Os novos andamentos no Solar dos Airizes
30/09/2023 | 03h00
Foto: J. Pimentel

O Solar dos Airizes, casarão histórico localizado na BR-356, Campos-São João da Barra, vem recebendo mais atenção nos últimos anos. Desde que este espaço revelou a existência de um processo judicial com trânsito em julgado (quando não cabem mais recursos) determinando que o restauro do prédio seja feito pela prefeitura de Campos, o Solar passou a ser alvo de tratativas mais intensas entre poder público e sociedade.

Tombado pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) desde 1940, três anos depois da criação daquele órgão federal, o Airizes ainda hoje pertence à família Lamego, herdeiros de Alberto Ribeiro Lamego, pesquisador renomado em todo Brasil e autor de obras fundamentais para a região Norte Fluminense, que por sua vez herdou o Solar após o casamento com a filha do Comendador Cláudio do Couto e Souza. 

Além do processo judicial, o Iphan abriu diversos andamentos internos sobre o Airizes desde que o abandono ficou demasiadamente arriscado ao patrimônio — o que acontece há mais de 20 anos. Entre as medidas, uma multa milionária foi imposta à família Lamego.
No âmbito do judiciário, o resultado foi diferente: os Lamegos conseguiram comprovar a incapacidade financeira de manter um casarão do século 19, e umas das penalidade impostas foi perder a posse do Solar para a municipalidade, em Campos, que seria responsável pelo restauro e pelo uso do prédio. 

A municipalidade

Com a obrigação judicial de restaurar o Airizes, algumas alternativas começaram a ser pensadas. Embora ainda sem efetividade, a prefeitura assinou um protocolo de intenções com a empresa Ferroport (consórcio formado pela mineradora sul-africana Anglo American e pela Prumo Logística, do Porto do Açu), que pretende captar recursos para restaurar e dar uso ao Solar.

Porém a construção não dá sinais que resistirá por muito mais tempo. Parte de uma das extremidades já foi ao chão, paredes foram destruídas tanto na fachada quanto no interior do Solar, e a cada dia aumenta a precariedade de portas, janelas e do forro de madeira.
3D realizado a a partir da visita do curso de Arquitetura do IFF.
3D realizado a a partir da visita do curso de Arquitetura do IFF. / Raphael Aquino

O escoramento e outras ações emergenciais não dependem de parcerias, ou de grandes investimentos, e o Iphan certamente autorizaria intervenções dessa natureza, como forma de garantir a sobrevivência do patrimônio. Se trata de uma obrigação da prefeitura, judicial e institucional.

Raphael Thuin leva o Airizes à Brasília
Reprodução Rede Social

O vereador Raphael Thuin (PTB), em agenda em Brasília na semana passada, esteve com o presidente da Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, Marcelo Queiroz (PP-RJ), e levou as pautas relacionadas ao Solar dos Airizes e à livraria Ao Livro Verde.

Em suas redes sociais, Thuin disse que ambos os patrimônios são de “suma relevância para a cultura da cidade de Campos”, e que "precisam da nossa atenção”. Ontem, falando a este espaço, o vereador disse que o caso do Solar dos Airizes já era de conhecimento do Ministério da Cultura, através do Iphan, mas que a sua ida à Brasília “abriu portas no Governo Federal em relação ao Airizes”.

— Eles querem ajudar. Falei com o Marcelo [deputado Marcelo Queiroz], e ele se mostrou muito sensível à causa do Solar dos Airizes, pela importância daquela construção. A aproximação com a Comissão de Cultura da Câmara Federal é essencial para fazer essa ponte com o Governo Federal e com a ministra da Cultura, Margareth Menezes, e também o secretário executivo da pasta. Fiquei muito satisfeito com a reunião, acho que agora temos esse caminho em Brasília — disse Thuin.

Sobre a Ao Livro Verde, o vereador disse que é um caso mais complexo por envolver uma empresa privada em situação de autofalência, mas que pela importância da história e da marca Ao Livro Verde é preciso que “soluções sejam encontradas coletivamente”.

A livraria mais antiga do Brasil recebeu ajuda da sociedade civil, e o movimento “SOS Ao Livro Verde” conseguiu mais de duas mil assinaturas e diversas entidades apoiando. Além do movimento, existe a possibilidade da criação de uma associação que poderia não apenas auxiliar na sobrevivência da livraria, mas principalmente no salvamento da marca.

Foto: J. Pimentel
A resiliência do Solar


Em uma cidade que deixou tanto se perder, em construções de beleza arquitetônica inquestionável e simbolismos culturais de alta relevância — como o antigo Trianon, a Santa Casa de Misericórdia, Correios e Banco do Brasil —, o Solar dos Airizes resiste por conta própria.

