2018, pelo menos pra mim, foi uma Copa sem registro na memória, o que é absolutamente normal para quem vivia o luto do 7 a 1 misturado com a perda da camisa canarinho pra um pessoal com quem eu não desejava – e ainda agora não desejo – ser associado.
Então meu intervalo entre a última Copa e esta é um tanto maior, o que é ótimo para deixar no passado as lástimas e reapropriar os símbolos, que vêm junto com as esperanças – apesar de uma lateral (extrema) direita um tanto duvidosa.
Não vou ficar enrolando pra dizer que, como é repetido desde 2006, neste ano o hexa vem. Pronto. Ilusões fazem bem, ainda mais em tempos tão excruciantes.
Eu já preparei a camisa amarela, completei o álbum desde setembro e estou tentando fazer uma agenda para ver os jogos – de verdade, sentar e assistir, sem papos paralelos e interrupções que possibilitem quebrar a energia da vitória.
Uma coisa é certa: se ganharmos, eu já estarei esperando a sétima estrela em 2026, mas, se perdermos – hipótese absurda - , eu seguirei esperando a sexta sem problema algum.
O que eu realmente sinto é que precisamos de algo para suturar as feridas remanescentes de um corte profundo e tentar deixar para trás tudo que fez mal nesses tempos estúpidos. Precisamos da embriaguez coletiva que minimiza as diferenças e concentra o fanatismo no futebol – ao menos por um mês.
Ou seja, só reclamo do Daniel Alves para não perder a tradição de dizer que o técnico da seleção errou – algo me diz que isso dá sorte -, mas já estou aqui torcendo pelo hexa com a mesma crença ingênua de quem acreditou numa vitória sobre a Alemanha em 2014. Mas agora vai!
*Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
*Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Fiquei tentado a falar sobre o tema, já ciente de que poderia – enquanto improvisado comentarista político - falar mais do mesmo e ficar repetindo ecos de uma abordagem qualquer que eu li no jornal.
Indo na contramão das minhas expectativas, porém, quero tomar rumo distinto e falar sobre teimosia.
Sim, esse é um assunto que move a humanidade, afinal, um teimoso inveterado é capaz de muita coisa para provar seu ponto. Quem já discutiu com um teimoso verdadeiro sabe que ele é capaz de relativizar até o terraplanismo para sair com a razão – e com a última palavra, pois ninguém suporta algo assim.
Isso significa dizer que o ser humano pode assumir consequências absurdas para garantir o posto de “coberto de razão” ou mesmo para se sentir superior ao outro, o que inclui questionar a realidade, dar um safanão na lógica e desacreditar séculos de estudos sérios sobre algo.
Tal coisa acontece, sobretudo, quando há paixão pelo tema. Um indivíduo apaixonado é capaz de garantir que seu time só foi rebaixado porque o VAR não deu um pênalti claro na rodada 15 do campeonato e brigar ferozmente por isso. Ou até dizer que seu ídolo pop não fez nada depois de ser acusado de uma centena de crimes aterradores – “mas ele é perfeito”, o sujeito dirá.
A questão da teimosia, no final das contas, se reduz ao ego de alguém que tem certeza de algo, apesar de tudo dizer o contrário – tudo mesmo. Há algo de teoria da conspiração nessa postura insensata, mas, na real, é só coisa da cabeça mesmo.
Imagine quem, ainda agora, acredita que não existiu pandemia, que vacina causa aids, que a monarquia é a solução para o Brasil e que todas as pesquisas de intenção de voto foram forjadas para favorecer um único candidato. Parece absurdo, mas pessoas que pensam assim estão por aí, teimosas até o fim, com razão até se cansarem de gritar pelo que não existe.
Ao teimoso, pode até faltar bom senso, mas falta, antes, um bom choque de realidade para entender o tempo e as condições em que se vive.
(Viu só? Em poucos parágrafos, escapei com tranquilidade do impertinente tema eleitoral.)
*Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Faixas bandeiras cânticos sorrisos apertos de mão santinhos números cargos e um samba frenético de ensurdecer.
Um pequeno grupo vinha ao redor distribuindo panfletos e apontando para o tal da foto, que estava no carro estardalhante acenando para um público imaginário, que não se fazia presente para ver o alvoroço.
