O que representam os quatro pré-candidatos a presidente
- Atualizado em 02/01/2022 12:14
Quem é simpatizante de pré-candidaturas presidenciais como eu tende a ficar conversando quase sempre com quem pensa parecido. Essa tendência é reforçada pela estrutura da esfera pública digital cada vez mais fragmentada em bolhas e públicos que quase não se comunicam. Infelizmente são raras as oportunidades de conversar fora de nossas respectivas bolhas, com simpatizantes de outros pré-candidatos. Desde o segundo semestre do ano passado tenho me esforçado para encontrar e aproveitar estas oportunidades. No último dia 5 de novembro, o programa Folha no Ar, da Folha FM 98,3, criou uma destes raros momentos. Promoveu um debate entre simpatizantes dos quatro principais pré-candidatos à presidência da república: Lula, representado pelo professor José Luis Vianna, Bolsonaro representado pelo odontólogo Alexandre Buchaul, Sérgio Moro representado pelo advogado Cristiano Sampaio e Ciro Gomes, por mim representado. Neste texto gostaria de fazer uma análise sobre a visão de país representada pelos quatro pré-candidatos tomando este debate do Folha no Ar como principal referência para construir e apresentar meu ponto de vista.
‘Embora não possa reivindicar nenhuma imparcialidade, já que sou assumidamente simpatizante de um pré-candidato, tenho me esforçado para compreender o ponto de vista dos apoiadores das outras três pré-candidaturas. Lula, Bolsonaro, Moro e Ciro representam correntes de opinião e interesses importantes no país. Se é inegável que meu interesse político em torno de Ciro me torna parcial em qualquer análise sobre o assunto, acredito que meu interesse sociológico sobre os distintos grupos sociais e suas visões de mundo me permite levar a sério e discutir o ponto de vista de quem simpatiza com Lula, Bolsonaro e Moro. Para isso, creio ser conveniente começar pela apresentação de minha simpatia política.
Ciro Gomes
Porque simpatizo com a pré-candidatura de Ciro Gomes?
Minha simpatia por Ciro começou na disputa pré-eleitoral para as eleições presidenciais de 2010. Naquele momento, mesmo sendo filiado ao PT, defendia que Lula e seu partido apoiassem o ex governador do Ceará e então aliado, que havia sido um dos principais quadros do governo e que desde seu rompimento com o PSDB na década de 1990 trabalhava na construção de um projeto de desenvolvimento para o país. Dilma foi a escolhida. A tragédia inconteste de seu governo, referendada pelo ostracismo que seu próprio partido hoje lhe impõe, mostra que eu tinha razão em defender o nome de Ciro. Desde então vejo Ciro como o único líder político nacional que se preocupa em entender os graves problemas econômicos, sociais, culturais que o Brasil enfrenta na sua quadra histórica mais recente. Do meu ponto de vista, apenas Ciro coloca no centro de sua ação aquilo que o Brasil mais precisa hoje: ideia e projeto. Ideias apenas não bastam para mudar a realidade, mas sem ideias nenhuma mudança é possível. No episódio em que suspendeu sua pré-candidatura para pressionar parlamentares do seu partido a mudar de posição sobre a PEC dos precatórios, Ciro deu talvez o mais importante e convincente testemunho da centralidade que as ideias ocupam em sua prática política. Riscou uma linha em torno de concepções inegociáveis. Precisamos de um presidente que assuma os riscos de conduzir as mudanças que o país precisa e o compromisso com ideias é precondição para isso.