Assim como o Museu Olavo Cardoso e o prédio centenário do Mercado, o Airizes se nega a virar apenas memória. Em uma cidade que não aproveita os potenciais que esses patrimônios oferecem apenas por existir, a sobrevivência deles depende de dois fatores fundamentais: política pública cultural efetiva e engajamento social.

A família Lamego se colocou à disposição para uma conversa com a prefeitura, e tem interesse em doar o prédio ao município. Porém, entraves jurídicos e a própria multa que envolve o Solar dificultam o trâmite. O caminho possível é a desapropriação, e ela deve envolver o executivo e o legislativo municipal.

Antes que seja tarde.
Comentar
Compartilhe
Dois pesos, duas medidas: Uenf já inicia as obras em Cabo Frio e avança pouco no Arquivo de Campos
14/07/2023 | 08h32
Arquivo Público e Solar do Colégio - simbiose
Arquivo Público e Solar do Colégio - simbiose


Em 29 de outubro de 2021, Campos dos Goytacazes recebeu a notícia (veja aqui) que o Arquivo Público Municipal seria restaurado, e seu acervo digitalizado. Através de uma parceria entre a prefeitura de Campos, Alerj (Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro) e Uenf (Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro), foram depositados 20 milhões de reais na conta da universidade para custear a iniciativa.

O valor total do acordo foi de R$ 30 milhões, onde a Alerj repassou à Uenf oito milhões para serem utilizados na Fazenda Campos Novos em Cabo Frio, município do litoral fluminense, dois milhões na própria universidade, e os 20 milhões restantes no Solar do Colégio, prédio que abriga o Arquivo, em Campos.

O Solar do Colégio e a Fazenda Campos Novos tem muitas similaridades. Ambas são construções jesuíticas do século XVII, e ambas tombadas pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Campos Novos, fundada em 1690, assim como o Solar do Colégio, é uma das poucas construções jesuíticas ainda de pé no território brasileiro.

A diferença, vem sendo a atenção dispensada pela Uenf.

Conforme matéria divulgada no site oficial da prefeitura de Cabo Frio, “foi assinado na manhã desta quarta-feira (12) o contrato para o início das obras na Fazenda Campos Novos, em Tamoios. A verba para a restauração é fruto do Projeto de Lei n.º 5.275, de autoria do então deputado estadual e presidente da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), André Ceciliano”.

Em Cabo Frio, grupos de trabalho foram criados e atuam no projeto de restauro desde o início deste ano. No final de abril, o patrimônio cabofriense foi objeto de um pregão eletrônico realizado pela Uenf, sendo um passo importante para que o contrato fosse assinado nesta quarta-feira.

No caso de Campos Novos, já existia no Iphan o projeto básico, documento chamado de “Termo de Referência”, o que facilitou que o processo fosse mais rápido. Além do auxílio direto do Iphan, o reitor da Uenf, Raul Palacio, destacou durante a cerimônia da assinatura do contrato, o papel da prefeitura de Cabo Frio: “não poderia deixar de iniciar destacando o empenho do prefeito José Bonifácio para que pudéssemos firmar essa parceria (...) ele é o principal incentivador dessa reforma da Fazenda Campos Novos”.

Em contraste com a situação de Cabo Frio, no Solar do Colégio nada de concreto relacionado às obras foi feito, tampouco existe qualquer Termo de Referência no Iphan. Após uma reunião na Alerj — com representantes da Uenf, da prefeitura e da sociedade civil — em novembro de 2022, foi acordado que a universidade faria, em um prazo de 30 dias, a licitação para o início das obras, como aconteceu em Cabo Frio. Mas não aconteceu.

Apesar de disponibilizar no caso da Fazenda Campos Novos, o Iphan não tem a obrigação de fornecer esse material, mas é previsto na utilização dos recursos vindos da Alerj, também devendo ser por processo licitatório, a contratação de empresa para produzir o Termo de Referência e o projeto para a restauração do Solar.

Uenf e Arquivo: andamentos e dificuldades
Equipe do Arquivo Público Municipal Waldir Pinto de Carvalho durante reunião sobre as obras no Solar do Colégio.
Equipe do Arquivo Público Municipal Waldir Pinto de Carvalho durante reunião sobre as obras no Solar do Colégio. / César Ferreira


Apesar da morosidade em relação ao restauro do Solar dos Colégio, foi lançado no final de junho pela Uenf um edital de processo seletivo para o preenchimento de vagas de estágio nas áreas de História, Geografia, Pedagogia e Ciências Sociais, para atuar no Arquivo. Estão previstas 20 vagas, distribuídas nessas áreas do conhecimento, de forma remunerada, para atuar na instituição por um período de 12 meses.

