Rumo ao Modernismo (II): Manuel Bandeira
* Arthur Soffiati 25/07/2019 19:47 - Atualizado em 05/08/2019 13:39
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Manuel Bandeira nasceu em 1886, na cidade do Recife. Teve uma infância feliz. Mudou-se para o Rio de Janeiro, onde estudou no colégio Pedro II. Em 1904, foi acometido de tuberculose, o que o obrigou a abandonar os estudos e peregrinar por cidades de clima saudável até se transferir para Clavadel, na Suíça, a fim de se tratar.
Na primeira década do século XX, Bandeira já escrevia poesia e usava o verso livre. Por mais fortes que fossem as influências do parnasianismo e do simbolismo, sua poesia já se afina com o pré-modernismo de forma surpreendente. Como “Há uma gota de sangue em cada poema”, de Mário de Andrade, seu livro de estreia, “A cinza das horas”” foi lançado em 1917.
Em “Epígrafe”, poema de abertura, ele sintetiza sua vida na primeira estrofe; “Sou bem-nascido. Menino,/Fui como os demais, feliz./Depois, veio o mau destino/E fez de mim o que quis”. “A cinza das horas” não é um livro programático como “Há uma gota de sangue em cada poema”. Nele, Bandeira reúne seus primeiros poemas e revela logo sua profunda inspiração, uma espécie de materialismo espiritual, acentuada sensualidade e até mesmo erotismo. Em seus poemas, percebe-se logo que o simbolismo representa uma espécie de camisa de força da qual ele quer se libertar. Seguindo a carreira de Gilka Machado, conclui-se que ela se torna mais livre das regras simbolistas ao passar dos anos. Mas nunca conseguiu aderir ao Modernismo.
Segundo Mário de Andrade, Bandeira é o São João Batista do Modernismo. Pode-se entender de forma ambígua esta afirmação. João Batista abriu o caminho para Jesus, ocupando lugar secundário no cristianismo, exceto entre os mondéus. Bandeira seria então aquele que abre caminho para Mário? A resposta fica no ar. Melhor entender que ele não abre caminho para ninguém especificamente, mas para o movimento modernista.
Manuel Bandeira faz o que deseja com a poesia. Compõe poemas com versos de nove sílabas. Em alguns, livra-se da métrica e da rima obrigatória. Transita pela tradição poética, escrevendo versos à moda medieval e renascentista. Em “Solau do desamado”, ele é medieval: “Donzela, deixa tua aia,/Tem pena do meu penar./Já das assomadas raia/O clarão dilucular,/E o meu olhar se desmaia/Transido de te buscar./Sai desse ninho de alfaia,/ — Céu puro de teu sonhar,/Veste o quimão de cambraia,/Mostra-te ao fulgor lunar./Dá que uma só vez descaia/Do ermo balcão do solar/Como uma ardente azagaia/O teu fuzilante olhar”.
Em “Paráfrase de Ronsard”, ele escreve à moda renascentista: “Foi para vós que ontem colhi, senhora,/Este ramo de flores que ora envio./Não no houvesse colhido e o vento e o frio/Tê-las-iam crestado antes da aurora”. Ao ler-se o primeiro livro de Manuel Bandeira, a sensação é a de que ele revela grande intimidade com a arte poética. De que ele é capaz de escrever o que deseja com versos sem perder o caráter lírico. Mais ainda: ele parece, em alguns momentos, brincar com a poesia, rimar sem querer rimar, mergulhar no que escreve e, ao mesmo tempo, ficar do lado de fora como observador.
De todos os poetas que escrevem entre 1915 e 1922, período de gestação do Modernismo, Manuel Bandeira é o mais inspirado e livre. Ele pode se movimentar no parnasianismo, no simbolismo e no modernismo com tranquilidade. Está no seu primeiro livro o famoso soneto “A aranha”: “Não te afastes de mim, temendo a minha sanha/E o meu veneno… Escuta a minha triste história:/Aracne foi meu nome e na trama ilusória/Das rendas florescia a minha graça estranha.//Um dia desafiei Minerva. De tamanha/Ousadia hoje expio a incomparável glória…/Venci a deusa. Então, ciumenta da vitória,/Ela não ma perdoou: vingou-se e fez-me aranha!//Eu que era branca e linda, eis-me medonha e escura/Inspiro horror… Ó tu que espias a urdidura/Da minha teia, atenta ao que o meu palpo fia://Pensa que fui mulher e tive dedos ágeis,/Sob os quais incessante e vária a fantasia/Criava a pala sutil para os teus ombros frágeis…”.
