A vida que acontece entre dois cortes de cabelo
17/12/2022 | 14h00
Fonte: Pixabay.
Tenho sempre a impressão – e estou convicto do quão insólita ela é - de que os dias se passam abalizados pelos cortes de cabelo.
 
Você pode estar pensando: “ah, esse texto é só uma enrolação aleatória para fugir dos clichês de final de ano”, mas não é apenas isso. Se trata de uma filosofia oculta, à espreita, pronta para ser desenredada pelo primeiro filósofo de esquina capaz de notar suas vertentes axiológicas.
 
Isso porque a visita ao barbeiro funciona como uma espécie de limiar que inaugura um novo tempo para além do mero aparar dos pelos que me alargam a testa e já me faltam no cocuruto. Então o homem com a tesoura e o pente deixa de ser um profissional comum para se tornar, na verdade, uma espécie de guardião desse limiar que permite inaugurar uma nova aventura.
 
Estou viajando? Talvez. Mas este texto tem uma razão de ser, e ela parte do fato de eu sempre me colocar a refletir quando preciso ir ao barbeiro. E aqui vão meus motivos.
 
Tal estado de espírito se inaugura porque reluto ao corte: eu seria capaz até de aderir a uma coleção de chapéus para adiar essa situação. Primeiro, pelo claro fato de ser uma inconveniência sair de casa com a finalidade única de sentar numa cadeira e deixar que uma tesoura fique zanzando pela minha cabeça. Segundo, por sentir uma estranheza na relação que une dois completos desconhecidos que se encontram periodicamente para... um corte de cabelo!
 
Partindo dessa lamúria cabeleireirística, passei a compreender que o corte, além de algo íntimo – apesar de feito despudoradamente à luz do dia -, é também simbólico pelo gesto de se despir de algo inerente a si para dar espaço a outro ciclo, o que é consumado na varredura dos chumaços que ficam pelo chão.
 
Desde quando criança, tenho esse peculiar incômodo sobre a barbearia, as relações sociais que se criam nela e o fato de alguém estar a todo tempo controlando os movimentos mecanizados do meu pescoço sob a ameaça de um objeto cortante. Mas permaneço a precisar dos serviços, afinal, mesmo que hoje me falte cabelo em algumas áreas do coco, contraditoriamente as áreas cranianas em que ele ainda me sobra insistem em se tornar ambiente de trabalho do barbeiro.
 
Qual a jornada do herói, penso a exoneração capilar como o encerramento de uma trajetória para dar início a outra aventura marcada especificamente pelo monstro do limiar – o barbeiro – e pelo mentor que me guiará nesse início de trajetória – posso aludir a algum papeador que esteja na cadeira ao lado pronto para lançar um não solicitado conselho de vida.
 
Como para qualquer pessoa, abrir ciclos é sempre desgastante, daí tanta relutância minha para um rotineiro aparar de fios. Daí tamanho estranhamento quando me deparo com pessoas que se sentem tão à vontade no barbeiro que são capazes de passar horas nos ambientes cada vez mais gourmetizados que as barbearias estão virando – tudo para ocultar a amolação que é essa obrigação de se sentar na cadeira e fazer um breve e desinteressante comentário sobre o calor que está fazendo.
 
Para exemplificar a dificuldade das relações sociais na barbearia, preciso dizer que, quando conheci o atual responsável pelo exaurimento dos meus ciclos capilares, ele puxou papo falando sobre como é bom andar de bicicleta. Detalhe: eu não sei andar de bicicleta – calma, isso é tema para outro texto -, o que fez com que o assunto, já fadado ao fracasso, minguasse antes mesmo de nascer, mas com a desgastante necessidade de eu explanar o porquê de não saber me equilibrar em um eixo com duas rodas. Seria preferível um comentário sobre o calor lá fora, sem dúvidas.
 
Fato é que sempre acabo cedendo e me rendo à necessidade da tesoura para cortar o cabelo que ainda me resta e dar início a um novo ciclo – marcado por fios que insistem em parar de crescer toda vez. E todo o resto é intervalo enquanto o corpo humano faz seu silencioso processo de multiplicação para ser aparado e repetir tudo novamente. E disso somos feitos: intervalos de vivências entre uma ida e outra.
 
*Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Escreve aos sábados no blog Extravio.
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Para além das Academias de Letras
10/12/2022 | 14h01
Foto extraída da página da Academia Campista de Letras no Facebook.
 
Por ocasião da posse de Adriano Moura na Academia Campista de Letras – em sessão solene ocorrida na última terça-feira -, passei a refletir sobre a importância das nossas instituições culturais no panorama municipal e, mais ainda, qual o papel delas quanto a reunir significativas vozes do nosso tempo em um espaço de debate plural e significativo.
 
Começo por dizer que me parece ter ocorrido, durante um certo tempo, um afastamento de intelectuais em relação às nossas duas Academias de Letras – para citar apenas as principais instituições que têm por enfoque a literatura. Digo isso por notar que, historicamente, tanto a Academia Campista de Letras (1939) quanto a Academia Pedralva Letras e Artes (1947) passaram por crises para manutenção de suas atividades.
 
Segundo relatos de companheiros que compartilham comigo tais espaços, sei que a ACL chegou a ter seus trabalhos interrompidos durante algum tempo, ao passo que a Pedralva, sem parar suas atividades até hoje, enfrentou um esvaziamento similar no início deste século. Tais acontecimentos já somam alguns anos – ou mesmo décadas -, mas a questão que proponho aqui passa por pensar a importância dessas instituições e o impacto de seu esvaziamento para a cultura local.
 
A título de justificativa, quando mencionei, num parágrafo acima, o termo “intelectuais”, não o fiz como forma de insinuar que as Academias possuem o poder místico de transformar qualquer indivíduo em intelectual – nem que todos os seus membros assim se consideram -, mas como sinônimo de pessoas que são verdadeiras referências em suas áreas de atuação.
 
Antes de prosseguir com a discussão, vale a reflexão que várias pessoas já me trouxeram: Campos possui tamanha representação literária a ponto de possuir mais de uma instituição para abrigar seus escritores? Respondo que sim e que não: sim, porque o município possui, desde o século XIX, uma profusão de intelectuais, obras e veículos de imprensa relevantes, além do fato de suas Academias de Letras terem raízes absolutamente distintas que justificam suas existências; não, porque vejo com ressalvas o fato de escritores que não encontram assento nas instituições já existentes quererem fundar suas próprias entidades culturais e fingir que elas possuem a mesma importância para o cenário local.
 
Dito isso, volto para a temática inicial: por que os intelectuais se afastaram das instituições durante certo tempo? Palpito: os espaços acadêmicos podem parecer ambientes de mero desfile de vaidades para fazer cafuné no próprio ego, além de, a depender do ponto de vista, parecerem espaços em que não se produz nada de relevante cultural e academicamente.
 
Esses argumentos, além de precipitados, são reducionistas a ponto de desconsiderar a história das nossas instituições e dos nomes que por elas passaram, mas trazem à tona o intrigante fato de ser esse um estereótipo aceito por muitos que se negam a frequentar tais espaços, apesar de possuírem relevância intelectual para contribuir com ideias e ações relevantes.
 
Todas essas questões se renovam em minha mente quando Adriano toma posse na ACL, dada a relevância de sua obra literária, universitária e teatral. Ouço de muitos que a chegada dele é tardia e tenho que concordar. Mas devo apontar igualmente que nossas instituições precisam, cada dia mais, enfatizar suas histórias e se mostrar disponíveis para contribuir com a defesa das expressões artístico-culturais do nosso município.
 
De nada vale nos fecharmos em nossas reuniões para compartilharmos ideias e escritas com companheiros de Academia se não alcançamos a população e não integramos as expressões advindas dela no escopo da instituição. Esse trabalho feito num cômodo fechado em quase nada contribui com as reais finalidades de uma instituição cultural.
 
Para tanto, as históricas Academias de Campos possuem o constante desafio de enfatizar seus objetivos constitutivos para seguir escrevendo a história, cabendo aos acadêmicos – e eu me incluo nesse dever – apresentar socialmente suas contribuições e estimular a participação da comunidade para fazer valer o honroso título que possuem. Isso se mostra possível, como vem sendo feito, por meio do diálogo com o poder público, com universidades e com instituições culturais correlatas que se juntam na história recente – como o Instituto Histórico e Geográfico de Campos, a Associação de Autoras e Autores Campistas e a Academia de Letras do Brasil Seção Campos.
 
