Crítica de cinema - O passado condena
25/03/2019 18:11 - Atualizado em 27/03/2019 16:35
(Nós) — Em “Nós” (“Us”), seu segundo filme, Jordan Peele confirma seu empenho em roteirizar e dirigir filmes autorais. Seu tema é o racismo nos Estados Unidos, assim como no caso de Spike Lee. Mas enquanto este costuma adaptar roteiros e combater o racismo de maneira moderada, Peele escreve seus próprios roteiros e mostra que o racismo continua pulsando forte na sociedade norte-americana. Enquanto Spike Lee vale-se de uma linguagem direta, Peele recorre à metáfora, à parábola. Além disso, ele escolhe o gênero “terror” para se expressar. Na minha acepção, o verdadeiro filme de terror deve ter o ingrediente do sobrenatural. Em Peele, também o terror é uma metáfora. O que ele pretende estampar para todos é que o terror é a melhor maneira, ou uma das melhores, de retratar a sociedade norte-americana.
Por mais que “Nós” revele uma boa direção e fotografia, o mais destacado nele é o roteiro. É a metáfora aterrorizante do racismo na sociedade norte-americana. O foco de Peele, em “Nós”, é um casal negro de classe média que tem casa de praia para veranear, automóvel e lancha. Adelaïde (Lupita Nyong’o) é a esposa e mãe e Gabe Wilson (Winston Duke) é o marido. O casal tem dois filhos: uma menina e um menino. O centro do filme é ocupado por Adelaïde, que tem uma trajetória de vida, a partir do momento em que se desgarra dos pais, em 1986, na mesma praia em que, adulta, terá uma casa de veraneio. Por conta desse passado, ela não gosta da praia.
Ao perder-se dos pais, ela chega à beira do mar em noite de tempestade com raios. Num roteiro de clichês, o espectador é levado a pensar que a menina vai se afogar. Mas ela se refugia numa espécie de sala de espelhos num tempo em que se falava de uma América com um povo de mãos dadas. Lá, ele vê a sua própria sombra fantasmagórica. Com um corte temporal longo, o casal aparece dirigindo-se para o passeio. Na praia, a família encontra outra família com duas filhas adolescentes, todos brancos e não racistas.
Adelaïde estudou balé quando adolescente. Sua família agora se relaciona com brancos. Mas, afinal, onde já se viu negro praticar balé, constituir família, fazer parte da classe média, ter automóvel, casa de praia, lancha e amizade com brancos? Onde já se viu branco ter amigos negros? Adelaïde é uma mulher de pressentimentos desde que viu sua imagem monstruosa no espelho quando criança.
Mateusinho
Mateusinho
O rumo da história muda quando a própria família de Adelaïde aparece em sua casa numa noite, em forma de duplo. Lembremos que o duplo é um recurso que aparece em escritores célebres, como Alexandre Dumas, Joseph Conrad e Gastão Cruls. O duplo assusta, infunde medo e terror. Volto a mencionar “A inocente face do terror”, filme de 1972 dirigido por Robert Mulligan. Os gêmeos aterrorizam.
Em “Nós”, o duplo de Adelaïde tem uma voz cavernosa e usa uma tesoura como arma. A partir de então, o filme mostra a que veio: revelar que o negro continua a ser assombrado pelo fantasma da escravidão, que os brancos tolerantes continuam a discriminar o negro, que a sociedade dos Estados Unidos continua dividida e racista. Os novos negros e brancos são perseguidos e assassinados pelo seu passado. Fugindo dos seus fantasmas, Adelaïde rememora sua trajetória de vida. Fugindo da sala de espelhos, ela cruza por pessoas que se comportam com zumbis. A melhor representação de um vivo-morto é a do zumbi, pois ele não pensa por conta própria e age como a maioria silenciosa. Foi o que quis mostrar George Romero em “A noite dos mortos-vivos”, filme de 1968 que mudou o perfil do zumbi.
Lá está a longa fila formada por zumbis brancos de mãos dadas. A América de supremacia branca, bloqueando a ascensão social do negro. O passado destes voltando para lembrar a escravidão. Esta é a minha interpretação para “Nós”, filme que exige muita atenção do espectador, acostumado a roteiros explícitos.

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