Folha Letras - Brahms na China
- Atualizado em 06/03/2025 09:05
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Embora menos conhecido que Bach, Mozart e Beethoven, Brahms fechou com chave de ouro o romantismo musical europeu. Foi um compositor perfeccionista que buscou sempre o equilíbrio entre a expressão e a forma. Músico inspirado, ele não se contentou em incluir entre suas composições uma obra lastreada apenas em sua inspiração. Só depois de muito trabalho e de uma autocrítica severa, ele considerava uma obra merecedora de ser divulgada. É conhecido como o compositor que mais rasgou partituras em busca da perfeição. Vivendo na segunda metade do século XIX, ele podia se dar a esse luxo. Bach e Mozart precisavam viver. Trabalhavam para a Igreja e para a nobreza. Brahms trabalhava para si mesmo.

Daí ser difícil encontrar um festival com dois finais de semana dedicado à sua música. Mais comumente, uma orquestra ou um músico inclui uma peça sua em recitais entre peças de outros compositores. Em Rüdesheim, Alemanha, promove-se periodicamente um festival dedicado à música coral do compositor. Agora, surpreende a notícia de que ele merecerá cinco concertos dedicados a ele em Macau, sul da China. A cidade, que foi colonizada pelos portugueses entre os séculos XVI e XX, voltou à China em 1999 na condição de Região Administrativa Autônoma. Ergue-se no delta do rio das Pérolas, na Grande Baía. Na outra ponta, constituiu-se a megametrópole de Hong-Kong.

O mundo foi globalizado pela Europa a partir do século XVI. Por guerras e acordos, Portugal, Espanha, Holanda, França e Inglaterra dominaram territórios na América, África, Ásia e Oceania, impondo seus valores por bem ou por mal. O resultado foi a ocidentalização do mundo, por mais que a cultura europeia tenha feito concessões a outras culturas. Desse processo, resultaram países em moldes europeus, como Estados Unidos, China, Brasil, Austrália e tantos outros. Da China, os dominadores europeus foram expulsos, mas deixaram sua marca. Ao mesmo tempo, o Estado chinês constituiu-se como um novo império.

Alguns economistas estão falando em desglobalização do mundo na era Trump por conta de sua política isolacionista, com suas tarifas protecionistas da economia dos Estados Unidos. As relações comerciais podem diminuir, mas a cultura europeia está ainda muito presente fora da Europa. Apesar do movimento decolonial, parece difícil pensar um mundo em que as culturas originárias prevaleçam plenamente.

Da China, têm saídos músicos que despontaram como grandes intérpretes da música erudita europeia, como os pianistas Lang-Lang e Yuja Wang. Como o violoncelista Yo-Yo Ma. Yuja Wang é uma atleta do piano. Ela é forte fisicamente e bela, não temendo compositores reservados, no passado, a intérpretes masculinos por exigirem força. Entre eles, Liszt e Brahms. É bem verdade que, para muitos, essas interpretações demonstram mais o caráter hercúleo dos músicos que as qualidades de interpretação. A música de Brahms é viril, mas exige sensibilidade.

Nos dias 7, 8, 9, 14 e 15 de março de 2025, o Instituto e a Orquestra Sinfônica de Macau promoverão, pela primeira vez, um ciclo em homenagem a Brahms. Sob a regência de Lio Kuokman, será executado o concerto para violino e violoncelo com a participação de Alexandra Conunova e de Pablo Fernández. Logo em seguida, será apresentada a magistral sinfonia nº 1, considerada uma das maiores obras musicais de todos os tempos, tendo custado sua composição 21 anos da vida de Brahms. Essa sinfonia foi cobrada por amigos e pelo editor de Brahms, que repudiou as pressões.

No dia 8, a orquestra e o violinista checo Josef paek, executarão o Concerto para Violino e Orquestra em ré maior, obra tecnicamente primorosa que exige domínio pleno do violino. Ele é considerado um dos quatro grandes concertos para o instrumento da música erudita. Logo em seguida, a Sinfonia nº 2 em Ré Maior. No dia 9 de março Lio Kuokman, Alexandra Conunova, Pablo Ferrández, Josef paek, Alexei Volodin e Zhang Shengliang apresentação as três sonatas para violino e obras para piano solo. Estão incluídos as danças húngaras e o concerto para piano e orquestra nº 1 em si maior. Esse concerto já foi chamado de sinfonia para piano.

No dia 14 de março, o maestro Christian Arming regerá a sinfonia nº 3 em Fá Maior. No dia seguinte, o mesmo regente, com o pianista russo Alexei Volodin, interpretará o longo concerto para piano e orquestra nº 2 em Si bemol Maior. Trata-se de uma composição densa e que apresenta certas dificuldades. O famoso pianista brasileiro Nelson Freire encontrou dificuldades no segundo movimento no trecho em que a orquestra cala e o piano executa a melodia com os dedos juntos, sem haver dedilhado. A Sinfonia nº 4 em mi menor, a última do compositor, também será apresentada. Trata-se de composição enigmática. O quarto movimento tem forma de Passaglia com uma solitária e melancólica flauta.

O fundamental da obra sinfônica de Brahms será apresentado na China. A sofisticada música de câmara exigiria uma outra temporada. Penso numa homenagem como esta, a um compositor tão intimista como Brahms, no Brasil, país mais ocidental que a China. Imagino sua quase inviabilidade. Caso fosse feita, suponho que os músicos da orquestra se levantariam para dançar com seus instrumentos e executassem as densas composições em ritmo de pagode, sertanejo, funk. Não se trata de preconceito, mas cada qual no seu quadrado.

*Escritor, historiador, professor e ambientalista.

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