Intelectual longa duração
* Arthur Soffiati 02/01/2020 18:28 - Atualizado em 08/01/2020 16:49
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Em vida, Mário de Andrade publicou vários livros cujas primeiras edições estou conseguindo adquirir aos poucos. Já maduro, ele planejou suas obras completas em 20 volumes, a serem publicados pela Editora Martins. Alguns títulos saíram quando ele ainda era vivo. O jovem que financiava a edição de seus próprios livros com dificuldade, agora estava consagrado. Ele não gostava dessa condição.
Mário morreu em fevereiro de 1945, com 51 anos. Espanta a sua capacidade de trabalho, pois, anualmente, desde sua morte, algum livro dele ou sobre ele vem sendo publicado. O baque de sua morte paralisou seus amigos. Refeitos, eles começaram a divulgar as falas ocultas do grande paulistano. Além de livros inacabados ou por organizar, pesquisas resultaram em novos títulos que Mário abandonou no meio do caminho. Sua discípula e amiga Oneyda Alvarenga se incumbiu de organizar alguns títulos planejados por ele, como “Música de feitiçaria no Brasil” (vol. XIII das Obras Completas) e “Danças dramáticas do Brasil (vol. XVIII das Obras Completas)” em três tomos. Ambos foram organizados por Oneyda.
Manuel Bandeira abriu a porteira ao desrespeitar o desejo expresso de Mário de só divulgar sua correspondência 50 anos depois de sua morte, ou seja, em 1995. Ele acreditava que todos os da sua geração estariam mortos e que a gigantesca correspondência passiva, ativa ou recíproca não feriria mais ninguém. Em 1958, Manuel Bandeira divulgou as cartas que Mário lhe endereçou. Não foi uma edição crítica, mas abria terreno para outros. Lygia Fernandes, que foi amante de Carlos Drummond de Andrade, mas não teve contato com Mário, fez de suas cartas duas miscelâneas.
O Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, ao receber o fabuloso acervo de Mário de Andrade, transformou-se numa oficina de onde trabalhos resultantes de pesquisas vêm oferecidos ao mundo intelectual. Sabia-se que Mário era grande, mas não se imaginou que ele era descomunal. É quase incontável o número de livros redigidos pelo paulistano além dos títulos que compõem sua obra completa. Antes que o pacote de cartas fosse aberto em 1995, muitos volumes já tinham vindo à luz. Suas cartas não eram como as que minha mãe escrevia para meus tios, falando do cotidiano e contendo a eterna reclamação do custo de vida.
Embora de maneira informal, Mário discutia sempre uma questão de ordem cultural. Ele estava sempre mobilizado em compreender o Brasil e em propor a atualização da cultura letrada à cultura popular. Por que escrever português de Portugal, se, no Brasil, havia um português nacional? Mais do que isso, um português em cada região. Por que continuar a produzir uma poesia artificial, quando o mundo geral e local fervilhava? Por que os compositores eruditos brasileiros viravam as costas para o Brasil profundo e compunham música europeia?
O IEB-USP decidiu padronizar a correspondência de Mário escolhendo os interlocutores mais expressivos para a compreensão do projeto cultural de Mário em vários volumes. Já vieram a público as cartas trocadas entre ele e Manuel Bandeira, Pio Lourenço Correa, escritores e artistas argentinos, Tarsila do Amaral, Henriqueta Lisboa, Luiz Camillo de Oliveira Netto, Newton Freitas, Alceu de Amoroso Lima. Muitos outros conjuntos de epístolas estão anunciados.
Em 2017, foi publicada a “Correspondência de Mário de Andrade & Newton Freitas” (São Paulo/Florianópolis: IEB-USP/UFSC). Newton Freitas e sua mulher fixaram-se em Buenos Aires. Ele serviu ao governo brasileiro, fez contatos com intelectuais e artistas argentinos e colaborou com jornais do país. Ele promoveu contatos para Mário de Andrade e publicou artigos seus. Nasceu entre ambos uma correspondência bastante franca. De um lado, o intelectual consagrado. De outro, um jovem promissor. Ambos se expressaram com bastante liberdade, pois não havia restrições ideológicas entre os dois. Ao mesmo tempo em que Mário critica Jorge Amado por sua adesão irrestrita ao comunismo, também critica o governo de Getúlio Vargas. Numa carta, ele comenta com amargura sua passagem pelo Departamento de Cultura de São Paulo: “Sempre tive uma letra grafologicamente linda, era uma delícia quando faziam o estudo dela, como era bonito por dentro, nobre, correto, leal, apaixonado, etc. Mas um dia veio o Departamento de Cultura e fui diretor de qualquer coisa e tive que deixar de ser apenas diretor de mim mesmo. A minha letra aos poucos foi se transtornando, e ficou na irregularidade dolorosa que tem hoje. Surgiram nela, os elementos da hipocrisia, da mentira, do disfarce, fatais nas intercomunicações políticas e administrativas”;
Em outra carta, Mário fala da sua copiosa obra: “A minha única facilidade é escrever com regularidade, sempre, nem que seja pra jogar fora. E disso vem a minha produção enorme. E também, esta produção, vem do princípio de transitoriedade da arte que me dei. Como jamais me preocupei de ficar, não faz mal a precariedade que vejo em todas as minhas obras”. Graças a este gigantismo intelectual e à inteligência, Mário ficou.
