal/do que fazer o mal. (Nada é pior que o nada). E se a coisa cansa,não/reclama, que o descanso cansa mais/ainda. Faz das tripas coração/ou coração das tripas – tanto faz,/desde que saia alguma coisa dessa/desgraça, mesmo sem pé nem cabeça,/sem graça, só uma frase de efeito,/um negócio que não queira dizer/nada – nada além do que puder/não ser dito, por ninguém. (Dito e feito.)”
Ceticismo, presentismo, estoicismo. No sem sentido filosófico, parece que Britto continua vivo por sua poesia. Confesso que essa poesia me inibe de também escrever poemas. Antonio Carlos Secchin fica para a próxima.

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