Ciro Gomes precisa fazer autocrítica
03/03/2021 12:05 - Atualizado em 03/03/2021 15:06
Os amigos que me dão a honra de ler as coisas que escrevo sobre política sabem que votei e fiz campanha com entusiasmo para Ciro Gomes na eleição presidencial de 2018. Na verdade, desde 2009, quando ainda era filiado ao PT e antes de Lula indicar Dilma, eu defendia que o partido apoiasse o nome de Ciro para a sucessão presidencial de 2010. A razão de minha identificação com Ciro tem muito menos a ver com a pessoa do que com as ideias que ela representa. O motivo principal é o lugar do pensamento de Roberto Mangabeira Unger no projeto de Ciro, que eu e muitos (como Caetano Veloso) consideramos o maior pensador progressista da atualidade. Aliado de Ciro desde a morte de Brizola, Unger possui a formulação mais sofisticada, avançada e potente sobre as contradições e possibilidades da sociedade brasileira contemporânea. Sua proposta de um reformismo revolucionário fundado na insubordinação intelectual, na imaginação institucional e no experimentalismo democrático está plenamente acolhida no projeto nacional de desenvolvimento defendido por Ciro. Para mim Mangabeira Unger é o Karl Marx contemporâneo. Ao combinar hegelianismo com pragmatismo, ele recupera o melhor de Marx, o ímpeto revolucionário, descartando o que há de pior no marxismo desencantado de nossos tempos: o fatalismo histórico.
Em termos de direção programática Ciro ganha de todos. E a miséria intelectual do PT não oferece concorrência. A formulação programática do partido é hoje dirigida por uma figura intelectualmente medíocre como Aloisio Mercadante, e Fernando Haddad só faz repetir teses da escola sociológica paulista (como patrimonialismo) sobre o Brasil, já amplamente refutadas. Lula tinha razão quando disse a Mangabeira: “seu programa é uma ferrari, mas o PT só sabe dirigir fusca”. O problema de Ciro não é o programa, e nem, pelo que se viu em sua trajetória como prefeito, governador e ministro, a capacidade de governo. Seu problema é de tática e articulação política. E é um problema muito sério.
Ciro saiu do primeiro turno em 2018 convencido de que precisava se distanciar cada vez mais do PT para disputar o eleitorado antipetista ou aquele que gosta de costear o alambrado. A leitura estava correta, mas apenas parcialmente. Critiquei duramente sua decisão de se ausentar da campanha de Haddad no segundo turno. Hoje está claro que aquela decisão foi equivocada: produziu grande e duradoura animosidade e não trouxe nenhum apoio novo. Embora a necessidade de construir alternativa progressista ao PT seja inegável, a questão é: como fica a relação com o eleitorado petista e com o partido como um todo? Será que hostilizar o partido e seu eleitorado é mesmo um bom caminho para crescer? Os fatos mostram que não. Ciro não conseguiu, até aqui, nenhum grande êxito com o eleitorado antipetista em nenhuma pesquisa sobre a corrida presidencial de 2022 e nem conseguiu alianças mais robustas e confiáveis com a centro-direita. Não há nenhum problema em buscar aliança com a centro-direita. Mas até agora, além de namoro com PSB e Rede, Ciro tem apenas sinais ambíguos de que pode conseguir apoio do PSD ou, em miragem mais forte, do DEM.
Nesta situação de indefinições não faz sentido hostilizar o PT como forma de aceno à centro-direita. A centro-direita não precisa disso para apoiar Ciro. Se por acaso algum partido como PSD ou DEM vier a apoiá-lo, ou será porque ele abandonou seu programa nacional-desenvolvimentista (DEM), ou porque apresenta boas perspectivas de ganhar a eleição de 2022 (PSD). Brigar gratuitamente com o PT não ajuda nisso. Ciro não tem nenhuma andorinha na mão para descartar andorinhas voando. Ter o apoio do PT não pode ser tratada como uma possibilidade necessariamente mais inviável ou mais custosa do que outras. Ciro precisa convencer os atores políticos de que ele consegue agregar forças relevantes. E isso não será feito apenas com o apoio de Marina Silva. Explicitar neste momento de indefinição que a meta é derrotar o PT no primeiro turno para disputar com Bolsonaro no segundo turno demonstra flagrante e desanimadora falta de inteligência política. É o obvio que não precisa e nem deve ser dito neste momento. Depois da reaproximação com Lula, Ciro teve nas mãos a possibilidade de jogar com possibilidades e cenários. Ele deveria ter continuado as conversas com a centro-direita, como vem fazendo, e ao mesmo tempo com o PT, usando as sinalizações de um para atrair o outro. Em algum momento, poderia indicar ao PT que a remota possibilidade de apoiá-lo no primeiro turno em 2022, como Lula deixou antever em entrevista recente, é melhor para o partido do que ficar em terceiro e perder a vaga no segundo turno para ele. Em resumo, Ciro tem um horizonte de possibilidades para agregar, mas não tem demonstrado que é capaz de aproveitá-las. Ciro precisa urgentemente fazer uma autocrítica sobre isso: porque ele continua deperdiçando oportunidades políticas? Embora Ciro represente um programa avançado e transformador, sua comunicação política é muito ruim e amadora. Ele precisa fazer essa autocrítica e se empenhar na profissionalização de sua comunicação como arena fundamental de articulação e tática.
Outros temas da autocrítica também podem ser arrolados. Ciro cobra autocrítica do PT, mas o que diz do PDT (o que vale também para meu partido, o PSB) que não consegue lealdade política de seus parlamentares nem em questões em que o próprio Ciro empenha seu capital político como a autonomia do Banco Central e a reforma da Previdência? A esquerda como um todo está perdida na tarefa de fazer oposição a Bolsonaro, mas o PT pelo menos consegue produzir unidade e coesão. Outro tema é a crítica de Ciro ao chamado lulismo: Ciro acusa o lulismo de ser a renovação do caudilhismo latinoamericano, desprezando todo o carisma e identificação coletiva de orientação nacionalpopular que liga varguismo, brizolismo e lulismo. Ao reproduzir a acusação clichê de caudilhismo Ciro não apenas ignora a força e a virtude da dimensão carismático-afetiva da política, que ele próprio tem buscado alcançar, como também presta homenagem ao pensamento político liberal com seu nojo intrínseco dos afetos e do carisma nacionalpopulares. A categoria acusatória de caudilhismo é tão superficial e tosca quanto a acusação de coronelismo que ele próprio sofre do PT e da direita, ou a de populismo que liberais uspianos como Haddad costumam usar contra os líderes carismáticos que protagonizaram a construção nacional nos países da América Latina. Ora, o trabalhismo histórico que Ciro quer liderar e reconstruir é feito de caudilhos e populistas! E o Brasil precisa de um caudilho populista agregador dos interesses nacionais e populares. Sem uma profunda autocrítica Ciro ira novamente fracassar na tarefa de ocupar este lugar.
 
 
 
 

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    Roberto Dutra

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