Lili, ou índia Catarina?
- Atualizado em 19/07/2018 18:03
“Gil de Góis da Silveira funda na foz do Itapemirim a Vila de Santa Catarina. Mas o sensualismo racial do português perde-o em terra virgem. Afável com os índios, consegue domesticar alguns. Entre esses, acolhe uma menina filha de um cacique e batiza-a com o nome de Catarina. E repete-se o inevitável de quase todo o senhor de engenho ante a graça da mulher estranha. Vela, porém, a esposa castelhana do donatário, Dona Francisca de Aguiar Manrique. Durante uma viagem de Gil de Góis, o tronco e o chicote vingam os ciúmes da espanhola arrebatada. A índia foge para as cabildas e ante o seu corpo ensangüentado, os índios se exasperam contra a selvajaria do branco. E por um novo levante em massa, a colônia é inteiramente destruída”. Alberto Ribeiro Lamego; “O Homem e o Brejo”.
Faz tanto tempo... Já vai longe a época em que o barulho era episódico, enquanto o silêncio uma dádiva, que esticava ao longo do dia. Ah! O casario... Também, como mudou! Por que findou o período dadivoso? Quão bela era a minha Cidade! Seriam os meus olhos adolescentes, que viam a Rua Gil de Góis assim envolta num halo de beleza? Ou era a presença de Lili, que lhe emprestava a atmosfera de sonho bom? Uma lembrança tenho bem nítida: a quietude. Aquela espantosa paz decorrente da ousada fuga das aulas. A loucura responsável pelo silêncio repousante quebrado, de quando em quando, pelo pregão do vendedor de pirulitos!
— Neném, você choroooô? Você chora, mamãe compra, papai paaaaga...
Lili estudava no Colégio Bittencourt. Eu ostentava, orgulhosamente, a desbotada farda do velho Liceu de Humanidades de Campos. Logo após a balbúrdia dos estudantes, que saíam do segundo turno, voltava, como um manto protetor, o silêncio. O aconchegante silêncio vespertino que eu e Lili descobrimos, encantados, em nossa quadra amorosa. Levávamos horas e horas, que pareciam minutos, no itinerário que ia da lírica Pracinha do Liceu à Praça São Salvador, onde nos separávamos entristecidos. E voltávamos para as nossas casas, sem importar com as duras reprimendas dos nossos pais. Por que não viver o mágico silêncio, no silêncio da tarde, do nosso sonho de olhos abertos a retardar a caminhada, se era possível multiplicar os passos indo de um lado para outro? Ora, colhia uma flor nas chácaras, que espiavam os transeuntes ao longo da Rua Gil de Góis para, sem pressa, colocá-la nos negros cabelos de Lili. Ora parávamos para gozar a sombra fresca de uma árvore e para nos mirar... estudando, enlevados, a topografia dos nossos rostos adolescentes...
O fauno de hoje não entende a pureza do sátiro de ontem. O palrador de agora é quase um estranho diante do liceísta que, outrora, deixava que o vento nordeste falasse por ele, tocando as árvores, com o seu hálito perfumado das flores da primavera... O fauno existia latente, sem dúvida, no colegial. Mas Lili era sagrada. Nunca fomos além de longos apertos de mão, de beijos fugidios, que os nossos lábios molhados pela seiva dos verdes anos davam, num relance, uma dimensão abissal! Arrebatados eram os nossos olhos, entrelaçando as nossas almas...
O silêncio nos levava, muitas vezes, às regiões distantes, na afanosa busca de outros tempos. Talvez não vividos, mas sentidos intensamente quando os nossos olhos se voltavam para o céu! Ah! Esvoaçante adolescência, folha de papel à mercê do ar em movimento, como que brincando de pique! Momento mágico em que eu e Lili nos tornávamos seres alados a habitar, em nosso sonho de olhos abertos, telhados batidos pelo vento nordeste, amenizando a canícula. Ah! O poder do silêncio dos que sonham. Sendo bem possível que chegue até fazer da fantasia a mais autêntica realidade. Certa feita, sentimos que estávamos construindo o nosso ninho no carcomido sótão de abandonada casa centenária, só para nos deleitar, mais de perto, com o súbito estremecimento do ar ao se render com a alegre revoada das andorinhas... Que custo voltar a perambular docemente pelas ruas campistas de volta para as nossas casas!
Mas o salto para outras esferas ocorria sempre no Jardim de Alá, outrora cheio de árvores e flores. As águas do Canal Campos-Macaé eram límpidas e, em suas margens, deitávamos sobre a grama, à sombra de alguma árvore frondosa, para contemplar, silentes, o colorido dos ipês amarelos, na tarde calma. Quantas vezes, nesses momentos de pura contemplação, me vi na pele do nobre português Gil Góis da Silveira. O céu azul era o mar e os ipês floridos eram caravelas de ouro resplendentes aos últimos lampejos do Sol. Nessas ocasiões, Lili era a índia Catarina e me olhava, distante, no clarão de um amor impossível.
Não sei se foi pura fantasia de adolescente, mas me pareceu, tantas e tantas vezes, que Lili adivinhava os meus pensamentos, mesmo fora daqueles instantes em que, mudos, nos fitávamos perdidamente. Deitados na relva, eu e ela sonhávamos intensamente. E nós dois, como arremedos de deuses infortunados, vivíamos o avatar de uma outra vida, em que me revestia da condição do desventurado filho de Pero de Góis e ela do modo de ser da doce índia Catarina. Bem me lembro quando encontrei a indiazinha na mata virgem. Lembro-me ainda quando a batizei, dando-lhe o nome de Catarina. O seu crescimento, como num calidoscópio, se desenrolou diante dos meus olhos atônitos. Cresceu em meu peito, também, a paixão pela afilhada. Sofri, nas entranhas da minha alma, o desenlace trágico. Adivinhei ao longe, embarcado numa distante caravela, as lágrimas da índia goitacá, rondando os destroços da Vila de Santa Catarina. Vi, finalmente, as lágrimas de Catarina nos olhos espantados de Lili!
— Você está chorando Lili?
— As minhas lágrimas são as da índia Catarina, murmurou, procurando conter a emoção com um sorriso triste.
Logo depois, levantou-se, entregando-me ternamente as maçãs do seu rosto corado para que enxugasse as suas lágrimas com os meus castos beijos. E assim começamos a desenhar o merencório quadro do nosso derradeiro encontro.
Depois...Ah! Quanta saudade... De mãos dadas, voltamos a deitar sobre a grama e juntos ficamos olhando perdidamente o céu azul, quase sem nuvens, querendo que o tempo parasse para que, eternamente, pudéssemos gozar a tarde morna e quieta.

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