Literatura estrangeira em 2016 (I)
* Arthur Soffiati 22/06/2017 18:40 - Atualizado em 22/06/2017 18:40
Primeiramente, Portugal. Não tudo o que foi publicado, mas o que consegui ler. Valter Hugo Mãe lançou “Homens imprudentemente poéticos” (São Paulo: Biblioteca Azul, 2016). O livro nasceu de uma residência literária nos Estados Unidos. Tem sido bastante comum este tipo de literatura nascida de projeto. De forma claudicante, Laurentino Gomes classifica o livro como o melhor romance de língua portuguesa de 2016. Não sei se eu faria a mesma avaliação. Só não me arrisco por não ter lido o suficiente e por não ter formação adequada.
Junto a uma floresta de suicidas, no Japão, o artesão Itaro e o oleiro Saburo alimentam um ódio antigo. No Japão, o suicídio era muito comum e ainda não tem o mesmo caráter que o ocidente lhe empresta. Incomum é um português ambientar um romance no Japão. A floresta fica no sopé do Monte Fuji, símbolo do país. Além dos muitos vestígios dos suicidas, o bosque é rico em animais. Mãe chama todos os animais de bichos, distinguindo aqueles que são predadores. Todo animal preda algo da natureza. Falta de intimidade do autor com o mundo natural.
Ao longo da leitura, gostei apenas do capítulo “A lenda do poço”, no qual percebi um autêntico espírito zen: “Contar-se-ia para sempre que um homem fora condenado a meditar no fundo de um poço durante sete sóis e sete luas e que, apavorado com o escuro, se amigou do próprio medo,sentindo-lhe carinho”. Trata-se do maior capítulo do livro. Daria um conto. O cruel artesão, que odiava e matava animais, é colocado por um monge no fundo de um poço por sete dias e noites. Ele teme a presença de um animal a seu lado. Seu medo se transforma num animal imaginário e perigoso.
Por sua vez, o angolano radicado em Lisboa, Gonçalo M. Tavares, publicou “Animalescos” (Porto Alegre: Dublinense, 2016). Trata-se de um conjunto de textos que se ligam por um tema: a relação dos humanos com os animais. Suponho que se trata de revisitar a questão por um prisma irônico: “... tudo o que veio de Deus é para comer, nada na natureza está fora deste ciclo de apetite e estômago (...) a manada antiga dos humanos vê a natureza como o banquete disponível: certas ervas são boas para comer outras não, todos os animais são no limite para o dente da manada humana e nada está no mundo colocado pelos deuses que não pertença a este banquete tão antigo... é isso que o jesus dos animais deseja: obrigar homens a andar de quatro patas, homens que avancem como gazelas ou mesmo que rastejem para o céu não seja um assunto de dar saltos, ou de olhar para cima, mas de olhar em frente como é natural.” Mas falta ao autor a força da boa literatura.
Essa força eu encontrei em Antonio Tabuchi. O autor é italiano, viveu em Portugal e casou-se com uma portuguesa. “Réquiem: uma alucinação” é livro de 1991, agora publicado no Brasil (São Paulo: Cosac Naify, 2015). É exemplo de alta literatura. Tem trama e escrita fina. Mistura tragédia, comédia, drama, realidade e envereda pelo fantástico. Num último domingo de julho, o personagem central perambula por Lisboa, mantendo vários contatos surreais, inclusive com um morto. No posfácio, escreve: “uma história pode chegar de repente, quando menos se espera, e nas mais variadas circunstâncias. E se não tivermos à mão instrumento para agarrar, a história pode desaparecer com a mesma facilidade que veio.” Pequeno livro, grande literatura.
Da África de língua portuguesa, li Mia Couto. “Poemas escolhidos”- seleção do autor (São Paulo: Companhia das Letras, 2016) reúne poemas distribuídos em três livros. Couto não se revela um bom poeta. Ele é mais ficcionista. Certamente, é o mais conhecido autor africano. Seus poemas geralmente são curtos, com poucos versos. Ele se insere numa das duas linhas de poesia que reconheço na atualidade: a da poesia discursiva, com versos sem métrica e sem rima, e que se cruza com essa: a do eu poético na terceira pessoa do singular. Raramente, Couto consegue sair de si mesmo. Sabe-se que, por mais escondido que esteja o autor, sempre há um eu poético, mas Couto exagera em se colocar nos seus poemas. O livro é precedido por apresentação de José Castello repleta de elogios e de muitas palavras que nada significam. Couto busca o caminho do telúrico em seus poemas, assim como faz na sua prosa. Mas não alcança jamais o nível de telurismo de Manoel de Barros.