O Arquivo Público de Campos exerce duas funções igualmente complexas e essenciais para a sociedade fluminense: guardar, tratar e tornar público acervos documentais de grande importância, e cuidar de um solar secular, tombado por um ente federal, em um local distante do centro da cidade. Para essa segunda função, atua há anos com uma equipe extremamente reduzida, poucos recursos e instalações físicas insuficientes.

A contratação de pessoal é um passo importante — também previsto nos R$ 20 milhões disponibilizados —, trazendo ao Arquivo a possibilidade de administrar seus acervos satisfatoriamente. Mas todo o restante depende do andamento das obras. Qualquer compra ou instalação de equipamento de digitalização, por exemplo, depende de instalações elétricas adequadas e equipamentos de segurança que o Arquivo ainda não dispõe.

Depois de diversos acertos entre o município, Arquivo e Uenf, um grupo de profissionais com componentes das três instituições foi formado, que originou a publicação do Edital e segue na construção do processo licitatório e posteriormente as obras. Porém, ainda caminhando a passos curtos.

Chuvas e vendavais


Considerando o ritmo da aplicação dos recursos no Solar do Colégio, o próximo período de chuvas cairá sobre o prédio sem as intervenções necessárias para proteger seu interior.

Durante as chuvas de janeiro deste ano, o Arquivo Público ficou inundado, com diversos documentos danificados. Episódios de vendavais e tempestades, cada vez mais constantes, podem ser ainda mais devastadores, principalmente no telhado do Solar, parte da construção que carece de intervenções urgentes, e com dinheiro para fazê-las há quase dois anos.
Comentar
Compartilhe
Ao Livro Verde: ideias para um salvamento possível
10/07/2023 | 10h05
Reprodução
Se há algum caminho para que ações efetivas ocorram, principalmente vindas da administração pública, é a mobilização social. Isso parece ter acontecido no caso do possível fechamento — depois do pedido de autofalência — da livraria mais antiga do Brasil sediada em Campos, a Ao Livro Verde.

Além dos “abraços” da sociedade civil e de entidades ligadas ao setor cultural promoveram, como forma de apoio à livraria, foi iniciado o movimento SOS Ao Livro Verde, que busca assinaturas da sociedade para encaminhar uma petição aos poderes públicos locais pedindo que seja formada uma “equipe técnica especializada com o objetivo de estudar, avaliar e propor alternativas que impeçam o fechamento de Ao Livro Verde”.
Em matéria no caderno "Rio", o jornal O Globo, de circulação nacional, publicada na edição deste domingo (9), "A livraria mais antiga do país em Campo, no Norte Fluminense, luta para não fechar as portas" (veja aqui).

A dívida acumulada pela livraria é de quase R$ 2 milhões. Entre os motivos, estão o esvaziamento do centro histórico da cidade, a crise no mercado de livros e principalmente a diminuição do setor mais lucrativo da empresa nos últimos anos: a venda de material didático, agora comercializado pelos próprios estabelecimentos de ensino, e de escritório.
Empresa privada ou bem público?

Há alguns entraves para que a municipalidade entre com apoio direto para recuperação da livraria. O pedido de autofalência que tramita na 5º Vara Cível de Campos, é regido pela Lei de Falências (nº 11.101/2005), e a interrupção ou repactuação do que consta no processo deve ser de iniciativa exclusiva dos proprietários da Ao Livro Verde.
Além disso, o prédio em que está instalada a livraria há mais de 179 anos, tombado pelo Conselho de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural de Campos (Coppam), não configura parte do patrimônio da Ao Livro Verde, estando sob o regime de aluguel.

Sem contar que uma possível intervenção da prefeitura, com recursos ou pessoal da municipalidade, poderia ser vista como favorecimento, ou uma afronta ao princípio da impessoalidade que rege a administração pública.

Porém, trata-se da livraria mais antiga do Brasil, estabelecimento comercial que representa algo maior, coletivo e histórico. Garantir a sobrevivência da Ao Livro Verde significa trabalhar efetivamente a memória coletiva — de Campos e do Brasil. É consenso que a  preservação de espaços materiais se mostra um dos caminhos mais efetivos de compreensão dos processos históricos de um local.
Centro de Memória Fotográfica de Campos


É preciso entender que a livraria mais antiga do Brasil significa para grande parte dos campistas afetividade, memórias sociais e familiares, um local de construção de memórias e de imaginação que os momentos são capazes de reconstruir. Portanto, é mais que justificável que o poder público — prefeitura, Câmara e judiciário — se debruce sobre o tema.