Já na correspondência com Alceu Amoroso Lima (“Correspondência Mário de Andrade & Alceu Amoroso Lima”. São Paulo: Edusp/Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2018), nota-se uma tensão entre Alceu, um católico fervoroso e conservador, e Mário, um católico de formação, mas que se afastou do catolicismo e se aproximou do socialismo. A polarização que divide a sociedade brasileira atualmente existia também na época de Mário, principalmente nos 15 anos em que Getúlio Vergas governou o Brasil como presidente e ditador. De um lado, estava o integralismo, que agregou muitos adeptos e simpatizantes. Alceu era seguidor de Jackson de Figueiredo, empenhado em recristianizar o Brasil por um catolicismo conservador. Ele se aproximou do integralismo. Mário, por outro lado, conseguiu uma independência intelectual invejável para uma fase polarizada da história do Brasil.
Mesmo assim, Alceu admirava a obra de Mário e sempre expressou essa admiração em seus artigos. Ele entendia que Mário estava seriamente empenhado em construir os alicerces para intelectuais e artistas buscando elementos da cultura popular. Bem mais que seus colegas, Mário tinha um compromisso com essa agenda. Daí, Alceu divisar com clareza a diferença entre Mário e os intelectuais preocupados apenas com sua obra.
Mas a grande discussão que permeia a correspondência desses dois intelectuais é a religião. Alceu era um fervoroso católico conservador que defendia o ensino religioso (leia-se católico) nas escolas públicas, além de dirigir a Ação Católica Brasileira. Ele apoiava o Estado Novo de Getúlio na esperança de conseguir seu apoio na recristianização do Brasil. Por outro lado, não se pode dizer que Mário ainda era católico. Ele continuava a crer em Deus e podia ser considerado um agnóstico. Do outro lado, os jovens intelectuais, entre eles Carlos Lacerda, pressionavam Mário a aderir ao marxismo. Ele até simpatizou com os ideais desses jovens, mas nunca conseguiu aderir sem hesitação a um dos lados. No futuro, Alceu será um crítico ardoroso da ditadura militar que se instalou no Brasil em 1964, enquanto Carlos Lacerda transformar-se-ia num conservador golpista.
Em 2019, veio à luz “Aspectos do folclore brasileiro” (São Paulo: Global), livro que Mário incluiu originalmente em suas obras completas como 13° volume e que acabou substituído por “Música de feitiçaria do Brasil”. O livro tem três partes: 1 — O folclore no Brasil; 2 — Estudos sobre o negro e 3 — Nótulas folclóricas. A primeira parte é um levantamento exaustivo e crítico da literatura sobre folclore no Brasil, como Mário gostava de fazer. Crítico, ele escreve: “Folclore no Brasil, ainda não é verdadeiramente concebido como um processo de conhecimento. Na maioria das suas manifestações, é antes uma forma burguesa de prazer (leituras agradáveis, audições de passatempo) que consiste em aproveitar exclusivamente as ‘artes’ folclóricas, no que elas podem apresentar de bonito para as classes superiores.”. Questiona a definição de folclore, que ainda não tinha consistência científica.
Em “Estudos sobre o negro”, ele mesmo se insere na condição de negro que já havia sofrido discriminação, e aponta Machado de Assis e Nilo Peçanha como expoentes negros. Mas erra o alvo ao dizer que o racismo derivava do preconceito contra a cor preta em geral. Segundo Mário, o preconceito contra a cor preta acabou se estendo ao negro. Mesmo assim, ele se mostra mais avançado que as lideranças do movimento negro, que já existia. Mas os provérbios que ele recolheu parecem desmenti-lo. Um deles diz: “As brancas são pra casar,/As mulatas pra foder,/As negras pra servir”.
E conclui: “Todas estas observações podem ser mesquinhas como elevação moral do homem branco ou muito interessantes como folclore, mas é realmente trágico a gente verificar que foi duma simples superstição inicial, uma questão de cores-símbolos, que o branco derivou o seu repúdio, a sua repulsa por toda uma larga porção da humanidade, as raças negras”.
Por fim, as “Nótulas folclóricas” reúnem apontamentos provavelmente decorrentes de reflexões e leituras. Ainda em 2019, saiu a segunda biografia de Mário com o título de “Em busca da alma brasileira”, de Jason Tércio (Rio de Janeiro: Estação Brasil), que ainda não pude ler. Nas vésperas do bicentenário da Independência do Brasil e do centenário da Semana de Arte Moderna, devemos esperar muitas novidades. Eu mesmo, na solidão da minha província, pretendo lançar três publicações: a segunda edição de “Mário de Andrade em Campos dos Goytacazes”, agora com as cartas de Alberto Frederico de Morais Lamego a Mário; artigos que escrevi desde 1980 sobre Mário e um opúsculo sobre os antecedentes da Semana de Arte Moderna.

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