As principais propostas de Ciro referem-se à economia, mas abrangem também a reconstrução do presidencialismo, a educação e a reformulação do pacto federativo. O foco é a superação de nossa trajetória de subdesenvolvimento, desindustrialização e reprimarização através de políticas macroeconômicas e setoriais que visam construir novo processo de industrialização sintonizado com a economia do conhecimento. Entre os setores destacam-se o complexo industrial da saúde, do agronegócio, da energia e da defesa. Meu argumento, no entanto, é que cada uma das quatro pré-candidaturas representa mais que políticas públicas específicas. Elas trazem para o jogo político visões de mundo sobre o país, seus problemas, potencialidades e possíveis soluções. A visão de mundo articulada por Ciro é o trabalhismo nacional-desenvolvimentista: a perspectiva de que o aviltamento do trabalho pelo capital é inseparável da subordinação nacional na divisão internacional do trabalho e nas relações centro/periferia. Para Ciro esta condição de superexploração do trabalho e subordinação nacional não é necessária. Ela é o resultado de políticas públicas que desperdiçam as potencialidades físicas, culturais e econômicas do país e de seu povo. Em sua perspectiva as soluções podem e devem ser criadas pela política, especificamente por uma nova política nacional-desenvolvimentista que combine valorização do trabalho e da produção com o soerguimento nacional. É possível e desejável que haja discordância e debate sobre esta visão do país. Mas infelizmente isso não ocorreu em 2021, pois os outros três pré-candidatos fizeram a opção pelo personalismo exagerado, pela conversa sobre pessoas em detrimento do debate sobre ideias e projetos. Nenhum deles quis debater com Ciro, pois sabem que ideia e projeto são a grande qualidade do trabalhista. E quais os problemas de Ciro e de sua pré-candidatura? O principal e mais grave deles, fazendo jus ao conhecido e verdadeiro chichê, tem a ver com sua virtude: ao investir no debate racional de ideias, apostar na inteligência do povo, Ciro acaba negligenciando a dimensão afetiva e as urgências da população que legitimamente se fazem representar na política democrática.
Na democracia, votar com o estômago vale tanto quanto votar com o fígado ou com a cabeça. A democracia é o regime em que a quantidade tem primazia sobre a qualidade: é o governo da maioria, não o governo dos que se colocam como mais qualificados. Esta é a norma básica e simples da igualdade política, inventada pelos atenienses: mesmo que os cidadãos (apenas homens, mulheres e escravos de fora) aptos à vida política na Atenas antiga fossem apenas uma parte minoritária da população, entre eles não valia critério hierárquico de qualidade, mas sim critérios quantitativos igualitários de agregação de vontades e preferências. Na democracia, é a quantidade que define a qualidade.
Os outros três pré-candidatos não investiram no debate de projetos de governo e país em 2021. No entanto, mesmo sem debate racional, creio ser possível identificar a perspectiva de mundo representada por cada um deles. É preciso deixar claro que não estou analisando prioritariamente a personalidade concreta de nenhum deles, mas sim a pessoa política que constroem na relação de representação de segmentos da população. O foco é menos no que cada um deles pensa e diz do que nas expectativas com as quais os eleitores, de modo explícito ou implícito, os identificam e diferenciam. Assim, na sequência identifico pontos positivos e negativos das pré-candidaturas de Lula, Bolsonaro e Moro não como qualidades e defeitos de suas respectivas personalidades individuais, mas sim enquanto atributos da visão de mundo e país que julgo representarem.
Bolsonaro
No caso de Bolsonaro, acredito que a principal qualidade que ele representa é o agonismo democrático. Bolsonaro representa uma extrema-direita que não traz nada de construtivo em seu conteúdo. Mas há algo de muito fundamental e positivo na forma como ele articula a visão de mundo que representa: o elemento plebiscitário e populista da democracia, capaz de desafiar a hegemonia ideológica e institucional vigentes, mesmo sem apresentar nada melhor como alternativa. Neste ponto sigo as teses de Chantal Mouffe sobre o “momento populista”. Ao seu modo, Bolsonaro articula o antagonismo “povo” x “oligarquias” como forma de criticar e atacar o que seu movimento chama de “sistema”, mas que nada mais é do que a estrutura institucional e ideológica do regime político da constituição de 1988. O “momento populista” inaugurado pelo bolsonarismo denuncia que esta estrutura institucional e ideológica fracassou em representar os anseios das maiorias. Mesmo sem apresentar nenhuma alternativa, sendo por isso um movimento essencialmente destrutivo, a denúncia de nossa falência institucional, ideológica e constitucional me parece pertinente.
