Arthur Soffiati: Sérgio SantAnna e a natureza
Arthur Soffiati 22/05/2020 16:12 - Atualizado em 03/06/2020 18:00
Livros de Sérgio Sant'Anna
Livros de Sérgio Sant'Anna / Reprodução
Cá estou eu novamente fazendo algo de que não gosto: escrever sobre um autor que aprecio tendo a sua morte como gatilho. Como no caso de Rubem Fonseca, eu devia esse artigo a um aspecto da obra de Sant’Anna e nunca o escrevi enquanto ele estava vivo. A gente pensa que certas pessoas nunca morrerão, esquecendo de que são humanas. Mas não dizem que algumas são imortais? Sérgio Sant’Anna é imortal a despeito do Covid-19. Portanto, o artigo que escrevo parte da premissa de que ele está vivo em sua obra.
Não posso dizer que sou um leitor empenhado dele, assim como não fui de Rubem Fonseca. Li apenas cinco livros de contos de Sant’Anna. O primeiro foi “O voo da madrugada”, publicado em 2003. Eu voltava de Cuiabá, onde fui ministrar um minicurso. No aeroporto, encontrei uma aluna do curso que tomou coragem para me dizer que notara em mim tendências suicidas. Fiquei impressionado. Ela sabia preparar florais de Bach. Pediu desculpas por me dar três vidros com florais que equilibram o impulso ao suicídio.
Ela veio para o Rio de Janeiro no mesmo avião em que eu viajava. Era um voo da madrugada. Eu havia comprado o recém-lançado livro de Sérgio Sant’Anna com um título bastante sugestivo. Não dormi e li o primeiro conto do livro. O autor costumava tomar o título de um dos contos para intitular o livro. O conto “O voo da madrugada” narrava uma viagem feita, provavelmente pelo próprio autor, com um corpo num caixão no setor de carga do avião.
Tudo o que me havia acontecido no aeroporto e no avião parecia um presságio. Mas o avião chegou bem ao destino. Do Rio de Janeiro a Campos, a viagem foi tranquila. Em casa, comecei a tomar os florais, seguindo rigorosamente as recomendações da terapeuta. Na preparação, usa-se conhaque. Como não notei melhorar, até porque não me pareceu que tivesse tendências suicidas, entornei de um gole os três vidrinhos para aproveitar o conhaque.
Sérgio Sant’Anna reflete em seus contos o torcedor de futebol, particularmente do Fluminense. Há forte erotismo em muitos de seus contos. A sexualidade aparece de forma explícita em vários deles, terreno muito pantanoso para o escritor, que pode afundar nele se não souber fazer a travessia.
Em “O homem-mulher” (São Paulo: Companhia das Letras, 2014), livro do autor que mais aprecio, o conto “Amor a Buda” é bem ilustrativo da sensualidade do autor. Ele gostava de escrever sobre arte na forma de conto. Balthus, pintor pouco conhecido, mereceu dele um ensaio inserido em “O voo da madrugada”. Em “Amor a Buda”, ele se concentra em “Tentação”, pequena obra escultórica do chinês Li Zhanyang. Nela, uma mulher de beleza invulgar, serena, corpo feminino enxuto, está diante de um Buda jovem em profunda meditação. Sentada de lado, com a perna esquerda erguida, dedos do pé abertos, unhas pintadas, ela oferece a ele, com a mão esquerda, um fruto de lótus, que segura de forma delicada. Em todos os aspectos, a postura da mulher é sensual e provocante. Uma verdadeira tentação para quem, como Buda, medita em posição ascética. Ele abre os olhos para aquela moça externando desejo e contenção. A linda moça admira o santo, mas sua oferta a ele é quase um convite aos prazeres sensuais.