José, vidrado naquele furdúncio aleatório, percebeu que a turma se aproximava, mas não em sua direção. Ainda entre as cobertas, ele foi completamente ignorado, é claro, pelo candidato e sua equipe. De um lado, isso foi ótimo, pois preferia passar mais tempo em repouso. De outro, se sentiu apenas um obstáculo a ser desviado no caminho.
Foi quando, a partir daquela tarde, ele estabeleceu uma peculiar rotina na esquina daquela rua movimentada: resolveu lançar oficialmente sua candidatura e postular um cargo para - ilusão - desbancar o homem do carro barulhento que o tratara como nada. Um banco improvisado e duas madeiras apoiadas qual balcão permitiam ler na placa, em letras malformadas, VOTE EM MIM – 0000.
O cargo para o qual se candidatava pouco importava. A questão era que causava, em seu silencioso gesto de disposição eleitoral, um espanto e até um riso naqueles que o viam ao passar pela esquina. Queria marcar posição, fazer parte daquele movimento destinado apenas aos poderosos.
E passou, então, a ocupar suas tardes inteiras sentado a acompanhar os transeuntes que se fixavam na informação do candidato sem registro, sem partido e de número vazio.
Certo dia, um garoto passou olhando e perguntou o nome dele. José, disse. Um dia você vai trabalhar com meu pai. José sorriu. Claro que não sabia quem era o pai do moleque, mas seguiu acompanhando o garoto com seu olhar sereno e abstrato, em sua seriedade de candidato anônimo.
Enquanto o pai não saía da loja ao lado, o menino corria às voltas por ali quando se voltou novamente ao homem e questionou, muito interessado, qual era o seu partido. O da rua, o garoto ouviu.
O meu pai deve conhecer seu partido. O dele é o... é o... esqueci! Mas você também deve conhecer.
Apesar da inércia de José, o garoto continuou por perto, como a sabatiná-lo em audiência única, com perguntas definidas por critério parcialíssimo – e sem a presença da assessoria do candidato.
E o que você vai fazer quando ganhar a eleição? A primeira coisa que meu pai faz sempre que ganha é comprar uma casa nova bem longe daqui e fazer uma festa lá. Toda eleição é assim.
Mal o menino dissera isso, o candidato do carro barulhento saiu da loja tomando a mão da criança. Ato contínuo, José virou ao contrário a placa que anunciava seu número. Tomado por uma repentina desesperança, viu que era inútil tentar desbancar o poderoso das tantas casas: estava retirando sua natimorta candidatura.
Os preguiçosos de plantão vão me tachar de purista, de chato, mas eu já falo isso ciente de que a palavra não vai cair na boca do povo. Afinal, partindo da tendência esquartejadora que os falantes possuem, logo ouviríamos “vamos tirar um ‘aut’?”, o que estragaria por completo a beleza da palavra.
Fico com o termo estadunidificado, por fim – mas não convencido.
Enfim, selfie ou autorretrato, a questão reside no ato. O narcisismo pode atacar em qualquer lugar, onde menos se espera. Veja se esta cena não te faz lembrar algo: enquanto você lava as mãos num banheiro público, lá está, logo no lavatório ao lado, uma careta aleatória para a câmera.
Já cheguei a presenciar amigos se juntando para uma foto no espelho do banheiro e já ouvi relatos femininos sobre congestionamento na entrada do sanitário por amontoados de meninas tirando autorretratos – viu como soa melhor?
A questão que me inquieta não se refere à liberdade artística do fotógrafo que quer uma imagem do próprio rosto no banheiro, mas sim ao porquê de tão insólita escolha.
Tacham as mães e avós de bregas por pedirem uma “pose” pra foto ao lado de um vaso de planta, mas se acham vanguardistas por caretear na frente do espelho de um banheiro de shopping?
Entre tantas dicas que eu poderia deixar aqui, fica apenas uma: encontre seu melhor cenário, a melhor luz e o seu melhor ângulo, mas, para o bem das pessoas a contragosto fotografadas enquanto transitam pelo banheiro, espere a solidão do lugar para realizar seu ensaio fotográfico individual ou coletivo no sanitário público.
