Duas breves canções avulsas
* Arthur Soffiati 05/03/2020 17:35 - Atualizado em 24/03/2020 18:19
Na pequena cidade alemã de Rüdesheim, às margens do rio Reno, foi grande minha alegria ao saber que o mirante que eu visitava situa-se num bosque frequentado por Johannes Brahms nos seus passeios campestres. Uma placa com sua silhueta de perfil, a barriga, a longa barba e o charuto, continha um pequeno texto em alemão prestando a informação. Nesse parque, encontra-se um monumento patriótico terminado em 1883, celebrando a vitória da Alemanha sobre a França em 1871 numa guerra que promoveu a criação do Estado alemão.
Ele foi repetidas vezes convidado pela família Beckerath a passar temporadas em Rüdesheim, entre os anos de 1874 e 1895. Em 1883, ele compôs a sua terceira sinfonia em Wiesbaden, cidade vizinha de Rüdesheim. Em homenagem a Brahms, anualmente, celebra-se, em Rüdesheim, um festival em memória do compositor.
Mais tarde, já noite, entramos em Drosselgasse, ainda em Rüdesheim, e fomos jantar. Drosselgasse é um beco estreito e bastante conhecido por seus prédios antigos e restaurantes. Além de tudo, é encantador. O restaurante em que entramos oferecia música ao vivo, como os demais. No meio do nosso jantar, uma cantora com um acompanhante ao teclado iniciou sua apresentação. O clima era intensamente alemão. Mas ela não começou com música alemã, e sim com música de vários países cantadas em alemão, inclusive “Garota de Ipanema”, de Tom Jobim.
Quando ela principiou a entoar música alemã, os poucos frequentadores do restaurante começaram a se deslocar para perto da cantora e acompanhá-la. Inclusive, uma jovem garçonete articulava as letras sem que pudéssemos ouvi-la. O que notei foi a alegria dela. A música realçava sua beleza. Deviam ser letras contagiantes.
Mais uma vez, a figura de Brahms me veio à mente. Comecei a cantarolar baixinho a “canção de mesa” (Tafellietd), opus 93b. Trata-se de uma composição breve, de apenas 3:45 minutos, para coral misto e piano. O coro masculino responde ao feminino, para concluir a singela melodia em conjunto. Com letra de um grande poeta alemão, Brahms a compôs em 1885 para o cinquentenário da sociedade coral da comunidade em Krefeld. Assim era Brahms. Ele se comovia com as coisas simples do mundo tanto quanto era capaz de compor uma complexa sinfonia para as salas de concerto, exigindo muito das orquestras em sua execução.
“Tafellied” é uma canção delicada. Ela expressa a alegria das pessoas simples e os pequenos prazeres, como a alegria descontraída de beber. É um trabalho leve, mas que remete à Alemanha profunda, aquela que emergia no restaurante. Apercebi-me de como é prazeroso cantar uma canção simples que, em Brahms, sempre alcança as profundezas do coração.
Se existe um op. 93b, é de se supor que exista um op. 93a. E existe. São as “Seis canções e romances” (“Sechs Lieder und Romanzen”), com duração de 11:45m. Do a para o b, o salto é grande. As “Seis canções e romances” expressam o Brahms cerebral, grande conhecedor da história da música e da arte da composição. As seis canções para coro feminino à capela valem-se de recursos elaborados. A primeira delas remonta às origens do barraco, usando o ritmo agalopado das composições de Monteverdi.
Já o op. 93b é uma canção campestre e simplória, sem requintes de composição, propositalmente não utilizados por Brahms. É uma canção de camponeses, de pessoas comuns, que celebram a alegria da vida sem refinamentos. Mais uma vez, é a Alemanha profunda que aparece ali, a Alemanha que senti em Rüdesheim. Embora alegre, as lágrimas me vieram aos olhos. Não por tristeza, mas por emoção.
A música pura ou absoluta proposta por Wagner e atribuída a um compositor como Mozart, por exemplo, só existe na música de vanguarda. Wagner e Mozart não a praticaram, pois a ópera, gênero que frequentaram com assiduidade, é uma história musicada, assim como a dança. Se a história é contada pelo canto na ópera, na dança ela é contada pelos braços, mãos, pernas, pés, corpo e movimentos. O poema sinfônico pretende ser uma composição que conta uma história com sons instrumentais. Já na música de vanguarda, o experimentalismo normalmente presente não comove.
Assim, entre os compositores que não abandonaram a melodia, mas não compuseram óperas, balés e poemas sinfônicos, como o caso de Brahms, poder-se-ia falar em música absoluta ou pura? Entendo que não. Se Brahms não conta histórias com vozes, movimentos e instrumentos, expressa emoções diversas.
Há interpretações variadas para a “canção de mesa”. Gosto mais das que exprimem o estilo de Brahms: o piano introduzindo o coro com vigor e com certa rapidez, com o coro cantando com firmeza. Há algumas em que o pianista a inicia com as mãos moles, com o acompanhamento anêmico do coro. Um regente precisa conhecer o espírito do compositor que interpreta.
Naquela mesma noite, em Rüdesheim, evoquei também a “Cantata de casamento” (kleine hochzeitskantate), opus WoO 16, composta por Brahms para o casamento de Sigmund e Emile Exner, amigos do poeta Gottfried Keller. O casamento ocorreu em 1874. Brahms compôs a peça com letra do próprio Keller, que era seu amigo. Mas ela só foi impressa postumamente, em 1927.
Entre um grande romance e outro, Thomas Mann escrevia pequenos livros que eram verdadeiras joias. Brahms também. A “Cantata de casamento” é uma breve composição, de apenas de 1:20 minuto, para quarteto vocal e piano. Malcolm Mac Donald, em sua biografia de Brahms (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993), entende ser a “canção de mesa” mais esmerada que a “cantata de casamento”. É outro meu entendimento. A “canção de mesa” parece propositalmente composta de forma simples para expressar a emoção da alegria de modo também simples.
Já a “cantata de casamento” é uma composição circunstancial com as quatro vozes se contrastando em contraponto. Mais uma vez, retornamos à questão da música pura. Esta breve composição de Brahms é elaborada e transparece a claridade de um jardim à luz do sol em luminosa manhã, no quintal de uma mansão. A emoção transmitida por ela é a alegria, porém mais sofisticada do que a “canção de mesa”. Esta exalta a alegria do campo e o prazer de pessoas simples que se confraternizam com vinho.
A “cantata de casamento” expressa o meio urbano e sofisticado. A alegria de pessoas ricas e ilustres numa solenidade aristocrática. Embora breve, a canção é fascinante. O piano apenas introduz e acompanha as vozes, sem qualquer pretensão de virtuosismo. O virtuosismo brahmsiano não está no talento do intérprete como em Liszt, por exemplo, mas no conjunto musical. Ultimamente, existem pianistas e violistas se valendo dos concertos de Brahms para fazer performance. Nada mais contrário à concepção de Brahms sobre a sua música e a música em geral. Daí que, para interpretar as composições do grande alemão, o intérprete, seja ele instrumentista ou regente, deve conhecer o espírito do seu autor.

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