As legislações que podem servir de âncora

A Lei de Falências, como dito devendo ser usada por iniciativa dos proprietários, prevê em seu artigo 20 “que serão admitidas conciliações e mediações antecedentes ou incidentais aos processos de recuperação judicial”. Ou seja, há caminhos para que a autofalência se reverta, se apresentado plano de recuperação.

Sobre a prefeitura e a Câmara, algumas ações não apenas podem ser empreendidas, como uma obrigação social, mas encontram amparo legal para que aconteçam. Como é o caso da aplicação da Lei Federal 3.365/41, que disciplina o instituto da “utilidade pública” de um bem ou instituição.

Decretar na Câmara a utilidade pública da livraria mais antiga do Brasil é um passo importante para a desapropriação do prédio onde está instalada a livraria Ao Livro Verde há 179 anos. A mesma lei federal oferece a justificativa necessário em seu artigo 5º: “a preservação e conservação dos monumentos históricos e artísticos, bem como as medidas necessárias a manter-lhes e realçar-lhes os aspectos mais valiosos ou característicos e, ainda, a proteção de paisagens e locais” e “a preservação e a conservação adequada de arquivos, documentos e outros bens móveis de valor histórico ou artístico”.

Caso a prefeitura resolva agir, também pode encontrar amparo na Lei 12.244/2010 (Lei da Universalização das Bibliotecas Escolares), promovendo a reabertura da Biblioteca Nilo Peçanha nas instalações da livraria Ao Livro Verde. Ação de extremo valor simbólico — e necessário — para Campos.

Haverá depois?
Ronaldo Sobral, atual proprietário da Ao Livro Verde.
Ronaldo Sobral, atual proprietário da Ao Livro Verde. / Genilson Pessanha

Para usar uma palavra contemporânea, é preciso pensar na sustentabilidade da Ao Livro Verde, caso ela consiga sair da insolvência. E para ser sustentável, é preciso haver lucro.

Parte da lucratividade pode vir da cessão de espaços na livraria para iniciativas públicas ou particulares que se interessem em explorar um local cheio de história e de localização privilegiada. Terceirizar um café ou restaurante, que funcionasse no interior da Ao Livro Verde, pode significar uma fonte de receita para a empresa. Assim como a manutenção de uma biblioteca pública, mantida pela prefeitura.

Há ainda a possibilidade da ida da livraria para o Palácio da Cultura, equipamento importante de Campos que está subutilizado. Além de ser no coração de um dos bairros mais movimentados da cidade, a adequação e equilíbrio das contas ficariam, evidentemtente, mais fáceis por lá.
Mas claro, tudo a depender de entendimentos entre proprietários e prefeitura.

Existem caminhos para que o depois de toda essa história não seja o mesmo do Trianon, de fatalidades como o incêndio na Lira de Apolo e no Hotel Flávio, ou da descaracterização da praça São Salvador. É preciso aprender com os erros. A história serve também para isso. Ou deveria. 
Comentar
Compartilhe
Iphan, prefeitura, família Lamego e a Ferroport: Solar dos Airizes ainda vive
05/07/2023 | 07h51
Solar dos Airizes em seu estado atual. A majestosa construção com ameaça de ruína.
Solar dos Airizes em seu estado atual. A majestosa construção com ameaça de ruína. / Bruno Salles
Campos dos Goytacazes sempre teve vocação para produzir histórias de valor para todo país — um campista negro chegou à presidência, a livraria mais antiga do Brasil, o segundo maior canal artificial do mundo, a primeira energia elétrica pública da América Latina, o terceiro jornal mais antigo e um dos principais abolicionistas da história. E um icônico Solar às margens do rio Paraíba, na BR-356 (Campos x Atafona).

O Solar dos Airizes — ou “casarão da escrava Isaura”, ou “casa dos Lamegos” — é um bem de alto valor histórico e cultural, o primeiro a receber tombamento federal em Campos, ainda em 1940, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Apesar do tombamento e de seu valor nacional, o Solar dos Airizes está em estado de abandono há décadas, e a cada ano perde uma parte significativa de suas paredes e esquadrias. Garantir que ele não venha à ruína completa é uma obrigação legal da prefeitura, do Iphan e da família Lamego, atual proprietária do Solar. E principalmente um direito difuso dos campistas.

A prefeitura e a Ferroport

Para cumprir o que determina o acórdão de número 402-28.2008.4.02.5103 do Tribunal Regional Federal (TRF) da 2ª Região — sentença que não cabem mais recursos ou embargos e determina o restauro imediato do Solar — a prefeitura buscou a iniciativa privada.

