Crime contra professor do Liceu denunciado em delegacia do Rio
Virna Alencar 25/03/2019 16:04 - Atualizado em 28/03/2019 14:08
Caso foi levado à DRCI
Caso foi levado à DRCI / Divulgação
O caso do professor de língua portuguesa do Liceu de Humanidades de Campos, Marcos Antônio Tavares da Silva, foi denunciado, nesta segunda-feira (25), na Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática (DRCI), no bairro Jacarezinho, no Rio de Janeiro. Acompanhando o educador, estiveram os deputados da Comissão de Educação da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), Flávio Serafini (Psol), que preside a comissão e já tinha anunciado que encaminharia o docente à DRCI e Waldeck Carneiro (PT), além de representantes do Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação (Sepe/Campos). O objetivo é apurar ameaças e possíveis injúrias, cometidas contra o professor, nas redes sociais, após a publicação, por um grupo de direita de Campos, de uma atividade aplicada aos alunos do 3º ano do Ensino Médio, na última quarta-feira (20), na qual aparecem o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro (PSL), e o dos Estados Unidos, Donald Trump, na cama, sob lençóis, com a bandeira estadunidense ao fundo. Ainda ontem, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), entidade representativa dos profissionais da educação básica do setor público brasileiro, publicou, por meio de nota, uma moção de solidariedade a Marcos Antônio, que foi afastado pela secretaria de Estado de Educação (Seeduc) na última sexta (22), dois dias depois do anúncio da medida. Em Campos, professores de diferentes correntes políticas comentaram o caso.
Segundo a diretora do Sepe/Campos, Graciete Santana, o sindicato acompanhou o professor na DRCI, conforme orientação jurídica e da Comissão de Educação da Assembleia Legislativa (Alerj).
— Estamos em defesa do profissional, que exerceu a sua autonomia pedagógica e liberdade de cátedra — disse
De acordo com Marco Antônio, desde que o trabalho proposto em sala de aula foi divulgado nas redes sociais, uma série de agressões e ameaças começaram a chegar até ele. “Estou sendo assistido por alguns órgãos de representação, porque tive a minha integridade física ameaçada. Estamos na delegacia e vamos denunciar o crime informático”, declarou.
Em moção de solidariedade ao professor, a Confederação disse que “de forma absolutamente sem precedentes na vida profissional desse educador, de mais de 15 anos de atividade no magistério, a Seeduc decidiu afastar o referido professor e abrir um processo de sindicância interno acusando-o de doutrinação ideológica. De forma acertada e legítima, o referido educador, que agora ganha a solidariedade de todos/as os/as educadores/as brasileiros/as, acusa a secretaria estadual de lhe impor uma censura. Defende-se de forma veemente falando o óbvio: alunos do 3º ano do Ensino Médio, que se preparam para o vestibular, devem, sim, desenvolver consciência crítica sobre a sociedade em que estão inseridos, e a proposta da atividade não era outra senão justamente essa. A partir de uma charge, provocar a reflexão crítica dos estudantes a partir de um dado de realidade comentado nos jornais de todo o país e mundo: as relações de proximidade entre os dois presidentes retratadas pelo artista em sua ilustração...”.
A imagem é acompanhada pela legenda “O Patriota”. Assinada pelas inicias V. T. (Vitor Teixeira), a charge é datada de 2017 e pode ser encontrada no site “Humor Político”.
Em nota emitida, na última sexta-feira (22), dia em que cumpriu o afastamento então anunciado, a Secretaria de Estado de Educação (Seeduc) afirmou que tomou a decisão de suspender o professor na quinta-feira (21), no entanto, desde quarta-feira já havia comunicado à imprensa. “Nesta sexta-feira, dia 22, foi aberta uma sindicância para apurar o caso. A partir de então, o professor ficará afastado das atividades até a conclusão do processo. Um docente será alocado para ministrar as aulas, sem necessidade de interrupção das atividades e do conteúdo da disciplina”, esclareceu em nota.
Um ato marcado para as 07h30 dessa manhã vai reunir representantes políticos e sindicatos, em frente ao Liceu, em apoio ao professor afastado.
Encontro - Na última sexta, Marcos Antônio foi recebido pelo deputado Flávio Serafini, na presidente da Comissão de Educação da Alerj. Na ocasião, o parlamentar, além de dizer que acompanharia o professor à DRCI, disse que cobraria explicações sobre o afastamento ao Estado.
Opinião - Na enquete promovida pela Folha da Manhã com professores universitários de diferentes disciplinas e instituições de Campos, públicas e particulares, mesmo os que não tendem a uma corrente política de esquerda, em sua maioria, enfatizaram a necessidade de liberdade de cátedra de professores, dento de sala de aula, na formação dos alunos.
 
Charge de Vitor Teixeira publicada em 19 de outubro de 2017 no site
Charge de Vitor Teixeira publicada em 19 de outubro de 2017 no site "Humor Político"
Adriano Moura, professor de Literatura do IFF
O afastamento do professor, pela utilização de charge que satiriza a visita do presidente brasileiro aos EUA, sem que tenha havido qualquer avaliação neutra do contexto em que se deu a atividade, é autoritária e atesta o quanto práticas antidemocráticos já estão implantadas informalmente no país, tendo como um dos alvos os profissionais de educação. Estudantes do terceiro ano do ensino médio possuem maturidade intelectual e cognitiva para elaborarem interpretações independentes. O enunciado que introduz a questão concede ao aluno total liberdade de análise, desconfigurando a tese de tentativa de doutrinação. A forma autoritária como se deu o afastamento do professor é mais uma prova de que alguns militantes de extrema-direita não almejam neutralidade ideológica, mas a imposição de mordaça aos profissionais de educação que apresentarem conteúdos que contestem o discurso ideológico que eles defendem, sustentado à base de censura prévia e punições arbitrárias.