Penso, portanto, que as instituições culturais campistas devem se dedicar ao cumprimento constante da função social que possuem enquanto guardiãs da memória de um município que foi berço de veículos como o Monitor Campista e de intelectuais como José do Patrocínio, José Candido de Carvalho e tantos outros nomes ainda vivos e que ainda estão por vir. Logo, a importância cultural das Academias é de salvaguardar nossas manifestações culturais e defender a expressão literária campista, o que passa pelo estímulo para surgimento de novos autores e de ações para garantir espaço para cada um, além da constante observância do acesso à cultura e à educação.
 
Para isso, é preciso que outras importantes vozes da literatura campista se juntem aos atuais acadêmicos para entender que as instituições - para além dos egos e interesses individuais – são espaços que precisam ser ocupados para debater formas de salvaguardar nossa memória e, com ela, nossa identidade.
 
*Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
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Agora, mais do que nunca, vai!
19/11/2022 | 14h53
Brasil joga contra a seleção da  Colômbia  na arena Castelão em Fortaleza (Marcello Casal Jr/Agência Brasil)
Brasil joga contra a seleção da Colômbia na arena Castelão em Fortaleza (Marcello Casal Jr/Agência Brasil) / Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Contrariando as frustrações políticas e futebolísticas promovidas pela seleção brasileira na última década, não tenho dúvidas de que estamos prontos para a embriaguez utópica e alienante desta Copa do Mundo.

2018, pelo menos pra mim, foi uma Copa sem registro na memória, o que é absolutamente normal para quem vivia o luto do 7 a 1 misturado com a perda da camisa canarinho pra um pessoal com quem eu não desejava – e ainda agora não desejo – ser associado.

Então meu intervalo entre a última Copa e esta é um tanto maior, o que é ótimo para deixar no passado as lástimas e reapropriar os símbolos, que vêm junto com as esperanças – apesar de uma lateral (extrema) direita um tanto duvidosa.

Não vou ficar enrolando pra dizer que, como é repetido desde 2006, neste ano o hexa vem. Pronto. Ilusões fazem bem, ainda mais em tempos tão excruciantes.

Eu já preparei a camisa amarela, completei o álbum desde setembro e estou tentando fazer uma agenda para ver os jogos – de verdade, sentar e assistir, sem papos paralelos e interrupções que possibilitem quebrar a energia da vitória.

Uma coisa é certa: se ganharmos, eu já estarei esperando a sétima estrela em 2026, mas, se perdermos – hipótese absurda - , eu seguirei esperando a sexta sem problema algum.

O que eu realmente sinto é que precisamos de algo para suturar as feridas remanescentes de um corte profundo e tentar deixar para trás tudo que fez mal nesses tempos estúpidos. Precisamos da embriaguez coletiva que minimiza as diferenças e concentra o fanatismo no futebol – ao menos por um mês.

Ou seja, só reclamo do Daniel Alves para não perder a tradição de dizer que o técnico da seleção errou – algo me diz que isso dá sorte -, mas já estou aqui torcendo pelo hexa com a mesma crença ingênua de quem acreditou numa vitória sobre a Alemanha em 2014. Mas agora vai!

*Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
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Patriota
12/11/2022 | 14h00
Não havendo nada além de uma nesga de desesperança, ele entrou em casa, olhou em continência para o espelho – o sol que invadia a janela fazia reluzir pelo cômodo o amarelo de sua camisa – e percebeu que passara dias na lida vazia de querer o egoísmo contra a possibilidade de olhar seus semelhantes não apenas pelas semelhanças, mas pelas desigualdades abismáticas. Ainda tinha, porém, o farto apartamento – as cascatas vítreas pendiam levemente do lustre como a negar todos os abalos do lado de fora – e nada lhe faltaria nesses dias de fartura de faltas para tantos outros que mirava pela janela intocável. A garganta sentia os solavancos da realidade externa enquanto a saliva descia arranhando de tanto gritar – a derrota era algo inconcebível -, mas nada tirava de sua cabeça que só ele e os seus tinham razão. Puxou pela cabeça a camisa malcheirosa de alguns dias e contemplou de repente o símbolo da confederação incrustado no pano amarelo com estampa de onça. A camisa era de um amarelo bandeira-do-Brasil, ainda refletido pelo cômodo sob o sol que pairava na tarde. A ideia que ele fazia, porém, era em amarelo outro, qual coloração de papéis que se desfazem com o passar inadiável dos dias. Pensava em sépia e agia em carmesim. Estava prestes a entrar no chuveiro para sair vestindo a mesma camisa rançosa de concepções defasadas. Seu patriotismo vestia amarelo para esconder o libelo de suas ideias anêmicas, cor de um retrocesso que vez ou outra sobe à mente de quem não se percebe toda a gente.