Como é muito comum na atualidade, o eu poético está muito manifesto em Mia Couto. Os povos pré-ocidentaisou ainda não contaminados pelo ocidente criaram literatura na forma de mito e de lenda. Eles desconhecem o individualismo. Mia Couto é um ocidental mergulhado num mundo que se ocidentaliza e perde sua identidade. Ele se vale de temas de Moçambique ou procura traduzir seu mundo para o ocidente. A África está deixando de ser África. Soa estranho o individualismo num mundo mágico.Mia Couto usa frases de efeito na forma de versos, tipo:“Quando sonhei ser pano/fui agulha./E morri no sono do gesto/de enrolar o fio. Em “Avesso bíblico”, ele escreve: “No início/já havia tudo.//Meu Deus era cego/e, perante tanto tudo/o que ele viu foi o Nada.//Deus tocou a água/e acreditou ter criado o oceano.//Tocou o chão/e pensou que a terra nascia sob seus pés.//E quando a si mesmo se tocou/ele se achou o centro do Universo./E se julgou divino.//Estava criado o Homem.” O poema talvez seja a chave para compreender o mundo a partir do antropocentrismo ocidental num universo ainda não totalmente antropocêntrico.
Dele li ainda “Na berma de nenhuma estrada e outros contos” (São Paulo: Companhia das Letras, 2016). Mia Couto traduz bem o espírito dividido da África atual, talvez sem a consciência dessa divisão. Parece inegável a influência de João Guimarães Rosa e de Manoel de Barros em sua obra. Rosa recria um mundo maravilhoso que não mais existe. Manoel de Barros é tragado pelo universo úmido do Pantanal Mato-grossense. Mia Couto recorre a paradoxos, a expressões regionais e inventa expressões. É preciso cuidado com um autor a quem se atribui criatividade.
Os relatos de Mia Couto, em conto ou romance, são sempre tristes, sofridos. A realidade também tem alegria, mas ele escolhe a tristeza. “Ave e nave”, “O assalto” e “Ezequiela, a humanidade” são contos interessantes. Em “O assalto”, o assaltante quer roubar diálogo.
Dos autores de língua espanhola, li “Isso também passará”, de Milena Busquets (São Paulo: Companhia das Letras, 2016). Não só o Brasil conta com uma ádvena como Tati Bernardes. A Espanha também tem escritores meio estranhos à literatura que enganam com sua contemporaneidade. Busquets fala de si, de seus amores, de suas dores, de seus filhos, de seus amigos, de um mundo que gira em torno de seu umbigo. Ela não consegue sair dela e acredita produzir boa literatura. Ela engana.
Não é o caso da mexicana Valeria LuiselliEm “A história dos meus dentes” (Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016), ela dá fôlego ao realismo fantástico hispano-americano. Seu livro se insere num contexto europeu mestiço, ou seja, num mundo ocidental periférico, a exemplo do paquistanês Mohsin Hamid. Agrada-me bastante esta literatura que vem da periferia, mas que apresenta qualidade da literatura do centro. O livro narra a vida de Gustavo Sánchez Sánchez, conhecido como Estrada. Ele troca todos os seus dentes. Ele se considera o melhor leiloeiro do mundo. Estudou a arte de leiloar nos EUA com um mestre. Aperfeiçoa seu talento viajando pelo mundo. A autora efetua cortes na narrativa para explicações adicionais, finalizando-as com anúncios bem humorados. Exemplo na linha do realismo mágico: “Numa segunda-feira à tarde, enquanto David Miklis tirava um cochilo inoportuno na poltrona, Margo Glantz colou na testa dele uma fileira de selos, lambendo cada um com a ponta da língua, e o levou nos braços para a agência de correios. Depositou-o suavemente sobre o balcão e pediu à moça que o enviasse para Suriname.” Como em outros autores hispano-americanos, ela olha para países vizinhos de mesma língua, para os Estados Unidos e para a Europa. A literatura brasileira não aparece ou aparece raramente.
“Prosas apátridas”, de Julio Ramón Ribeyro (Rio de Janeiro: Rocco, 2016), encerra reflexões de um peruano que viveu durante muito tempo em Paris. Ele vive sua época, vendo a mulher como coadjuvante do homem. É um dos poucos autores que mostra conhecimento de música erudita.
Como o espaço escasseia, menciono ainda o chileno Juan Emarcom o delirante “Um ano”(Rio de Janeiro: Rocco, 2015) e o consagrado, Julio Cortázar, com seu antológico “Bestiario”(Buenos Aires: Punto de Lectura, 2016).

ÚLTIMAS NOTÍCIAS