Nélio Artiles: Evidências ou Vidências
29/05/2020 19:47 - Atualizado em 03/06/2020 18:05
Infectologista Nélio Artiles
Infectologista Nélio Artiles / Rodrigo Silveira
Nunca imaginei que estaríamos passando por um tempo tão atípico. Talvez este vírus maléfico esteja causando outros efeitos além da doença física e social. Quem sabe um transe coletivo, preenchido de medo, insegurança e, principalmente, ignorância. Na medicina aprendi desde cedo que após uma questão clínica formulada é preciso reunir as chamadas provas científicas, em forma de “guidelines”, ou diretrizes clínicas, sempre em cima da chamada Medicina Baseada em Evidência, para efetuar um tratamento efetivo e seguro.
Aos primeiros sinais de qualquer infecção, motivados pelo pânico gerado pelas macabras mortes diárias noticiadas, brasileiros têm buscado um difícil atendimento médico, com sérias dificuldades operacionais e de estrutura no atendimento por este país. É uma doença muito perigosa, em que o atendimento feito em tempo adequado, como o uso de oxigênio ou mesmo o acesso ao respirador podem salvar muitas vidas. A maioria certamente evoluirá bem com ou sem falta de cheiro ou gosto. Tem sido um atendimento atípico, com uma anamnese adaptada ao momento, na maioria sem um exame físico, colocando um aparelhinho no dedo para medir a oxigenação do sangue e entrando em seguida na máquina de tomografia computadorizada.
Como uma “receita de bolo” entre fermentos e ingredientes, o paciente sai às vezes com uma inacreditável lista de medicamentos para comprar, juntando dois antibióticos diferentes para infecção bacteriana, dois medicamentos de verme, um anti-alérgico, uma cortisona, além de do antitérmico e do omeprazol, sem falar do já famoso antimalárico.
Céus!!! O que é isso? São diversos vídeos, mensagens, publicações e até receita política, sem embasamento científico, recomendando condutas absurdas. Tudo em meio a um certo grau de histeria coletiva, em que o medo e o pavor transformam pessoas sensatas e de boa formação profissional em pessoas surdas para ouvir verdades e cegas para ver o caminho correto, além de uma destacada debilidade mental, esquecendo da importância do embasamento científico que aprendeu por tanto tempo para saber qual rumo tomar.
Na reação de luta ou fuga grande parte do sangue de um animal vai para os músculos, para uma decisão vital. Porém o cérebro é fundamental para saber modular o emocional nesta hora, a fim de preservar a dita inteligência emocional, descrita lá atrás pelo Daniel Goleman. São inúmeros trabalhos observacionais em todo mundo, que sempre levam a riscos de viés ou variáveis que podem induzir resultados errôneos. Mas são também muito trabalhos multicêntricos sérios randomizados com milhares de pessoas em uso, deste ou de outro medicamento, precocemente ou tardiamente.
Os melhores e maiores trabalhos sérios de fontes seguras mais recentes, que abordam o tratamento da Covid-19, ainda demonstram que não há ainda medicamento com efetividade conhecida e garantida. Todos sem exceção podem causar efeitos indesejados e às vezes perigosos, principalmente em idosos ou portadores de doenças crônicas. Recebo mensagens dizendo que tomar isso com aquilo reduziu muito o adoecimento ou a mortalidade. Como saber que os 80% acometidos pelo Sars-Cov 2 e que não terão grandes manifestações clínicas, assim como se curarão espontaneamente, poderão achar que ficaram bons ou não adoeceram por causa de uma “receita de bolo”?
Recentemente ouvi do Dr Ricardo Dias, excepcional virologista da Unifesp, que o que temos hoje predominando é a Medicina Baseada em Vidência e não mais em Evidências. Vamos no bom senso e no racional, mesmo sem perder a fé e a esperança, que em breve teremos medicamentos efetivos e finalmente uma vacina para voltarmos a um novo normal. Por enquanto é respeitar o distanciamento social, usar máscaras e fazer inúmeras higienizações nas mãos.

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