De fato, a democracia brasileira se encontra bloqueada pela própria natureza do regime que desacelera a política em desfavor do povo e em proveito das oligarquias. Infelizmente nenhuma outra corrente política cumpre a tarefa de denunciar este bloqueio como faz o bolsonarismo. Por isso a crítica radical de nossa democracia bloqueada fica restrita a uma crítica autoritária, mas pode e deve ser uma crítica democrática. Bolsonaro representa a força necessária para se insurgir contra arranjos institucionais e ideológicos que não nos servem. A maioria de nosso povo não aceita bem o papel de vítima da história, e Bolsonaro soube vocalizar essa visão de mundo. Quem não souber entender este mérito “antisistema” de Bolsonaro terá não apenas dificuldades de enfrentar o bolsonarismo, mas também de se conectar com as demandas sociais que ele representa. Mas Bolsonaro distorce a força social que representa, transformando-a em mera violência destrutiva. O grande problema do bolsonarismo é sua evidente pulsão de morte. Na ausência de uma alternativa ao modelo que denuncia, resta o ódio destrutivo contra tudo que está aí, a revolta puramente moralista, irmã siamesa da violência escancarada. Por isso, ele não é o melhor representante da direita conservadora brasileira, que é bem distinta da extrema-direita. Bolsonaro não tem nada de conservador. É um destruidor compulsivo, um jacobino miliciano. Os conservadores podem dar contribuição importante ao país, mas não por meio de Bolsonaro. Além da pulsão de morte, outra diferença importante entre o bolsonarismo e o conservadorismo é a incapacidade de Bolsonaro de separar palanque de governo. É quase completa a falta de racionalidade administrativa no governo Bolsonaro. Esta colonização do governo pelo palanque está na raiz de todas as tragédias administrativas do governo, que a gestão da pandemia sintetiza tão bem.
Moro
A relevância política de Moro está evidentemente ligada ao que a operação Lava Jato representou e ainda representa em alguma medida. Como sabemos hoje pela boca do próprio pré-candidato, a Lava Jato sempre foi uma operação política com o objetivo de combater o PT. Mesmo assim, politicamente, Moro acabou representando a denúncia moral da relação promíscua entre dinheiro e poder. A legitimidade política e a força desta denúncia independem da corrupção política do Direito que a própria Lava Jato promoveu. Ela demonstrou de modo farto e inconteste como os grandes empresários estão sempre na antessala da política, corrompendo economicamente os partidos e sua legitimidade em representar a vontade popular. No entanto, embora esta seja uma contribuição importante, a corrente de opinião que Moro representa comunga com ele o mesmo vício moralista presente no bolsonarismo. A corrupção, percebida como maior dos males e grande causa de todos os problemas nacionais, é atribuída unicamente à ação de pessoas e grupos corruptos, e não a arranjos institucionais incapazes de bloquear a ação corruptora do dinheiro sobre o poder e o Direito, e do poder sobre o Direito e o dinheiro. Na visão de mundo representada por Moro, a solução de todos os problemas é a cruzada moralista contra pessoas e grupos corruptos. Enquanto o moralismo bolsonarista tem a violência miliciana como horizonte, o moralismo morista deságua no culturalismo colonizado: o Brasil seria um país marcado pela cultura da corrupção em comparação com a cultura da honestidade que ele atribui aos EUA. Daí que, sem surpresa, a solução inclua a subordinação neocolonial do nosso país às estratégias de “combate a corrupção” promovidas pelo grande irmão do norte. O morismo é uma variante do mesmo moralismo que constitui o bolsonarismo, só que com doses cavalares de complexo de vira-latas.