Hamilton Garcia, professor de Ciência Política da Uenf
Em condições normais de temperatura e pressão, o trabalho do professor de Português do Liceu de Humanidades de Campos, sobre os sentidos do humor na linguagem chargista, teria passado desapercebido do grande público. Não fosse o detalhe de estarmos vivendo um momento de acentuada polarização política, onde o extremismo de esquerda encontrou, no bolsonarismo vitorioso, sua antítese. Nesse contexto, uma charge que mistura política com opção sexual, satirizando as ansiadas “relações carnais” dos presidentes Jair Bolsonaro e Donald Trump, tinha potencial para alimentar a batalha partidária em detrimento do trabalho proposto. Em todo caso, a liberdade de cátedra deve ser assegurada para o progresso da civilização. Mas, em contexto tão delicado como o atual, é preciso sagacidade para defendê-la. Exacerbar para “resistir” não parece ser o melhor caminho no momento.
George Gomes Coutinho, professor de Ciência Política na UFF
Vivemos um estado de coisas onde a opinião pública encontra-se gravemente adoecida no Brasil. O caso concreto do Liceu, onde uma charge foi utilizada como recurso didático e reflexivo para a elaboração de uma redação onde o texto seria produção e responsabilidade do próprio estudante, vemos mais um caso trágico e a vitória momentânea da ignorância e do moralismo. Há algo de ridículo. Carolas esperneando ante um desenho de dois homens em uma cama, após o presidente do país ter postado vídeo de sexo amador em seu perfil nas redes sociais. Todos esses chiliques soam como tentativa de eliminar de forma autoritária a crítica ao governo eleito em todos os espaços públicos. Um outro nome para isso é simplesmente censura. Talvez esse lamentável episódio do professor do Liceu seja mais um dos alertas que acendem insistentemente desde primeiro de janeiro do ano corrente e nos questione para onde nossa sociedade está caminhando.
Júlio Esteves, professor de Filosofia da Uenf
Um professor do Liceu foi afastado, em virtude da denúncia de ele ter usado uma charge com os presidentes Bolsonaro e Trump num abraço “afetuoso”. A acusação é a de que se trata de doutrinação de esquerda nas escolas públicas. Não creio que seja razão para afastamento do docente. Mas em carta ao G1 e à própria Seeduc, o docente relata que, depois de atuar por “quinze anos em várias escolas particulares e públicas (...) me deparei com uma situação na qual nunca imaginei passar (...)”. O correto seria ‘deparar com’ e ‘uma situação pela qual nunca imaginei passar’. A seguir, ele denuncia “a atitude covarde e descontextualizada em que postaram nas redes sociais (...)”. Mestre: o correto não seria ‘com que’ postaram? Isso vindo de um professor de Português. O MEC não deveria concentrar esforços no combate à inegável doutrinação de esquerda nas escolas por meio de doutrinação de direita. Mas, sim, avaliando constantemente os docentes e, principalmente, cobrando resultados.
Fernanda Huguenin, professora de Estudos sobre Mulheres e Gênero da Uenf
A exceção não começa com a instituição de normas e decretos, como o AI-5 em 1968. Começa antes, com a ampliação do conservadorismo nos costumes, a invenção de inimigos públicos a serem perseguidos e a ideia de uniformização da sociedade que, em nome da igualdade, pretende reduzir a diversidade. Essa é a receita do fascismo político. Na atualidade, a democracia está em crise no país e no mundo. No Brasil, a crise econômica aprofundou não apenas as diferenças sociais, mas teve um impacto direto nas lutas identitárias. Os discursos de ódio se fundamentam na discriminação, que pretende desqualificar e segregar os alvos do ódio, assim como conquistar adeptos. A perseguição aos professores não é exatamente uma novidade, mas tem se robustecido nos últimos tempos, reforçando também a desvalorização da profissão. Entendo que o afastamento do professor do Liceu é parte de um processo que já podemos classificar como um momento de exceção.
Igor Franco, professor de Economia da Estácio
A repercussão nacional do caso da charge de Bolsonaro e Trump demonstra que o acirramento ideológico que começa em 2014 parece não encontrar teto para seu acirramento. No Brasil, é inegável que o viés desse tipo de abordagem foi historicamente de ataques a pautas e figuras ligadas ao espectro direitista e invariavelmente enaltecendo a agenda e os políticos ligados à esquerda. Tal desproporção deu origem a iniciativas como o movimento Escola Sem Partido, movimento flertou com a censura ao propor um projeto de lei genérico a respeito do que o professor deveria abordar em sala de aula. Felizmente, tal iniciativa ainda não teve amparo legislativo. O afastamento do docente também me parece desproporcional à utilização questionável da charge. No máximo, o professor deveria ter sido orientado a tomar mais cuidados em tempos de redes sociais em que uma informação precisa de apenas alguns compartilhamentos para ganhar o país e, às vezes, o mundo.

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