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Pra não falar de política
01/10/2022 | 14h01
Fonte: Pixabay.
Depois de um considerável período de silêncio neste blog – por motivos vários -, retorno num momento em que não se fala em outra coisa: amanhã é o primeiro turno das eleições.

Fiquei tentado a falar sobre o tema, já ciente de que poderia – enquanto improvisado comentarista político - falar mais do mesmo e ficar repetindo ecos de uma abordagem qualquer que eu li no jornal.

Indo na contramão das minhas expectativas, porém, quero tomar rumo distinto e falar sobre teimosia.

Sim, esse é um assunto que move a humanidade, afinal, um teimoso inveterado é capaz de muita coisa para provar seu ponto. Quem já discutiu com um teimoso verdadeiro sabe que ele é capaz de relativizar até o terraplanismo para sair com a razão – e com a última palavra, pois ninguém suporta algo assim.

Isso significa dizer que o ser humano pode assumir consequências absurdas para garantir o posto de “coberto de razão” ou mesmo para se sentir superior ao outro, o que inclui questionar a realidade, dar um safanão na lógica e desacreditar séculos de estudos sérios sobre algo.

Tal coisa acontece, sobretudo, quando há paixão pelo tema. Um indivíduo apaixonado é capaz de garantir que seu time só foi rebaixado porque o VAR não deu um pênalti claro na rodada 15 do campeonato e brigar ferozmente por isso. Ou até dizer que seu ídolo pop não fez nada depois de ser acusado de uma centena de crimes aterradores – “mas ele é perfeito”, o sujeito dirá.

A questão da teimosia, no final das contas, se reduz ao ego de alguém que tem certeza de algo, apesar de tudo dizer o contrário – tudo mesmo. Há algo de teoria da conspiração nessa postura insensata, mas, na real, é só coisa da cabeça mesmo.

Imagine quem, ainda agora, acredita que não existiu pandemia, que vacina causa aids, que a monarquia é a solução para o Brasil e que todas as pesquisas de intenção de voto foram forjadas para favorecer um único candidato. Parece absurdo, mas pessoas que pensam assim estão por aí, teimosas até o fim, com razão até se cansarem de gritar pelo que não existe.

Ao teimoso, pode até faltar bom senso, mas falta, antes, um bom choque de realidade para entender o tempo e as condições em que se vive.

(Viu só? Em poucos parágrafos, escapei com tranquilidade do impertinente tema eleitoral.)

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Candidato da esquina
03/09/2022 | 17h29
Fonte: Pixabay.
Numa esquina, recém acordado por um lojista irritado que abrira agressivamente a porta metálica do estabelecimento, José fixou seus olhos num estardalhaço que adentrava a rua.

Faixas bandeiras cânticos sorrisos apertos de mão santinhos números cargos e um samba frenético de ensurdecer.

Um pequeno grupo vinha ao redor distribuindo panfletos e apontando para o tal da foto, que estava no carro estardalhante acenando para um público imaginário, que não se fazia presente para ver o alvoroço.

José, vidrado naquele furdúncio aleatório, percebeu que a turma se aproximava, mas não em sua direção. Ainda entre as cobertas, ele foi completamente ignorado, é claro, pelo candidato e sua equipe. De um lado, isso foi ótimo, pois preferia passar mais tempo em repouso. De outro, se sentiu apenas um obstáculo a ser desviado no caminho.

Foi quando, a partir daquela tarde, ele estabeleceu uma peculiar rotina na esquina daquela rua movimentada: resolveu lançar oficialmente sua candidatura e postular um cargo para - ilusão - desbancar o homem do carro barulhento que o tratara como nada. Um banco improvisado e duas madeiras apoiadas qual balcão permitiam ler na placa, em letras malformadas, VOTE EM MIM – 0000.