Na última terça-feira (4), foi assinado um Protocolo de Intenções entre o ente municipal e a Ferroport, joint-venture formada pela mineradora sul-africana Anglo American e pela Prumo Logística, que opera o terminal de exportação de minério de ferro no Porto do Açu. Desde de maio deste ano, a empresa integra o Grupo de Trabalho (GT) criado pelo prefeito Wladimir Garotinho para definir os estudos e ações relativos à restauração do Solar dos Airizes.
Assinatura do protocolo de intenções entre a prefeitura e a Ferroport.
Assinatura do protocolo de intenções entre a prefeitura e a Ferroport. / PMCG


A ação judicial que condenou a prefeitura de Campos a restaurar o Solar foi proposta pelo Ministério Público Federal (MPF) em 2008, em face do município e de Nelson Luiz Lamego. Durante o curso do processo foi acatado a incapacidade alegada pelo herdeiro da família Lamego em restaurar o bem, e determinado que a municipalidade promova, não apenas o restauro, como o uso do patrimônio. Mas nada impede que a prefeitura busque parceiros para cumprir a decisão.

“O protocolo tem como objeto envidar os esforços necessários para elaboração de projeto que possibilite angariar recursos por meio dos instrumentos dispostos na Lei 3.813/91, para a realização do projeto e da obra referente ao restauro do Solar dos Airizes, bem como a manutenção de acervo cultural de interesse público”, disse Isabelle Silva, assessora de comunicação da Ferroport, a esta coluna, via e-mail.

Sobre o processo judicial, Isabelle informou que “a minuta do protocolo de intenções já foi juntada aos autos pela prefeitura, como conteúdo informativo ao Ministério Público”, e sobre o uso do Solar dos Airizes após a restauração, disse que “a Ferroport entende que a interseção cultural entre a sociedade e o bem tombado deve ser realizada pela prefeitura”.

Como bem tombado pelo Iphan e ainda de propriedade da família Lamego, qualquer intervenção deve ser feita após anuência de ambos. Embora tenha ciência dessa necessidade, a Ferroport informou que não se envolverá nessa questão, atuando "exclusivamente no auxílio ao patrocínio cultural". Mas lembra que a área foi decretada como de interesse público por meio do Decreto Municipal 473/2021, e que “os próximos passos estão sendo tomados pela Procuradoria do município”.

A família Lamego

A importância do Solar dos Airizes não reside apenas em sua beleza arquitetônica. Por muito tempo o local foi considerado uma “meca” — um local sagrado — de conhecimento e cultura por muitos intelectuais brasileiros. Sendo residência de Alberto Lamego (pai e filho), o Solar foi palco para a criação das mais importantes obras sobre a história de Campos e região, depois de ter sido recolhido um vasto acervo garimpado na Europa, levando a produção de conhecimentos fundamentais para compreender os processos de formação do território fluminense.

Reprodução Foto: João Pimentel
Além do acervo cartográfico e documental, uma incrível pinacoteca conferia ao Solar dos Airizes a condição de guardião da cultura, intelectualidade, arte e conhecimento geográfico do Norte Fluminense. No Solar hospedaram-se nomes como Mário de Andrade e o imperador D. Pedro II.


A família Lamego manteve-se como proprietária do Solar, e tentou vender o Solar em algumas ocasiões, mas tendo o tombamento federal como um dificultador. Para a efetivação do restauro proposto pela prefeitura e a Ferroport, a propriedade do bem deverá ser resolvida.
Também a este espaço, representante dos proprietários informou que pretende doar o prédio à municipalidade:

“O subprocurador nos procurou e nos colocamos à disposição, inclusive para a doação do prédio. Nosso interesse, como o de todos, é a preservação do bem”, informou um dos herdeiros. Perguntado sobre o prazo de concretização da doação, informou que depende da procuradoria do município.

O Iphan

Enquanto era feita a assinatura do Protocolo de Intenções, uma equipe técnica do Iphan vistoriava o Solar dos Airizes. Em Campos para visitas técnicas nos imóveis tombados pelo órgão, o Iphan informou, via e-mail, que “o técnico do Iphan não estava no momento da assinatura”.

Ao menos três processos administrativos, com o Solar dos Airizes como objeto, tramitam no Iphan. Neles há o histórico de todas tratativas do órgão federal com os proprietários e os documentos produzidos pelos técnicos, que evidenciam a evolução da destruição no Solar.
Reprodução Foto: João Pimentel
Sobre a parceria da prefeitura com a Ferroport, a assessoria disse que “o Iphan celebra as iniciativas para valorizar o patrimônio cultural”, e que o instituto é “o órgão fiscalizador responsável pelo Patrimônio Cultural Brasileiro, cabendo fiscalizar o bem cultural, aprovar projetos de intervenções e orientar o proprietário na conservação do bem tombado”.

