Na Ribalta: O teatro e a peste
Fernando Rossi 29/05/2020 22:52 - Atualizado em 03/06/2020 18:06
O teatro sobreviverá junto aos seres humanos, inerentemente. Se as pessoas conseguirem sobreviver, salvaremos o teatro, as artes presenciais. O teatro sobreviverá em outros espaços sociais, em outras esferas, ao invés de se submeter ao espaço arquitetônico e ao Capital. Se as pessoas (re)existirem, também (re)existirá o convívio social e, desta maneira, (re)existirá o teatro. Mas um teatro que não poderá ser quantificado por meio dos olhos, “invisíveis”, do mercado. Um teatro que não gerará números, que não medirá a sua eficácia e necessidade pela quantidade de pessoas presentes por sessão. Do número de atendimentos como se fossem curtidas e visualizações. Mas um teatro que criará experiências vitais, e não virtuais.
O teatro não se mede pelos números. Como medimos atualmente e diariamente os gráficos de falecidos. Assim como os falecidos, quem faz teatro, quem o assiste ou, quer dizer, quem realiza ambas as atividades simultaneamente, não são números, mas vidas. Vidas que se transformam que se adaptam, assim como as formas teatrais.
A atual problemática do teatro não é a mesma da indústria cinematográfica, não é a mesma da indústria cultural, dos grandes shows, dos espetáculos realizados dentro de edifícios arquitetônicos. Algumas pessoas anseiam em colocar um ponto final em coisas antigas, assim como alguns não se importam com as pessoas da terceira idade, existem pessoas que ficam excitadas só de pensar que algo ficou obsoleto, que uma vida perdeu validade pela quantidade de anos que existe. Essa obsolescência programada é habitualmente usada e abusada no Capitalismo.
Mas, trago notícias ruins aos que anunciam a extinção dessa arte milenar, que nasceu e morrerá com o humano: o teatro não acabou nunca acabará. O social persiste, e junto sobrevive a sua performatividade, pois o teatro é uma arte que se assemelha a uma barata que sobrevive à explosão de uma bomba nuclear. As cidades podem ficar desérticas, as ruas militarizadas, as pessoas devidamente resguardadas em suas casas para vencermos o desafio que essa pandemia traz aos seres humanos, mas o teatro terá a capacidade de se reinventar
O Teatro é Peste, como dizia Artaud. E talvez um dos remédios para uma peste seja justamente outra. O teatro já sobreviveu à Peste Bubônica, à “Gripe Espanhola”, até mesmo seu próprio edifício, feliz ou infelizmente. Quem faz teatro já sabe lidar com aquela noite em que uma única pessoa foi assistir à sua peça, com aquele evento no qual se teve que fazer a peça de alguma maneira que não era a ideal. Quem faz teatro aprende na marra a continuar a criar, e fazê-lo, até mesmo em situações adversas e precárias, pois sabe improvisar e reinventar-se. O teatro é adverso e precário, é essencial mesmo que não seja considerado essencial pelo poder público.
O teatro e as artes presenciais só acabarão se as pessoas quiserem que a partir de agora estas sejam completamente substituídas pelo cinema, pelo cinema ao vivo e pela vídeo performance. Pode ser contraditório, mas aposto um ingresso para uma peça de teatro no final do ano que nunca se fez e fará tanto teatro quanto agora e futuramente. A maior parte das famílias que está realmente em casa durante um confinamento já deve ter brincado com, ou invertido, seus papéis cotidianos para passarem o tempo juntos; milhares de pessoas que foram em suas janelas para baterem panelas e gritarem “Fora Bolsonaro”; ou centenas que dançaram e cantaram em suas sacadas, os corrales espanhóis ao inverso onde atuamos para a rua que nos olha vazia desde os balcones; o baile de máscaras em que se transformaram as ruas e os espaços comuns; ou os aplausos como gesto que une as comunidades em relação aos que estão nas linhas de frente dessa batalha pandêmica. Tais ações criam e fazem presente mais do que nunca as performatividades, as artes presenciais, possíveis nesse momento.
O teatro pode ocorrer à distância, ocorrer nas janelas, entre uma e outra pessoa na distância de dois metros, que sejam. O teatro ocorre em qualquer lugar, distópica e utopicamente. Talvez nunca se fez tanto teatro quanto antes, e nunca se fará tanto teatro. E não adianta dizer que o teatro não sobrevive se tivermos no ocidente toda a assepsia disciplinada dos orientais. Na Coreia do Sul, China e Japão, por exemplo, existem inúmeras práticas teatrais, de teatro de rua e espaços fechados.
Acabar com a lógica dos grandes shows e com a quantificação da cultura pode ser uma das melhores coisas que já aconteceram ao teatro no último século. Se o tecido social está ferido, não precisamos de nenhum remédio além do teatro para cicatrizar essa ferida que estará aberta por muito tempo. O teatro como respirador do social. Já descobrimos a cura para os encontros sociais não morrerem, nem mesmo durante essa quarentena.
“ Ora, se o teatro é como a peste, não é apenas porque ele age sobre importantes coletividades e as transtorna no mesmo sentido. Há no teatro, como na peste, algo de vitorioso e de vingativo ao mesmo tempo. Sente-se que esse incêndio espontâneo que a peste provoca por onde passa não é nada além de uma imensa liquidação. Um desastre social tão completo, um tal distúrbio orgânico, esse transbordamento de vícios, essa espécie de exorcismo total que aperta a alma e a esgota indicam a presença de um estado que é, por outro lado, uma força extrema em que se encontram em carne viva todos os poderes da natureza no momento em que ela está prestes a realizar algo essencial.”
(O Teatro e a Peste, de Antonin Artaud )

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