Larissa Dias Pacheco
- Atualizado em 31/10/2025 14:59
Alimentos e legumes para consumo humano.
/
Agência Brasil
Quem nunca viu, ao transitar pela cidade, a distribuição de quentinhas ou sopões às pessoas em situação de rua? Em Campos dos Goytacazes existem muitos grupos desse tipo: as Freiras do Jardim São Benedito, como são conhecidas as irmãs do Mosteiro da Santa Face e do Puríssimo e Doloroso Coração de Maria; ações da Liga Espírita; trabalhos de igrejas evangélicas que reúnem fé e visam diminuir a fome, entre outros. Há quem pense que a fome não chegue a constituir um grande problema para quem mora nas cidades, mesmo em situação de vulnerabilidade. Mas a verdade é que quem depende da caridade alheia não tem certeza de que vá comer no dia seguinte. Esse é, em termos práticos, o significado do conceito de insegurança alimentar e nutricional, e é com base nele que a fome é tratada no campo das políticas públicas.
A política de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) envolve uma agenda que reúne diferentes atores — da sociedade, das igrejas, do mercado e do poder público. Muita gente ainda acredita que a SAN trata só de combater a fome, mas, na verdade, vai muito além: é uma política transversal, que atravessa várias áreas ao mesmo tempo. Na saúde, os conselhos de SAN atuam para promover alimentação adequada e prevenir doenças relacionadas à desnutrição e ao consumo excessivo de industrializados e ultraprocessados. Na educação, abordam o debate sobre a alimentação escolar e a inclusão de alimentos da agricultura familiar. Na assistência social, ajudam a combater a insegurança alimentar, articulando programas de distribuição de alimentos e fortalecendo redes de solidariedade e transferência de renda. Na agricultura, incentivam práticas sustentáveis, apoiam a agricultura familiar e abrem espaço para a agroecologia como alternativa à produção em larga escala que usa agrotóxicos.
Nos conselhos, a comunidade pode expor problemas, propor soluções e acompanhar de perto como os recursos públicos estão sendo utilizados. Mesmo com limitações, os conselhos favorecem maior transparência e controle social e ainda constituem um canal que pode dar voz a quem vive diariamente os impactos da insegurança alimentar, da falta de serviços públicos ou dos efeitos da degradação ambiental. Toda pessoa pode assistir às reuniões do conselho, mas para exercer voto nas assembleias é necessário associar-se por meio de instituições, que são eleitas para representar movimentos, associações ou coletivos, como movimentos de população em situação de rua, coletivos de catadores, cozinhas solidárias, abrigos ou iniciativas de alimentação comunitária e ainda organizações de base ou pastorais sociais (como a Pastoral do Povo de Rua).
Como pesquisadora do tema desde a graduação, consegui reunir dados sobre o funcionamento dessas instâncias participativas. Em Campos dos Goytacazes-RJ, em 2019, dos 513 conselheiros do município, 17,9% ocupavam cadeiras em mais de um conselho ao mesmo tempo. No Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional — COMSEA Campos —, dos 31 representantes titulares ou suplentes, 52% estavam em mais de um conselho municipal. Na análise de atas das assembleias durante o período de 2015 a 2019, verificou-se que o termo “alimentação” esteve presente nos quatros conselhos: saúde, educação, assistência social e segurança alimentar e nutricional. Esses dados evidenciam o elo da política SAN com as demais.
Na minha dissertação de mestrado, em 2022, analisei os conselhos no nível estadual, no Rio de Janeiro, e pude verificar que, diferentemente do cenário campista, os conselheiros estaduais não conseguiam transitar por mais de um conselho — provavelmente devido à maior distância geográfica entre eles na capital. No entanto, as discussões dos temas relacionados à segurança alimentar e nutricional perpassam as atas, o que enfatiza a capilaridade dessa política.
Em 2023, com a retomada do conselho em nível nacional (Consea), a ampliação do Bolsa Família e novos programas voltados à agricultura familiar, o Brasil melhorou sua condição e conseguiu, em 2025, sair do chamado Mapa da Fome. Trata-se de um documento da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) que indica os países em que mais de 2,5% da população sofre subalimentação crônica. O Brasil tinha saído desse mapa em 2015, mas voltou em 2022 e finalmente conseguiu sair novamente neste ano.
O histórico de entrada e saída nesse mapa está intimamente ligado à participação social, pois por ela temas de interesse de grupos com menos força política são pautados na agenda pública. Por isso, valorizar e fortalecer os conselhos participativos é investir em cidadania e em qualidade de vida. Tais espaços mostram que as políticas públicas ganham mais força quando construídas coletivamente, ouvindo a sociedade e articulando diferentes áreas.
Professora e bacharel em Administração Pública, doutoranda em Sociologia Política pela UENF e pesquisadora assistente do Observatório das Metrópoles - Núcleo Norte Fluminense.