O inusitado aparece com frequência nos contos de Sérgio Sant’Anna: uma mulher virgem de 78 anos de idade, uma boneca e um monge no cemitério, a paixão de um menino de 11 anos por uma adulta, uma barata que sente o mundo quase de forma existencial. O político também aflora em vários momentos. No conto “Entre as linhas”, publicado em “Páginas sem glória” (São Paulo: Companhia das Letras, 2012), o autor do conto o submente à apreciação de uma amiga antes de publicá-lo. Não há conto a ser apreciado. O conto é a própria discussão sobre o hipotético conto. O uso da metalinguagem é magistral.
Em “O conto zero” (São Paulo: Companhia das Letras, 2016) e “Anjo noturno” (São Paulo: Companhia das Letras, 2017), seus últimos livros, encontramos um Sérgio Sant’Anna saudosista, lembrando da sua infância e juventude. Alguns contos são escritos na terceira pessoa. O autor não assume a postura de narrador onisciente nem escreve na primeira pessoa, como narrador humano. A narrativa toda emprega o pronome ‘você’? Tu e você exigem flexões diferentes para os verbos, mas ambos os pronomes estão na segunda pessoa. Nesses contos, Sérgio Sant’Anna se afasta de si mesmo e se vê à distância. É dele que o autor fala como se fosse outro.
Mas voltemos à sensibilidade dele com relação à natureza. Para ilustrar, tomemos o conto “As antenas da raça”, contido em “O homem-mulher”. Um diplomata já idoso termina sua carreira no Turzequistão, depois de uma longa carreira por vários países. O regime político do Turzequistão, país imaginado pelo autor, “era uma ditadura de partido único comunista, com grande abertura para o capital externo, e monarquista, uma vez que os dirigentes revolucionários houveram por bem, por uma questão de estratégia, manter em seu cargo o imperador, de uma dinastia milenar respeitadíssima pelo povo. Toleravam ainda a religião filosófica de origem taoísta...” Sant’Anna satiriza as misturas políticas e ideológicas-religiosas do nosso tempo. Faz combinações cada vez mais comuns nos dias de hoje.
O embaixador foi aposentado por suspeitar-se que estivesse sofrendo de demência. De volta ao Brasil, ele ficava em seu quarto, assistido por uma enfermeira durante a noite que mostrava seus seios para que ele se acalmasse. Enquanto isso, sua mulher – Berenice Azambuja – oferecia lautos jantares à alta sociedade. Num deles, um dos convidados (era um comendador de 70 anos) notou que havia uma barata na sopa da anfitriã. Sem hesitar, ela colheu a barata na colher e a engoliu, tomando em seguida uma boa dose de whisky como inseticida e desinfetante. Para disfarçar, disse ao comendador que ele estava enxergando mal.
Ao dar boa noite ao marido, este olhou para ela e viu em sua cabeça a aura da morte. Berenice não se incomodou. Afinal, seu marido não sabia mais o que dizia. No seu quarto, tomou mais uma dose de whisky. Notou que algo se mexia em sua garganta. Em pânico, aproximou-se da janela de seu apartamento e caiu. Ao bater no chão e morrer, a barata saiu por sua boca. Entendeu-se que a morte de Berenice foi suicídio. A barata não era uma barata qualquer. Ela tinha estirpe. O dorso das baratas do Turzequistão apresentava formas geométricas. Discutia-se até se essas formas não teriam influenciado os trigramas e hexagramas do “I ching” e o geometrismo de Mondrian.
Liberta do corpo da socialite, a barata conseguiu atravessar a avenida Atlântica sem ser esmagada por pés ou por rodas de carro. Do outro lado, encontrou baratas plebeias, mas se misturou a elas. Comeu dos restos que elas comiam e iniciou até uma vida sexual. Na areia da praia de Copacabana, a barata turzequistaneza contempla o céu e sente o prazer de estar viva, mesmo em terra tão distante da sua.
Assim como a barata, estão presentes nos contos de Sérgio Sant’Anna os vermes, os tubarões, as baleias e outros animais. Rondam-nos também a morte. Escritos inéditos devem ter sido deixados pelo escritor. Eles devem ser publicados para brindar seus leitores.

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