Incorporação da região norte fluminense à modernidade (IX)
- Atualizado em 09/07/2017 10:34
Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 09 de julho de 2017
Incorporação da região norte fluminense à modernidade (IX)
Arthur Soffiati
Viu-se, no artigo anterior desta série, como os jesuítas desempenharam fundamental papel de serviço público ao manterem limpos os canais naturais da baixada de Campos. Viu-se também como esse serviço ficou a cargo eventual de cada proprietário rural depois que a Ordem dos Jesuítas foi expulsa do império colonial português, em 1759. Vimos também os comentários do capitão cartógrafo Manoel Martins do Couto Reis sobre a importância dos jesuítas na limpeza dos canais, muito embora ele não simpatizasse com os jesuítas. Couto Reis instava que as câmaras municipais exigissem dos proprietários tal desobstrução ou que elas próprias empreendessem esta limpeza. Couto Reis é um ilustrado, embora sem muita consciência disso.
Antes de ingressarmos no século XIX, detenhamo-nos um pouco mais nas considerações de Couto Reis. Ainda tratando da barra do córrego Furado, ele observa que, “se aquelas águas de tantos córregos e rios tivessem mais expedição, quero dizer, não corressem coadas ou não sofressem o embaraço dos preditos vegetais, parece natural que fosse mais acelerado o seu movimento e mais avultados os volumes expedidos: logo, também, teriam mais peso e consequentemente se multiplicariam suas forças e velocidades. Nestes termos, é fácil de persuadir que, aumentada a força da correnteza das águas na barra, não só se esgotariam mais depressa, como também resistiriam por mais dias os impulsos do mar agitado pelos ventos contrário para não se tapar.”
Continuando, ele registra com acerto: “Além desta barra do Furado, abrem outra no Iguaçu quando entendem ser necessário, o que conseguem com muita facilidade (...) a meu parecer julgo que discorre aquele rio (Iguaçu) por um plano inferior a todos os mais, tanto assim que, estando a barra do Furado tapada, todas as águas pendem para ele.” Algumas observações se impõem. Primeira: a barra do Furado ficaria mais tempo aberta se houvesse mais volume de água doce acumulada a escoar para o mar. Segunda: o grande volume de água doce enfrentaria o mar por mais tempo. Terceira: a barra do Açu, segundo ele, funcionava como escoadouro auxiliar ao Furado.
A informação de Couto Reis quanto à periodicidade da abertura da barra do Iguaçu é contraditada por vários autores. Tomarei apenas o testemunho de Alberto Ribeiro Lamego, talvez o maior conhecedor da região: “Parte dessas águas [da lagoa Feia] junta-se às do Paraíba nos velhos braços do primitivo delta que sulcam a planície da Boa Vista, formando os rios Carapebas, do Viegas, do Furado, Bragança, Quebra-Cangalhas e o córrego da Tapagem (...) Com exceção do Carapebas que se dirige para a barra do Furado, o caminho natural dessa rede labiríntica era o rio Açu (Iguaçu) que também recebe na margem esquerda o rio Novo e vai buscar uma saída para o mar, num tortuoso curso entre restingas (Geologia das quadrículas de Campos, São Tomé, Lagoa Feia e Xexé. Boletim nº 154. Rio de Janeiro: Departamento Nacional da Produção Mineral/Divisão de Geologia e Mineralogia, 1955). De acordo com este autor, a barra ficava permanentemente aberta. Couto Reis também não se refere à barra Velha, na lagoa do Lagamar, que abria para o mar naturalmente com a força de águas de cheias. Devemos desculpar o cartógrafo. Ele passou dois anos no Distrito de Campos dos Goytacazes, cuja área corresponde hoje ao que denominamos norte-noroeste fluminense. Para conhecer profundamente esta complexa região, é preciso mais tempo.
Dentre os defluentes que partiam do Paraíba do Sul em direção ao Iguaçu estava o córrego Grande ou do Cula. Relata Couto Reis que os jesuítas pretendiam adaptá-lo à navegação e ao escoamento de águas de cheia em direção ao Paraíba do Sul, mas que o povo se opôs ao projeto, temendo que uma abertura permanente dele junto ao Paraíba do Sul inundaria a vila de Campos durante as cheias. Couto Reis informa que sua ligação com o grande rio foi tapada pelos moradores. O cartógrafo pondera que os jesuítas devem ter feito estudos detalhados para tal proposição, e os apoia quanto à abertura para a navegação e para o escoamento de águas de cheia.
Couto Reis procurou o projeto dos jesuítas na Câmara Municipal, que o rejeitou, e não o encontrou. Ele pergunta por que os jesuítas executariam uma obra que, a acreditar no povo da vila, alagaria as terras da própria ordem religiosa. Além do mais, ele pergunta por que a Lagoa Feia não provoca tamanha inundação. Por experiência, o povo percebia que o terreno da margem direita do Paraíba do Sul é mais baixo que o nível de transbordamento deste rio e que, uma vez extravasadas, corriam para a interligada bacia do Iguaçu pelos defluentes. O próprio Couto Reis reconheceu que “discorre aquele rio (Paraíba do Sul) por um plano inferior a todos os mais...”
Enfim, o povo de Campos estava certo. Os jesuítas e Couto Reis estavam errados. Pesquisadores do futuro iriam dar razão aos primeiros e desacreditar os segundos e o terceiro.

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

    Sobre o autor

    Aristides Soffiati

    [email protected]