O cargo para o qual se candidatava pouco importava. A questão era que causava, em seu silencioso gesto de disposição eleitoral, um espanto e até um riso naqueles que o viam ao passar pela esquina. Queria marcar posição, fazer parte daquele movimento destinado apenas aos poderosos.

E passou, então, a ocupar suas tardes inteiras sentado a acompanhar os transeuntes que se fixavam na informação do candidato sem registro, sem partido e de número vazio.

Certo dia, um garoto passou olhando e perguntou o nome dele. José, disse. Um dia você vai trabalhar com meu pai. José sorriu. Claro que não sabia quem era o pai do moleque, mas seguiu acompanhando o garoto com seu olhar sereno e abstrato, em sua seriedade de candidato anônimo.

Enquanto o pai não saía da loja ao lado, o menino corria às voltas por ali quando se voltou novamente ao homem e questionou, muito interessado, qual era o seu partido. O da rua, o garoto ouviu.

O meu pai deve conhecer seu partido. O dele é o... é o... esqueci! Mas você também deve conhecer.

Apesar da inércia de José, o garoto continuou por perto, como a sabatiná-lo em audiência única, com perguntas definidas por critério parcialíssimo – e sem a presença da assessoria do candidato.

E o que você vai fazer quando ganhar a eleição? A primeira coisa que meu pai faz sempre que ganha é comprar uma casa nova bem longe daqui e fazer uma festa lá. Toda eleição é assim.

Mal o menino dissera isso, o candidato do carro barulhento saiu da loja tomando a mão da criança. Ato contínuo, José virou ao contrário a placa que anunciava seu número. Tomado por uma repentina desesperança, viu que era inútil tentar desbancar o poderoso das tantas casas: estava retirando sua natimorta candidatura.
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Reflexões para fotógrafos de selfie
21/08/2022 | 13h22
Fonte: Pixabay.
Pra começo de conversa, a língua portuguesa possui em seu vernáculo uma palavra muito mais adequada do que o sucinto estrangeirismo selfie. Veja se a pronúncia não fica muito melhor: autorretrato.

Os preguiçosos de plantão vão me tachar de purista, de chato, mas eu já falo isso ciente de que a palavra não vai cair na boca do povo. Afinal, partindo da tendência esquartejadora que os falantes possuem, logo ouviríamos “vamos tirar um ‘aut’?”, o que estragaria por completo a beleza da palavra.

Fico com o termo estadunidificado, por fim – mas não convencido.

Enfim, selfie ou autorretrato, a questão reside no ato. O narcisismo pode atacar em qualquer lugar, onde menos se espera. Veja se esta cena não te faz lembrar algo: enquanto você lava as mãos num banheiro público, lá está, logo no lavatório ao lado, uma careta aleatória para a câmera.

Já cheguei a presenciar amigos se juntando para uma foto no espelho do banheiro e já ouvi relatos femininos sobre congestionamento na entrada do sanitário por amontoados de meninas tirando autorretratos – viu como soa melhor?

A questão que me inquieta não se refere à liberdade artística do fotógrafo que quer uma imagem do próprio rosto no banheiro, mas sim ao porquê de tão insólita escolha.

Tacham as mães e avós de bregas por pedirem uma “pose” pra foto ao lado de um vaso de planta, mas se acham vanguardistas por caretear na frente do espelho de um banheiro de shopping?

Entre tantas dicas que eu poderia deixar aqui, fica apenas uma: encontre seu melhor cenário, a melhor luz e o seu melhor ângulo, mas, para o bem das pessoas a contragosto fotografadas enquanto transitam pelo banheiro, espere a solidão do lugar para realizar seu ensaio fotográfico individual ou coletivo no sanitário público.

Pra acabar, vale a reflexão: se houvesse espelho em um banheiro químico, você também quereria um registro em tão íntimo e azulado lugar?

*Esta crônica faz parte da série “Manual de desutilidades”, que tem como finalidade trazer reflexões críticas sobre questões cotidianas, brincando com o pragmatismo dos manuais de instruções – mas sem a pretensão de instruir ninguém.
**Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
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Apartamento
13/08/2022 | 21h46
 
Cena do filme Medianeras: Buenos Aires da Era do Amor Virtual, 2011
Mesmo que ladeados, encaixotados nos limites de corredores e concretos, há uma distância que fecha a porta e se coloca à espreita pelo olho mágico, observando a humanidade e a esquisitice que há no outro, mas que não passa de mera curiosidade.