Lula
A grande qualidade política do lulismo não é apenas representar a massa de despossuídos, hoje torturados novamente pela fome e pelo desespero quase completo. Isso já seria algo muito importante. Mas Lula representa algo ainda mais forte: a identificação do povo brasileiro consigo mesmo e com o próprio país. O grande legado de Lula não está em nenhuma política pública ou construção institucional, mas sim nesta auto-identificação positiva do povo a partir de sua pessoa política e de seu carisma. Isso não é pouca coisa. Embora Lula esteja longe de ser um estadista do tamanho de Vargas, como dizem os mais obtusos bajuladores, esta obra simbólica de promover a autoestima do povão não foi realizada antes por nenhum outro na extensão alcançada pelo lulismo. De certo modo, o próprio Bolsonaro se valeu desta auto-identificação positiva. O grande problema do lulismo é o desperdício do seu próprio movimento carismático: Lula, como nenhum outro nas últimas décadas, poderia ter sido o grande representante e articulador de um projeto e de um sonho nacional. É inegável que Lula realizou políticas sociais importantíssimas de combate a pobreza. Mas nenhuma delas constituiu um legado como foi o caso das políticas de Vargas. Se tivesse articulado o “popular” como o “nacional”, Lula poderia ter superado Vargas no posto de maior presidente da história do país. Com mais de oitenta por cento de aprovação, não realizou nenhuma mudança estrutural e institucional. Talvez por confiar demais em seu carisma, Lula parece até hoje não acreditar na importância das ideias como elemento fundamental na transformação da realidade. Que fique bem claro: não se trata aqui de questionar a inquestionável inteligência de Lula. É inteligentíssimo em quase todas as dimensões da vida. O problema é que ele não valoriza a força das ideias na vida política. Possivelmente também por conviver com intelectuais bajuladores e medíocres, trata as ideias como mero adereço retórico, preferindo o improviso intuitivo, cujo resultado é sempre a acomodação conservadora em lugar de inadiáveis mudanças que exigem firmeza de convicção e disposição para o risco. Isso fica claro quando comparamos sua retórica de afirmação nacional na política exterior, acompanhada de uma política econômica que pouco ou nada fez para reverter a trajetória de desindustrialização e degradação econômica do país. Será que Lula mudou depois da amarga experiência? Gostaria de acreditar que sim, mas suas ações infelizmente indicam que não.
E o que podemos esperar para o decisivo ano de 2022? Que tipo de resultante irá emergir do embate entre os quatro principais pré-candidatos? Nos 200 anos de sua independência encontrará o país um rumo para sair de sua mais grave crise existencial? A própria natureza da crise, que é multidimensional, encurta os horizontes temporais e torna o futuro algo abstrato, sem sentido concreto para as maiorias, tornando-se uma enorme pedra no caminho de quem deseja disputar a cadeira de presidente a partir do debate de ideias. Isso contribui muito para que Lula e Bolsonaro se mantenham firmes em suas respectivas posições na preferência dos eleitores.
Quanto a isso, não há o que se queixar da democracia. A política democrática não é o espaço para a vitória garantida do melhor argumento. Não é ciência, não é discussão racional, para espanto de muitos. Não para o meu. A política democrática é o espaço da disputa pacífica, agonística e regular entre visões de mundo distintas, entre visões distintas sobre a natureza dos problemas coletivos e de suas possíveis soluções. Não é, por exemplo, o lugar em que o conhecimento científico tem mais valor que a visão religiosa não científica. Não é o lugar em que a racionalidade de quem pensa a longo prazo tem mais valor do que o voto com o estômago ou com o fígado. A tarefa de quem pode pensar problemas e questões de longo prazo, sem a urgência do estômago e as perturbações afetivas do fígado, não é apostar exclusivamente na racionalidade de longo prazo e desprezar a de curto e curtíssimo prazo. É usar a primeira para conquistar a segunda. Este é o desafio de quem deseja construir um projeto nacional de desenvolvimento em um país devastado pela urgência da fome e pelo moralismo que perturba a razão a partir dos afetos do fígado. O país precisa urgentemente de debate racional sobre seu futuro. E isto deve ser cobrado de todos os postulantes à cadeira de presidente da república. Mas o povo é o que é. E é bom que os ilustrados, se quiserem ter sucesso na política, saibam entender as “línguas estranhas” que atribuem a ele.
 
 

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    Roberto Dutra

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