Arthur Soffiati - Leitura tardia
Arthur Soffiati - Atualizado em 31/05/2021 21:23
Normalmente atento aos lançamentos de livros e leitor assíduo das críticas publicadas em jornais, não sei como deixei passar a edição de “Torto arado”, romance muito elogiado e bastante premiado. Ele foi escrito por Itamar Vieira Junior (São Paulo: Todavia, 2019). Somente em 2020, tomei conhecimento dele e me apressei a adquirir um exemplar para leitura.
“Torto arado” vem sendo considerado uma revelação pela crítica especializada como um dos melhores romances dos últimos tempos. Ele vem ganhando edição após edição. Itamar Vieira Junior é geógrafo. Não sei como ele consegue compatibilizar duas vidas, pois é muito trabalhoso ser ficcionista e poeta. Creiam-me, pela minha experiência, é muito menos difícil escrever prosa referencial que ficcional, assim como poesia. Quem escreve um conto ou um poema discordará de mim, mas é preciso aquilatar a qualidade do conto ou do poema.
Itamar Vieira escreve um romance luminoso ambientando numa comunidade rural pobre que irá se identificar como quilombola com o passar do tempo. Quase todos seus habitantes são negros e pardos. O autor se movimenta no clima seco do realismo modernista ao estilo de Graciliano Ramos e no ambiente mágico de Guimarães Rosa. No início, a comunidade é retratada nos anos de 1950. Duas irmãs nascidas numa família numerosa são acompanhadas da infância à idade madura. A primeira parte é narrada por Bibiana, que encontrou com sua irmã Belonisia uma velha mala da sua avó contendo uma faca afiada. As duas puseram a faca na boca e Belonísia cortou fora sua língua inadvertidamente. O pai a levou ao um hospital. Ela se salvou, mas não pôde mais falar.
Quando Bibiana parte com aquele que será seu marido, a narrativa passa a ser comandada por Belonisia. A religiosidade da comunidade mistura crença afro com catolicismo. Zé Chapéu Grande é o pai dessa grande família e a liderança religiosa da comunidade. O relato que cabe a Belonisia é vigoroso. Ela se sente só com a partida da irmã e cresce. Um homem que se instala no grupo acaba pedindo a seu pai para tomá-la como companheira. Todos consentem e ela aceita por julgá-lo gentil. A face machista dos homens dessa pobre comunidade aflora. Em casa, ele passa a tratar mal Belonisia. Bebia muito e um dia aparece morto. Belonísia também defende Maria Cabocla, sua vizinha, dos maus tratos do marido. Mas volta para sua casa.
A terceira parte é narrada pelo espírito de Santa Rita Pescadeira, que usava o corpo de Miúda como seu cavalo. Se essa não é a parte mais densa, é a mais acertada quanto à escolha da instância narrativa. Colocar a tarefa de narrativa nas costas de uma mulher que estudou e se tornou professora, como foi o caso de Bibiana, ainda é aceitável. Com Belonísia, torna-se mais difícil, pois ela não quis estudar. “Não me interessava por suas aulas em que contava a história do Brasil, em que falava da mistura entre índios, negros e brancos, de como éramos felizes, de como nosso país era abençoado. Não aprendi uma linha do Hino Nacional, não me serviria, porque eu mesma não posso cantar.” Pode ser a reação de uma pessoa que comparava sua vida com que ensinava a professora. Afinal, a vida dos negros e mestiços naquele comunidade não expressava o que dizia a professora. No final das contas, as mulheres da comunidade eram “preparadas desde cedo para gerar novos trabalhadores para os senhores, fosse para as nossas terras de morada ou qualquer outro lugar que precisassem.”
Pelo menos, Belonísia aprendeu a ler pelas pontas. Talvez para justificar sua compreensão da realidade e narrá-la, o autor explique, num trecho do livro que “Quando Bibiana já morava novamente entre nós, passei a ler tudo o que me viesse em suas mãos ou nas de Severo. Passei a sentir fome de leitura, levava livro até para a sombra do descanso na roça.”
Não há preconceito nesse comentário. Qualquer pessoa pobre ou rica, negra, branca, índia, mestiça, homem, mulher ou de outro gênero percebe o mundo. Sente o mundo, mas nem sempre consegue compreendê-lo e traduzi-lo em palavras faladas e escritas. O melhor posicionamento, num caso como esse, é entregar a narrativa para um narrador onisciente. Foi o caminho seguido por Graciliano Ramos em “Vidas secas”. Aquele grupo de retirantes das secas nordestinas não conseguiria entender a sua tragédia. Já Guimarães Rosa consegue criar narrativa convincente de um índio aculturado em “Meu tio o Iauaretê”. O índio usa uma linguagem mista e confusa para expressar o seu mundo.
