Arthur Soffiati - Água e sociedade no Norte-Noroeste Fluminense (I)
Arthur Soffiati - Atualizado em 12/07/2021 17:23
Reflexão necessária
Seres vivos respondem a estímulos. Uma árvore não anda, mas suas sementes, sim. A semente de uma planta de mangue navega até encontrar local propício para se fixar: água salobra. Ela não subirá um rio ou uma serra. Certas plantas dos Alpes, sim, estão buscando altitudes mais elevadas pelo aquecimento que cria ambientes não propícios a elas. Os animais também reagem, mas dentro da sua adaptação a um ambiente. Podemos esperar certa flexibilidade nessa adaptação, mas de forma limitada. Podemos encontrar uma anta na Amazônia ou em florestas costeiras, mas não no deserto ou no mar.
O ser humano, individual ou coletivamente, também responde a desafios, não apenas de forma biológica, mas principalmente por meio de sua cultura social. As culturas originais são, em si, respostas a estímulos. A partir daí, a cultura deve ser considerada nas respostas aos desafios seguintes. Mesmo assim, existem fatores imponderáveis. Não podemos criar um conjunto de condições que estimulem resposta criativa num povo e não no outro. Não devemos à raça a falta de resposta ou respostas distintas, mas a fatores imponderáveis.
Povos pioneiros na América
A América foi o último continente a ser ocupado por grupos humanos. O estágio cultural desses grupos correspondia ao paleolítico superior. Eles já praticavam a coleta, a pesca e a caça com instrumentos especializados. A tese mais consistente a respeito da entrada deles na América mostra que foi pelo estreito de Bering no final do Terciário, quando Ásia e América estavam ligados. Teriam eles chegado por terra ou por mar, costeando o litoral. Seja como for, provinham da Sibéria, zona gelada da Ásia, e entraram na América na altura do círculo polar ártico. Para tanto, já haviam desenvolvido na Ásia uma cultura material que lhes permitia conquistar a América do Norte.
Grupos com cultura adaptada a ambiente gelado continuaram a viver na América. São os esquimós. Não sendo possível plantar, eles se dedicaram à caça com instrumentos especializados. Domesticaram o cão. Os grupos que desceram para latitudes mais quentes foram se adaptando às novas condições. Vários continuaram no nível do paleolítico avançado ou até mesmo perderam esse patamar em ambientes muito pródigos em recursos alimentícios.
Outros continuaram em nível paleolítico avançado com tecnologias adaptadas aos ecossistemas ou mesmo desenvolvendo tecnologias que caracterizam o neolítico. Mas deve-se ter o cuidado de não confundir esse neolítico com o euroasiático nem de descartá-lo como fazem alguns arqueólogos, alegando que, na América, a agricultura não está necessariamente à cerâmica. É possível encontrar cerâmica sem agricultura em certos grupos americanos porque a natureza é pródiga e inibe a agricultura, ao mesmo tempo que estimula a cerâmica.
Dois casos de cultura complexa na América são explicáveis: a civilização andina e a mexicana. A andina parece ser resposta a uma área alta, fria e aparentemente pobre em recursos. De fato, o alto da cordilheira dos Andes é excelente estímulo para respostas criativas de sobrevivência. O planalto da América Central também. Desenvolvendo-se civilizações nessas áreas, sua influência pode atingir pontos distantes do centro de origem. Essas culturas tiveram sua fase neolítica até desenvolverem obras que exigiam trabalho coordenado de muitas pessoas.
O caso ainda enigmático é o dos maias, na América Central. As vastas e densas florestas que ali se desenvolveram não estimulavam o nascimento e crescimento de uma cultura complexa porque os recursos naturais são abundantes. No entanto, a cultura maia dominou a floresta e ergueu monumentos impressionantes. Das três civilizações, foi a única a desenvolver um sistema de escrita e um calendário complexos. No entanto, a devastação dessa floresta parece ter sido a principal causa do declínio maia. O mesmo pode se dizer da civilização da ilha de Páscoa. A cultura desenvolvida pelos polinésios estava no estágio neolítico avançado. Ao se fixar numa ilha, ela pôde se desenvolver mais ainda. Contudo, parece certo que a destruição da natureza na ilha contribuiu para a decadência dos pascoanos ou rapa-nui.
Povos europeus na América
O caso dos europeus (espanhóis e portugueses inicialmente) é diferente. Eles não aportaram na América no estágio neolítico. A Europa Ocidental foi a única cultura no mundo a criar um sistema de produção em que o bem não atende apenas ao uso, mas principalmente à troca. A expansão que permitiu aos europeus tocar sobretudo por mar outros continente era animada pela economia de mercado. Em outros continentes, essa economia é que é desafiada, não a humanidade genérica. A conquista e a colonização europeias da América permitiu a ampliação da economia de mercado, mas representou perdas em termos éticos como a escravização de africanos e o massacre de povos pioneiros americanos. O lado mais negro da civilização ocidental cristã manifestou-se na América.
Povos pioneiros no Norte-Noroeste Fluminense
A região correspondente ao Norte-Noroeste Fluminense atual era habitada por povos da nação macro-jê, que também estavam presentes no sul do Espírito Santo e na Zona da Mata de Minas. Nessa grande área, os povos de língua jê encontraram ambientes os mais distintos, dando a eles respostas também distintas aos desafios que eles lançavam. Um caso peculiar, que nos leva a refletir sobre o paleolítico e o neolítico na América, verificou-se na ilha maior do arquipélago de Santana, diante da foz do rio Macaé. Durante um século, viveu nela um povo que não conhecia a agricultura e a cerâmica, apoiando-se na coleta, na pesca e na caça. Tecnicamente, ele se classificaria como paleolítico. Esse estágio cultural na Eurásia foi caracterizado pelo nomadismo ou seminomadismo, porque era necessário se deslocar quase que permanentemente em busca de comida. Contudo, no arquipélago de Santana, o povo que se instalou lá por cerca de um século com poucas incursões ao continente bastante próximo viveu em meio à fartura. A abundância de moluscos, crustáceos, peixes, répteis, aves e ovos permitiu o sedentarismo.
No continente, pesquisas arqueológicas vêm mostrando que os grupos pioneiros praticavam a cerâmica e conheciam a agricultura, mas não a praticavam pela abundância de recursos fornecida pela natureza. Tecnicamente, eles estariam enquadrados no estágio neolítico, que pressupõe o sedentarismo. Contudo, seu modo de vida era seminômade. Havia assentamentos e cemitérios, mas como pontos de referência numa imensa área a ser percorrida em busca de alimentos. Na zona serrana, esses povos já fabricavam instrumentos de pedra polida. A água era fundamental para todos eles. Na ilha maior do arquipélago de Santana, a água do mar fornecia alimento. No centro da ilha, uma fonte de água doce era suficiente para atender a população. No continente, da zona serrana à planície, os muitos rios e lagoas eram o habitat de invertebrados aquáticos, de peixes e de anfíbios, atraindo também muitos répteis, aves e mamíferos. As praias marítimas eram também exploradas.

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