Arthur Soffiati - Engenhos, açúcar e doces (final)
Arthur Soffiati - Atualizado em 18/10/2021 18:35
O Estado dedicou à cana uma quantidade suntuosa de oferendas. A 20 de janeiro de 1860, Inácio Pereira da Silva escreveu à Câmara Municipal de Campos comunicando que o Governo Imperial havia importado mudas de cana das ilhas Réunion e Maurícias para distribuí-las aos fazendeiros, encarecendo que eles fossem avisados. Já em meados do século XIX, Ribeyrolles declarava: “Pode-se dizer que a cultura principal da imensa planície campista é o açúcar. Tudo se subordina e sacrifica à indústria privilegiada da cana, e não há disso o que admirar. O trabalho procura sempre as melhores circunstâncias, estuda o valor comercial das mercadorias, e nas operações não segue mais que a lei da venda [...]. Hoje, a criação de gado não é mais em Campos uma indústria importante. Algumas fazendas a conservam, com a maior parte das raças degeneradas. Já não se exporta mais e, ao contrário, recebem-se animais da província de Minas [...] O milho, o feijão preto, a mandioca, o arroz, os diversos cereais alimentícios são apenas cultivados para as necessidades locais e não dão para muito tempo. Despreza-se o anil, o tabaco, o algodão, o cacau, a cochonilha, que produziam tão bem, e mesmo pouco se cuida da indústria dos queijos. Somente se fabricam doces (Ribeyrolles, Charles. “Brasil pitoresco”, 2º vol. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1980).
A modernização do parque industrial, no último quartel do século XIX, com o advento dos engenhos centrais e das usinas movidas a vapor e com o declínio dos antigos engenhos, promoveu a reordenação da produção. As diversas comissões de saneamento, especialmente o Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS), envidaram todos os seus esforços para incorporar terras ao cultivo da cana. Pouco a pouco, os canaviais foram se alastrando sobre a planície fluviomarinha, galgando os tabuleiros e subindo a serra. Nessa marcha, eles exigiram o dessecamento total ou parcial de brejos e lagoas e a derrubada da cobertura vegetal nativa.
Numa conferência proferida em 1919, Magarinos Torres Filho traçou o perfil das 33 unidades industriais sucroalcooleiras do Estado do Rio de Janeiro. Delas, só a de Wilson localizava-se em Resende. As outras 32 ficavam no Norte-Noroeste Fluminense. Para alimentar as moendas, eram imperiosos a expansão da área plantada e o aumento da produtividade. Era necessário drenar lagoas para incorporar terras à economia (Torres Filho, Arthur E. Magarinos. “Indústria açucareira em Campos”. Rio de Janeiro: Tip. e lit. Pimenta de Mello & C., 1920).
A região toda se tornou a maior produtora de açúcar do Rio de Janeiro e uma das maiores produtoras do Brasil. É evidente que a produção não visava a doçaria, mas a exportação interna e mesmo externa, comércio que se consolidou já na colônia. Contudo, a doçaria regional se beneficiou do açúcar e se tornou uma das mais prestigiadas do país. Sobretudo Campos se destacou na produção de doces, como notou Ribeyrolles em meados do século XIX. Ele exagera em dizer que só se fabricavam doces. Na verdade, a doçaria se beneficiava dessa produção em grande escala.
Doces como o chuvisco, a goiabada cascão, a tijelinha, o tronco etc projetaram Campos no cenário nacional. A doçaria campista tem forte origem portuguesa, mas adquiriu também características próprias. No século XIX, foi publicado pelo Monitor Campista o livro “Doceira campista: novo guia manual para se fazer todas as qualidades de doces”, que a Câmara Municipal de Campos e a Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima lançam em edição fac-similada (Rio de Janeiro: Autografia, 2021).
Cada caderno de receitas de cozinheiras e doceiras de Campos é um verdadeiro livro de culinária, sobretudo de doçaria. Em 1977, Regina Costa Niemeyer lançou “A doce anfitriã” (Itaperuna: Damadá), com prefácio da nossa querida Conceição Muniz. De forma espirituosa, Regina homenageia pessoas cujos pratos ganharam assinatura individual, como Marília Aguiar, Beth Linhares, Dagmar Landim, Regina Cardoso de Melo, Amélia Medeiros, a famosa Marta Lorenz e outras apenas com o nome, mas sem o sobrenome.
“Doceira campista” reflete os doces mencionados no “Dicionário do doceiro brasileiros”, de Antonio José de Souza Rego, publicado em 1892 (São Paulo: Senac, 2010). Nele, vamos encontrar receitas de ambrosia, baba de moça, biscoitos, cabelo de anjo etc. A doçaria brasileira, campista e az de outras regiões refletem a doçaria portuguesa. Em “Doçaria conventual do Alentejo”, de Alfredo Saramago (Sintra: Colares, s/d), encontraremos aletria de ovos, barriga de freira, arroz doce, bombocado, fatia parida (nossa rabanada), manjar branco, papo de anjo, fios de ovos, queijadinha e tijelas. A formação do Império Colonial português não só levou doces tipicamente portugueses (considerando a contribuição árabe) para lugares distantes de Portugal, como assimilou contribuições locais. De todos os domínios lusos, o maior foi, sem dúvida, o Brasil. Nele, a culinária e notadamente a doçaria portuguesa incorporaram elementos novos, como as frutas. Joyce Galvão dedica um livro às frutas que passaram a integrar a confeitaria portuguesa, em “Ingredientes para uma confeitaria brasileira” (São Paulo: Companhia da Mesa, 2021). Entre as frutas, ela menciona cambuci, jatobá, grumixama, cereja-do-rio-grande, pitanga, juá, sapoti, butiá, umbu e jenipapo. Entre as farinhas e cereais, elenca fubá, pixé, araruta, mandioca e babaçu. Como adoçantes, menciona o mel. A contribuição das nações indígenas foi maior do que se supunha. Pesquisas recentes vêm demonstrando a força da influência nativa, principalmente da nação guarani.
Por fim, as nações africanas trouxeram a sua contribuição, que é enorme e merece um artigo dedicado a ela.
(Texto redigido por ocasião do lançamento de “Doceira campista: nova guia manual para se fazer todas as qualidades de doces e algumas iguarias”. Edição fac-similar de 1890. Prefeitura e Câmara Municipal de Campos. Rio de Janeiro: Autografia, 2021).

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