Pra acabar, vale a reflexão: se houvesse espelho em um banheiro químico, você também quereria um registro em tão íntimo e azulado lugar?
*Esta crônica faz parte da série “Manual de desutilidades”, que tem como finalidade trazer reflexões críticas sobre questões cotidianas, brincando com o pragmatismo dos manuais de instruções – mas sem a pretensão de instruir ninguém.
Pois há uma medida fixa que separa as janelas e sacadas e convivências, particionando os espaços de um mesmo chão, que se encontra empilhado sobre outro e sobre outro sucessivamente até o – preencha um número ordinal aqui – andar.
Mas há, ainda antes do resguardado espaço que finge encaixotar personalidades e caracteres, uma troca social que se finda nas áreas comuns, feita de bons dias tardes noites, quase nunca algo além desse mero gesto que se diz educado, apesar de esquivo, marcado por olhares ladeados de quem nada queria dizer.
E há, também, um código partilhado que faz uns dos outros parte de um mesmo edifício, sem que talvez se deem conta de que os ruídos repentinos de portas batidas e copos quebrando ecoam andares acima e abaixo, sem, porém, conviver entre si.
Talvez porque a distância fixa que separa portas e janelas seja também a distância que cria um conjunto de ilhas de concreto verticais interligadas por elevadores e escadas.
No porém, se fazem silêncios após os cumprimentos e rápidas trocas de olhares, na convivência tácita de completos estranhos que se esbarram. Tudo na rotina amealhada das pessoas que, encaixotadas, se pensam resguardadas por estarem apartadas umas das outras – umas sobre as outras, empilhadas, mas sem se querer.
*Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Sua primeira reação, atônito, foi sentar de prontidão na beira da cama, tatear o chinelo que se perdera ao longo da noite pelo tapete e, prestes a atacar a mulher, gritar: sai da minha casa AGORA!
Aflita, Neide se ergueu com a robustez da voz do marido e ainda tentou o diálogo: Freitas, sou eu, a Neide. Mas ele continuou a repelir a invasora, chegando a pegar o copo plástico da cabeceira para lançar contra ela.
Só então, vencida pelo esquecimento do marido, ela levantou e foi fazer o café, deixando ele só. Os dias passavam assim, entre lapsos de passado e presente, com o constante esquecimento de quem era ela.
Já na sala, tempos depois, ela assistia ao telejornal quando ouviu Freitas falar sozinho no quarto: Alexa, acenda a luz. Uma ponta de ciúme bateu. Dela, ele não se esqueceu.
*Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Isso porque a memória é um conjunto de justificativas que, reiteradas, respondem o que ninguém perguntou. Mas as questões permanecem postas apesar de a mente humana se satisfazer com a invenção injustificável.
Daí a racionalidade que tanto nos difere dos outros seres não ser mais que a ficção a colorir cada fato segundo o qual nos convencemos e seguimos como se realmente soubéssemos para onde vamos.
Diante do outro, diante do desconhecido, somos os mesmos a perpetuar visões de mundo que significam algo, no talvez das solidões, apenas para nós mesmos dentro de um contexto simbólico no qual nos imergimos. Esquecemos parágrafos para contar incríveis histórias que nem foram tão relevantes assim.
Talvez porque somos contaminados, às migalhas, pela verdade que alimentamos sobre o mundo – a qual se baseia, por sua vez, na verdade que se convencionou passar adiante. Ou talvez porque somos ególatras o suficiente para não aceitar uma outra versão.
E, assim, seguimos a esquecer ou inventar ou prescrever a narrativa do que aconteceu(rá) sob a ótica disforme de alguém que explica – e se convence - o mundo para si mesmo.
*Ronaldo Junior tem 26 anos, é carioca, licenciando em Letras pelo IFF Campos Centro e escritor membro da Academia Campista de Letras. www.ronaldojuniorescritor.com
Sobre o autor
Ronaldo Junior
[email protected]Professor e membro da Academia Campista de Letras. Neste blog: Entre as ideias que se extraviam pelos dias, as palavras são um retrato do cotidiano.