Suzy Monteiro: Água para bimbinha
Suzy Monteiro - Atualizado em 13/10/2020 11:39
Minha mãe era uma pessoa muito especial. Pode parecer coisa de filha falando de quem não está mais entre nós. Em geral, na opinião pública, morreu, virou santo. Mas não é isso, não. Quem conheceu dona Maria Helena sabe bem do que estou falando. Não havia quem chegasse à minha casa e saísse com o coração e/ou barriga vazios. Alguém chegava e ia surgindo, sabe-se Deus de onde, um bolo, um café, um suco, um prato de comida. Tudo devidamente adoçado com uma boa conversa.
E não era só com visitantes, não: Filhas ou netos que ousassem falar “Estou com vontade comer...”, era melhor estar mesmo, porque a comida aparecia “do nada”. E sempre uma delícia. Sempre inesquecível. Nunca mais comi um cozido como o de minha mãe ou um doce de carambola de estrelinha marrom. O sabor, sei lá, era mesmo especial. Talvez aquele seja o verdadeiro sabor do amor. O problema é que a gente só descobre certas coisas depois que elas passam, e aquele gostinho de “quero mais” nunca mais é suprido.
Mas minha mãe era, também, de contradições. Dizia que não gostava de animais. Mas, nossa casa sempre foi frequentada por gatos, cachorros e bem-te-vis. Certa vez, uma gata que fez morada no nosso quintal, teve filhotes e morreu. Mamãe cuidou de cada um deles, dando leite na seringa. Quando perguntada por que fazia isso, se não gostava de animais, respondia: “Vou deixar morrer”, e ia sempre cuidando. Eles cresceram e foram ficando. E se multiplicando. Também as cadelinhas Princesa e Pipoca, aquela que não parava nunca. Tinha síndrome de coelho, de tanto que pulava. As duas, em épocas diferentes, apareceram e ficaram. Debilitadas, carentes, mas nada que uma boa dose de paciência, carinho e ração não pudesse superar.
Mas, de todos os hábitos sanfranciscanos de minha mãe, talvez o mais estranho era pôr água para bimbinhas. Os pequenos marimbondos também escolheram, por anos, nosso quintal como residência. E eram tantos que, às vezes, eu ficava com medo de sair da casa. Mamãe resolveu deixar um copo com água em cima do tanque para as bimbinhas. “Tadinhas, um calor danado. Elas ficam com sede”. E não era raro ver lá bimbinhas bebendo água no copo.
São quase vários anos que minha mãe se foi. As bimbinhas nunca mais frequentaram aqui em casa e, ao invés de alívio, sinto falta daquele movimento. Também não sou muito chegada a animais — confesso, mesmo com o risco de enfrentar a ditadura dos politicamente corretos —, mas meu quintal é abrigo de alguns gatos, pássaros. Cachorros ainda não, mas quem sabe...
Pessoas desenvolvem bondade ou maldade por mais diversos estímulos. O tempo tem me feito bem mais benevolente, mais complacente com as características humanas. Bimbinhas picam ou não por instinto, não é por serem boas ou más. É de sua natureza. Seja da minha, talvez, um dia pôr água para bimbinhas.

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