No caso do Solar dos Airizes, como patrimônio cultural e propriedade tombada, caberia aos proprietários “promover obras de conservação e restauro, bem como zelar pela manutenção do monumento”, informou a assessoria do Iphan. Porém, por decisão judicial, a prefeitura de Campos assumiu essa condição, pelo entendimento do valor coletivo que o bem carrega consigo.
O Iphan deverá informar, via nota, os resultados das visitas desta semana à cidade. 

O Airizes vive — e deve viver

Alberto Lamego, depois de retornar ao Brasil trazendo na bagagem uma rara biblioteca brasiliana e vastíssimo acervo documental acumulado por ele durante os anos de pesquisa, em especial nos arquivos portugueses, passou a viver com a família no Solar dos Airizes. O imponente Solar, construído em sua forma atual em princípios do século XIX pelo comendador Cláudio do Couto e Souza, foi herdado por ele após o casamento com uma das filhas. 
Além de todos os fatos e lendas que acompanham o Solar, mantê-lo de pé significa aos campistas — e fluminenses — conhecer os processos de formação da região, o papel das grandes fazendas e a problematização necessária do abuso de pessoas escravizadas.

A despeito da passividade dos campistas e dos governantes sobre a expatriação de acervos e ruínas de diversos patrimônios históricos, o Airizes resiste bravamente, mas dá evidentes sinais que não resistirá por mais tempo. E com ele toda chance de valorização cultural e de educação patrimonial se esvai.

A gestão municipal atual tem a chance e a obrigação de fazer história, e se contrapor ao habitual descaso de Campos com seus tesouros, que são de todo país. A parceria com a Ferroport é um primeiro passo, que deve ser seguido de muitos outros, inclusive da abertura da discussão à sociedade civil. Campos e o Brasil agradecem.
Comentar
Compartilhe
Podia ser assim
10/06/2023 | 10h10
Desceu a ponte da Lapa pela direita, já que estava no sentido centro da cidade. Estava correndo; se exercitando. A mulher havia saído de sua casa em Guarus e ganhava a beira rio pela margem oposta. Cabelos presos, fone de ouvido, blusa branca — calça de suplex até o meio da canela, meias brancas e tênis de corrida.

Depois que passou da Igreja Nossa Senhora da Lapa, encontrou outros praticando caminhadas e corridas, alguns na mesma direção e outros que iam e voltavam até a curva que o rio faz, como se fosse uma enseada, no cais da Lapa.

Assim como a corredora, muitos usavam a XV de novembro para algum tipo de atividade física. Outros percorriam a pé seus trajetos por aquela via, buscando se movimentar de forma mais racional, econômica e sustentável. Mas é certo que aquelas margens urbanas do Paraíba atraíam pela beleza e pela arborização. Para o tráfego dos carros, duas pistas movimentadas de sentidos opostos separaram-se por um canteiro cheio de árvores — ipês e paus-ferro. A via mais próxima do rio terminava em um meio-fio, que por sua vez dava início a uma estreita pista asfaltada, com espaço para duas bicicletas transitarem. Jáessa ciclovia terminava em um calçadão construído no alargamento do dique, onde as pessoas se exercitavam.

A corrida que a mulher fazia naquele dia acontecia um pouco mais tarde que de costume. Percebeu que os pontos de transporte coletivo espalhados na XV de novembro já estavam cheios. O dique calçado em que corria contornava as estações-tubo, feitas de aço e vidro (inspiradas nas de Curitiba), onde as pessoas que aguardavam os ônibus podiam ver quem passava e a paisagem que o Paraíba formava na cidade. A única estação que se diferenciava era a que ficava em frente a Praça São Salvador. Um retângulo de madeira nascido do chão, com vegetação no teto e que tinha como parede de fundo um grande painel que trazia a imagem do cais da Lapa. Nas laterais, telas divulgavam eventos. Essa estação marcava o principal ponto de atravessamento da praça para a beira-rio e vice-versa.

A corrida da mulher iria terminar exatamente naquela estação. Parou com as mãos na cintura, ofegante, puxando e soltando o ar com movimentos do tronco. Tirou os fones e os deixou pendurados nos ombros. Recuperou o fôlego e decidiu atravessar para a praça. No meio do trajeto, reparou na beleza que o dique da beira rio formava ao continuar até a ponte General Dutra, mantendo a ciclovia, o calçadão e as árvores.

Escolheu um dos bancos de ferro da praça São Salvador mantidos no mesmo estilo há mais de um século, e descansou na sombra. À sua frente estava um chafariz importado da Bélgica pela empresa inglesa “Campos Syndicate Ltda”. Aquele seria único no mundo se não houvesse uma fonte idêntica na Europa. Ao seu lado, no final da praça, uma imponente catedral católica de diversos estilos arquitetônicos formava uma construção harmônica. Era a igreja matriz. Alguns metros depois do chafariz belga estava seu prédio preferido: outra igreja, a Mãe dos Homens, com um solar anexo, ambos de dois pavimentos. Havia uma torre mais alta do lado direito, com um sino. Quando aquela construção fazia esquina com a avenida Alberto Torres seguia na mesma altura. Ela observava os detalhes da parte superior, com pequenas esculturas e uma espécie de coroa no topo do desenho de alvenaria que formava-se ao centro.

