Sérgio Arruda de Moura: Quando setembro chegar...
Sérgio Arruda de Moura 03/09/2020 17:24 - Atualizado em 03/09/2020 17:27
E junto com ele a primavera. Mesmo sem muita personalidade na maior parte do país, a primavera é uma matriz de exercícios literários, status que ela mal divide com as demais estações. Em mais 15 dias, é nela que estaremos mergulhados.
Já nas antigas cartilhas de alfabetização, mesmo as do Nordeste, aprendíamos sobre as estações, embora o que tivéssemos mesmo fosse um sol inclemente de janeiro a dezembro, criando-me uma convicção de que as mudanças climáticas ao longo do ano seriam uma coisa só de poetas e romancistas, notadamente os europeus e norte-americanos, ou os brasileiros situados nas imediações ou abaixo do Trópico de Capricórnio. Tanta astronomia — ciência que eu amo — só para não ignorar que o planeta Terra, na sua inclinação de 23 graus em relação ao seu eixo, favorece um Sol menos cáustico nessas bandas da Terra. De qualquer forma, não temos de que nos queixar, pois o tempo tem sido bom, e as temperaturas, ameníssimas para os nossos critérios.
A primavera é um tema presente na obra de muitos poetas e cronistas. Poemas e crônicas saudarão esse tempo e usarão suas semânticas de forma diversificada. Da melancolia da primeira primavera depois da morte do poeta à primavera como renovação da vida, há versos e linhas para reflexões de todo porte, incluindo os filosóficos e os quase religiosos.
Vem de Alberto Caieiro um certo tom de fatalidade quando constata a finitude de si em face do que é mais duradouro:
“Quando vier a primavera,
se eu já estiver morto,
as flores florirão da mesma maneira,
e as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim”.
Cecília Meireles, por sua vez, também fatalista como sempre convém a uma poeta e cronista, não deixa por menos:
“A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la. A inclinação do sol vai marcando outras sombras; e os habitantes da mata, essas criaturas naturais que ainda circulam pelo ar e pelo chão, começam a preparar sua vida para a primavera que chega”.
Chego à amizade intensa entre um poeta-cronista e um cronista-poeta, respectivamente Vinícius de Moraes e Rubem Braga. Vinícius e Rubem travam um diálogo por meio de pelo menos duas crônicas, uma de cada, afastadas no tempo em mais de trinta anos.
Em 1944, como se sabe, Rubem Braga parte para a Itália como correspondente de guerra, de onde passa a enviar notícias do front. Vinícius, já muito amigo dele, o saúda em uma espécie de carta-poesia em que lamenta a ausência do companheiro de copo nas tardes de Ipanema. É nesta “Mensagem a Rubem Braga” que se desenha uma viril e intensa melancolia de amigos separados pela distância. O poema assume o ponto de vista discursivo de quem envia uma mensagem por um porta-voz, no caso, o poema em si. Assim, repetidamente, ele escreve:
“A meu amigo Rubem Braga,
Digam que vou, que vamos bem: só não tenho é coragem de escrever
Mas digam-lhe. Digam-lhe que é Natal, que os sinos
Estão batendo”.
O poema prossegue, laudatório, lembrando ao cronista uma cidade e toda a sua gente deixadas para trás sob as urgências do ofício do seu cronista, subitamente transformado em correspondente, agora ausente. Prossegue:
“Digam-lhe que o tédio às vezes é mortal; respira-se com a mais extrema
Dificuldade; bate-se, e ninguém responde. Sem embargo
Digam-lhe que as mulheres continuam passando no alto de seus saltos, e a moda das saias curtas
E das mangas japonesas dão-lhes um novo interesse”.
enfim,
“digam a ele, digam a ele, a meu amigo Rubem Braga,
correspondente de guerra, 250 FEB, atualmente em algum lugar da Itália
que ainda há auroras apesar de tudo, e o esporro das cigarras
na claridade matinal”.
O tom, a uma só vez solene e de auto-abandono, evoca um certo espírito do tempo, em que poetas e escritores se consolidam no mundo a partir de uma visão que dele constrói com versos e palavras que, além de comporem uma obra, também solidificam a amizade entre dois homens tão próximos em ideais estéticos e de mais alguma coisa vital que só se revela no que sugerem as entrelinhas da literatura.
Rubem Braga viveu 10 anos mais que Vinícius, este morto em julho de 1980, e aquele em dezembro de 1990. Foi naquele ano da morte de Vinícius que ele lamentou a primeira primavera vivida desde 1913, ano de nascimento de ambos, sem a presença do amigo.
“Escrevo-lhe aqui de Ipanema para lhe dar uma notícia grave: A Primavera chegou. Você partiu antes. É a primeira Primavera, de 1913 para cá, sem a sua participação... Eu ainda vou ficando um pouco por aqui – a vigiar, em seu nome, as ondas, os tico-ticos e as moças em flor. Adeus”.
Mais que setembro, será primavera também.

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