Um personagem forte em “Torto arado” é Zeca Chapéu Grande. Ele não figura como narrador em qualquer parte do livro. Ele é um sólido chefe de família. Podia haver desentendimento entre ele e sua mulher. Ele podia manifestar o machismo considerado natural em seu tempo tanto entre ricos quanto entre pobres. Afinal, aparece num trecho do livro o famoso ditado “em briga de marido e mulher ninguém deve meter a colher.” Mas Zeca respeita a esposa e os filhos. Sente-se responsável por todos eles. Mais ainda, ele é a liderança da comunidade como conselheiro e pajé. Ele é uma espécie de sacerdote nos ritos sincréticos da comunidade. Seu corpo é usado como cavalo para as entidades espirituais, obrigando-o, às vezes, a usar trajes femininos.
A história de Zé Chapéu Grande, no início da sua vida, é envolta numa espécie de lenda. “Ele nasceu no meio de um charco, porque não haviam permitido que sua mãe deixasse de trabalhar naquele dia. Meu pai veio ao mundo cercado de mulheres que, assim como minha avó, cortavam apressadas a cana sob a vigilância dos capatazes da fazenda. Donana dizia que ele nasceu com os olhos esbugalhados e não chorou nos primeiros minutos. Quase sem forças o levou ao seio para que tomasse de seu peito. Somente depois de saciado deu seu berro, que pôde ser ouvido de longe, anunciando sua chegada.” Guardadas as devidas distâncias, o nascimento de Zé Chapéu Grande tem algo do mitológico nascimento de Macunaíma.
Na comunidade, era natural que um homem tomasse como esposa uma mulher que lhe agradasse sem qualquer ritual de matrimônio, desde que houvesse consentimento do pai. Com o consentimento da mãe e da moça, melhor ainda. Bibiana gostava de Severo. Belonísia não tinha queda especial pelo homem que pediu sua mão a seu pai. Por isso, não estranhemos o costume de casamento por sequestro na ilha da Convivência, na foz do rio Paraíba do Sul, onde não mora mais ninguém. O sequestro era um simulacro, pois o “noivo” já havia combinado tudo com o “sogro”.
Zé Chapéu Grande tinha perfil conservador. Ele aceitava sua posição de trabalhador e se contentava com as poucas regalias que lhe foram dadas, como sua casinha e o pequeno terreno para lavrar. Ele reconhecia os direitos do patrão, por mais injustos que fossem. Zé foi criado num mundo em que a hierarquia social era quase sagrada, contentando-se com o pouco que recebia. Por outro lado, até o prefeito o procurou certa vez para lhe pedir ajuda religiosa. Engana-se quem pensa que, nas comunidades pobres, todos são revoltados com sua situação social, com a exploração. Itamar Vieira trata com realismo essa postura conservadora das comunidades pobres nos anos de 1950.
Severo, marido de Bibiana e genro de Zé Chapéu Grande, faz o contraponto ao líder comunitário. É Belonísia quem narra: “Severo contava. Que chegou um branco colonizador e recebeu a dádiva do reino. Chegou outro homem branco com nome e sobrenome e foram dividindo tudo entre eles. Os índios foram sendo afastados, mortos ou obrigados a trabalhar para esses donos da terra. Depois chegaram os negros, de muito longe, para trabalhar no lugar dos índios. Nosso povo, que não sabia o caminho de volta para sua terra, foi ficando. Quando as fazendas foram deixando de produzir porque os donos já estavam velhos e os filhos já não se interessavam pelo trabalho de roça, porque ganhavam muito mais dinheiro como doutores na cidade, e nos procuravam cercando terras pelas extremidades da fazenda, dizíamos que éramos índios. Porque sabíamos que, mesmo que não fosse respeitada, havia lei que proibia tirar terra de índio.”
Zé Chapéu Grande e Severo polarizam as posturas político-sociais. Zé era explorado mas respeitava a tradição. Severo representa o novo introduzido na comunidade. Ele é líder sindical, luta contra as injustiças. Conta uma história diferente da ensinada pela professora da escola comunitária. Mas as forças conservadoras são resistentes. Itamar Vieira sabe bem disso. Rebelar-se contra as estruturas estabelecidas é perigoso. Severo acaba assassinado pelos representantes dessas estruturas.
“Torto arado” é um ótimo romance. Ele retoma o fio do romance realista rural brasileiro de forma renovada. Mesmo reconhecendo seus méritos, devo confessar que julguei os elogios da crítica um pouco excessivos.

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