Já na construção solarenga que ia até a beira rio, havia quatro janelões de cada lado de uma grande porta central, que eram dispostos igualmente no primeiro e no segundo andar. Cada janela acima tinha pequenas sacadas com grades de ferros pretos. As colunas brancas que demarcavam a porta central eram listradas, como se fossem grandes tijolos brancos aparentes. O mesmo acontecia ao lado, nas divisões estruturais da igreja. Ela admirava aquelas construções não apenas por suas belezas, mas pela função que a Santa Casa de Misericórdia cumpriu e cumpria em Campos. Ali, sentada, fez uma pequena digressão mental sobre a ‘roda dos expostos’, e se entristeceu pensando nas crianças que eram abandonadas em uma estrutura cilíndrica de ferro com duas faces, que quando girada expunha para o interior da Santa Casa o filho de alguém ali deixado.

Mas o motivo de ter atravessado para a praça não era apenas de contemplação e descanso. Mesmo porque, como sempre acontecia a partir das quintas-feiras, a São Salvador ficava repleta de pessoas entre campistas e turistas que usavam a orla do Paraíba para esporte e lazer, e iam até o miolo do centro histórico para aproveitar a programação cultural e os cafés que havia no interior e ao lado do Museu Histórico, no Solar do Visconde de Araruama, no mesmo lado da Santa Casa, mais perto da Igreja. O Museu promovia uma palestra sobre a questão escravista e suas relações perversas com Campos.

Mas a intenção dela era participar do “Encontro de Lyras” que a centenária Sociedade Musical Lira de Apolo promovia. Ela gostava de música e estava desenvolvendo uma tese na Uenf sobre as Liras, mas qualquer motivo de frequentar aquele belíssimo prédio era aproveitado por ela. O estilo arquitetônico eclético, a fachada repleta de detalhes significantes e os dois telhados pontiagudos, arrematados por uma lira estilizada, construíram o cenário perfeito para que qualquer iniciativa ficasse mágica.

Ao seguir para a Lira, ela retomou aos ouvidos os dois fones que tocavam sua playlist de corridas. E ignorou os sons da rua. Faria o trajeto apenas admirando o Banco do Brasil ao seu lado esquerdo, construído há mais de um século na primeira esquina que havia daquele lado da praça, depois do rio. As paredes laterais do banco terminavam em um torre arredondada com um cúpula no alto, toda construção repleta de detalhes romanos — ou gregos, não sabia ao certo —, de cor branca. Assim como a Santa Casa, também era listrada pelos vincos de toda estrutura do primeiro pavimento. Ali era a quinta agência do Brasil, e havia sido transformada em centro de convenções e eventos. Uma espécie de CCBB fora da capital. Passou por ele e chegou até a Lira, sem deixar de perceber os Correios do centro, construção também de esquina no mesmo estilo do Banco do Brasil, que apesar de possuir menos detalhes, era igualmente belo e representativo.
Passou pela banca do Coliseu e viu a manchete da Folha da Manhã e do Monitor Campista — este que voltara a circular como uma espécie de jornal escola, ocupando o título de segundo jornal mais antigo do país, agora focado em cultura e turismo — sobre um prêmio que a cidade ganhou pela aplicação exemplar dos recursos dos royalties do petróleo (parágrafo incluído por sugestão e texto, adaptado, do jornalista Vitor Menezes). 

A Lira estava cheia, e uma infinidade de celulares filmavam as bandas da cidade que se apresentavam. Ela virou-se para a direção do rio e teve a visão oposta da praça, e orgulhou-se de morar em uma cidade que soube manter tudo aquilo e aproveitar de forma incrível toda aquela história. O turismo era um dos braços econômicos mais pujantes de Campos.

Podia ser assim.
 
 
 
 
 
 
Santa Casa de Misericórdia no centro de Campos, anexa a Igreja Mãe dos Homens
Cais do Paraíba e o centro de Campos
Prédio do Banco do Brasil, no centro de Campos - quinta agência no país
Correios e Telégrafos no centro de Campos
Praça do Santíssimo Salvador
Comentar
Compartilhe
Centro histórico de Campos em disputa - há muito tempo
08/04/2023 | 10h44
Campos sempre teve dificuldade em reconhecer-se. Os processos de urbanização e “modernização” não levaram em conta sua história, e sempre foram ligados à vontade de ser capital, copiando modelos europeus e americanos. A descaracterização do centro histórico não foi aleatória; obedeceu aos interesses de quem detinha o poder político e econômico, numa visão protecionista, mas sem qualquer interesse preservacionista. Sempre foi essa a visão de “moderno”, em Campos.