Valendo-se da sua condição masculina, ele vai mais longe que Gilka em sua sensualidade quase libertina. No “Poemeto erótico”, ele escreve: “Teu corpo claro e perfeito,/ — Teu corpo de maravilha,/Quero possuí-lo no leito/Estreito da redondilha...”. O poeta joga com as palavras e diz o que deseja. Ou em “Boda espiritual”: “No pensamento meu, amor, tu vives nua/— Toda nua, pudica e bela, nos meus braços”. O desejo carnal se atenua com a boda, que é espiritual, e com a condição de pudica, embora nua apenas no pensamento.
Ainda antes da Semana de Arte Moderna, ele publica “Carnaval”, seu segundo livro, em 1919. O título é sugestivo. Durante o Carnaval, o bom comportamento é suspenso. Vale tudo ou quase tudo. Bandeira revela seu lado lúdico e erótico nesse livro. O segundo poema tem o título de “bacanal”. O terceiro é o famoso “Os sapos”, no qual o poeta brinca com palavras simulando onomatopeias: “Enfunando os papos,/Saem da penumbra,/Aos pulos, os sapos./A luz os deslumbra.//Em ronco que aterra,/Berra o sapo-boi: — ‘Meu pai foi à guerra!’/–‘Não foi!’ ‘–Foi!’ – ‘Não foi’”. Em dois versos do mesmo poema, ele declara que “Não há mais poesia, /Mas há artes poéticas...”. De certa maneira, é o que defenderá Mário de Andrade em “A escrava que não é Isaura”, de 1925. A poesia não é escrava da forma. Sendo livre, ela pode se expressar em versos livres, sem métrica e sem rima. Bandeira ainda não chegou lá em seu segundo livro, mas, como João Batista, anuncia o modernismo no Brasil.
No poema “vulgívaga”, ele se arroja numa linguagem mais ousada. A palavra vulgívaga significa ”prostituta”, aquela que se utiliza da vulva para ganhar a vida. Insinua vulva vaga, duas palavras que toam pela inicial V. É uma mulher que fala no poema: “Não sei entre que astutos dedos/Deixei a rosa da inocência./Antes da minha pubescência/Sabia todos os segredos...”. O poeta usa de sutilezas para relatar a vida de uma meretriz que sabia dos segredos do sexo antes da adolescência e que, cedo, havia perdido a virgindade. E novamente ele toa colocando no mesmo verso ‘valhacoutos’ e ‘canalhas’.
O erotismo fica explícito em “A fina, a doce ferida”: “Pois que ardor pecaminoso/Ateou a esta alma perdida/A fina flor da ferida/Que foi a dor do meu gozo”. E a sensualidade impregna o livro: “Teus seios têm treze anos./Dão os dois uma mancheia...”. A palavra final significa porção que a mão pode abarcar. Ao mesmo tempo, sugere mão cheia. Mais adiante, em outro verso, “breve pé de menina”; e em outra estrofe: “Crês tu que os recém-nascidos/São achados entre as couves?.../Mas vejo que os teus ouvidos/Ardem... Finges que não ouves...”. Bandeira poeta, para uma adolescente já mulher, algo que hoje seria considerado abuso de vulnerável.
Não lhe falta humor e ironia: “Só eu possuo a ingênua arte/Das indefiníveis carícias...”. E a arte de rimar sem parecer: “Quando em êxtase os olhos viro./Ah se pudesses, fútil presa,/Sentir na dor do meu suspiro/A minha infinita tristeza!...”. Irônico ou cínico? Gilda de Mello e Souza e Antônio Cândido chamaram a atenção para algo inapreensível na poesia de Bandeira.
No poema “A dama branca”, o poeta se revela muito avançado para a época, sugerindo relações afetivas homossexuais: “Era... era o gênio da corrupção./Tábua de vícios adulterinos. Tivera amantes: uma porção. Até mulheres. Até meninos”.
Muito haveria ainda a comentar sobre os dois primeiros livros de Manuel Bandeira. Existe nele uma tendência à libertinagem, título, aliás, do seu quarto livro, já assumidamente modernista. Gilka Machado, com sua sensualidade não libertina, e Mário de Andrade, com seus arroubos pré-modernistas, estão nos dois primeiros títulos de Bandeira, porém com mais ousadia.

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