Pois há uma medida fixa que separa as janelas e sacadas e convivências, particionando os espaços de um mesmo chão, que se encontra empilhado sobre outro e sobre outro sucessivamente até o – preencha um número ordinal aqui – andar.

Mas há, ainda antes do resguardado espaço que finge encaixotar personalidades e caracteres, uma troca social que se finda nas áreas comuns, feita de bons dias tardes noites, quase nunca algo além desse mero gesto que se diz educado, apesar de esquivo, marcado por olhares ladeados de quem nada queria dizer.

E há, também, um código partilhado que faz uns dos outros parte de um mesmo edifício, sem que talvez se deem conta de que os ruídos repentinos de portas batidas e copos quebrando ecoam andares acima e abaixo, sem, porém, conviver entre si.

Talvez porque a distância fixa que separa portas e janelas seja também a distância que cria um conjunto de ilhas de concreto verticais interligadas por elevadores e escadas.

No porém, se fazem silêncios após os cumprimentos e rápidas trocas de olhares, na convivência tácita de completos estranhos que se esbarram. Tudo na rotina amealhada das pessoas que, encaixotadas, se pensam resguardadas por estarem apartadas umas das outras – umas sobre as outras, empilhadas, mas sem se querer.

*Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
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Lembrança tecnológica
06/08/2022 | 14h46
Mal acordou, não sabia sequer onde estava. Ao seu lado, a mulher com quem passara mais da metade dos anos vividos até então, uma completa desconhecida.

Sua primeira reação, atônito, foi sentar de prontidão na beira da cama, tatear o chinelo que se perdera ao longo da noite pelo tapete e, prestes a atacar a mulher, gritar: sai da minha casa AGORA!

Aflita, Neide se ergueu com a robustez da voz do marido e ainda tentou o diálogo: Freitas, sou eu, a Neide. Mas ele continuou a repelir a invasora, chegando a pegar o copo plástico da cabeceira para lançar contra ela.

Só então, vencida pelo esquecimento do marido, ela levantou e foi fazer o café, deixando ele só. Os dias passavam assim, entre lapsos de passado e presente, com o constante esquecimento de quem era ela.

Já na sala, tempos depois, ela assistia ao telejornal quando ouviu Freitas falar sozinho no quarto: Alexa, acenda a luz. Uma ponta de ciúme bateu. Dela, ele não se esqueceu.

*Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
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Pequenas ficções pessoais
30/07/2022 | 14h00
Pixabay.
Se um barulho que corre na rua se aproxima de uma queda, um estampido, tudo bem, é o vento. Qual uma ocorrência paralisante de repente, os fragmentos cotidianos são juntados nas minuciosas explicações que damos para tudo. Do absoluto misticismo até a mais acurada observação, tudo passa pelo crivo hipotético de algo que pode não ser.

Isso porque a memória é um conjunto de justificativas que, reiteradas, respondem o que ninguém perguntou. Mas as questões permanecem postas apesar de a mente humana se satisfazer com a invenção injustificável.

Daí a racionalidade que tanto nos difere dos outros seres não ser mais que a ficção a colorir cada fato segundo o qual nos convencemos e seguimos como se realmente soubéssemos para onde vamos.

Diante do outro, diante do desconhecido, somos os mesmos a perpetuar visões de mundo que significam algo, no talvez das solidões, apenas para nós mesmos dentro de um contexto simbólico no qual nos imergimos. Esquecemos parágrafos para contar incríveis histórias que nem foram tão relevantes assim.

Talvez porque somos contaminados, às migalhas, pela verdade que alimentamos sobre o mundo – a qual se baseia, por sua vez, na verdade que se convencionou passar adiante. Ou talvez porque somos ególatras o suficiente para não aceitar uma outra versão.

E, assim, seguimos a esquecer ou inventar ou prescrever a narrativa do que aconteceu(rá) sob a ótica disforme de alguém que explica – e se convence - o mundo para si mesmo.

*Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
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Sobre o autor

Ronaldo Junior

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Professor e membro da Academia Campista de Letras. Neste blog: Entre as ideias que se extraviam pelos dias, as palavras são um retrato do cotidiano.