O início do século passado foi marcado por mudanças nos centros urbanos — não só em Campos, como em todo país. Era preciso adaptar e preparar as cidades brasileiras para um modelo de vida pós-revolução industrial, focada em consumo e nas comodidades que a vida urbana proporcionava.

O centro nervoso de Campos se desenvolve ao redor da praça São Salvador, tendo o rio Paraíba e o canal Campos-Macaé como linhas mestres do reordenamento urbano. Com a falência das usinas, e praticamente de toda cadeia da cana-de-açúcar em Campos, o comércio se sobressai e começa a se organizar para modernizar a cidade, preparando condições salubres para seus negócios e um mercado consumidor que precisaria ser essencialmente urbano.

Centros comerciais populares, principalmente em volta do Mercado Municipal, precisavam passar por um processo higienista. Em conjunto, os alagamentos e enchentes precisavam ser resolvidos (Campos sempre foi uma planície alagadiça) e o êxodo rural incentivado. Começa nesse período o alargamento das ruas estreitas do centro, mas também um autofágico processo de demolições de casas e comércios considerados velhos.

O engenheiro sanitarista Saturnino de Brito foi um dos grandes responsáveis desse processo em Campos. Além de tratar da insalubridade dos espaços públicos e das epidemias sazonais, o novo projeto urbano trazido por Saturnino precisava ter símbolos de progresso e modernidade. Principalmente no centro.

Elegantes comércios eram erguidos, agências bancárias e fábricas se instalaram, livrarias e cafés tratavam de reunir os “homens de negócios” — muitos conversavam de pé no boulevard formado entre as casas comerciais — , e agitadas redações noticiavam os acontecimentos e divulgavam a opinião dos personagens mais relevantes socialmente. Nasciam as avenidas mais largas e movimentadas: 21 de abril, 7 de setembro, Formosa, Rua da Constituição (hoje Alberto Torres) e Rua Direita (hoje 13 de maio).

Como consequência da efervescência urbana do centro e dos bairros industriais que se formavam (como na Lapa, com a fábrica de tecidos), a elite agrária abandona a vida essencialmente rural, deixando suas propriedades como fontes de renda, mas não como moradia. Alguns decidiram-se pela capital, Rio de Janeiro, e enviaram seus filhos para estudar, outros vieram para o centro — e o entorno — de Campos. Bairros foram determinados por esse movimento de pessoas. O rio Paraíba continuando a ser uma fronteira social. 
Em paralelo, casarões mais distantes do centro foram abandonados à própria sorte, não sendo vistos como ativos, que sempre foram, mas como problemas. Apenas os solares urbanos foram aproveitados, o que reduziu drasticamente a possibilidade de Campos formar atrativos turísticos e da possibilidade de abrigar centros culturais, acadêmicos e de pesquisa, como ocorreu em outras cidades.
Mesmo alguns solares urbanos foram desprestigiados, fruto do próprio auto-desconhecimento dos campistas. Como poucos exceções, o Solar do Barão da Lagoa Dourada manteve-se por ter se tornado o Liceu de Humanidades e o Solar do Visconde de Araruama que abrigou a Câmara, hoje o Museu Histórico.

A disputa atual do Centro Histórico e o comércio


O comércio de Campos, hoje chamado comumente de “setor produtivo”, reivindica novas melhorias no centro, essas prometidas mas nunca cumpridas. Há mais de 10 anos se fala em revitalização do centro histórico, com o projeto “Centro de Cara Nova”, de 2012, por exemplo. As ideias sequer tiveram início, e as reclamações da época persistem.

Não sem razão, comerciantes pedem que o centro seja “embelezado” novamente, assim como no início do século passado. Porém, os problemas e gargalos atuais são outros: fiações expostas, acessibilidade, segurança, poluição visual e sonora, transporte público, ordenamento no trânsito e nos estacionamentos de rua e padronização de calçadas (veja reportagem da Folha da Manhã aqui).

O governo atual prometeu ouvir o “setor produtivo”, e aceitou uma “revitalização 4.0”, com a possibilidade de equipes para reparos, uma “prefeitura do centro” e um necessário programa de retrofit — processo que promove a restauração de prédios antigos e históricos de forma a preservar a arquitetura original e também adequá-lo às necessidades comerciais (veja reportagem da Folha da Manhã aqui).

Nas reformulações urbanas de antes, o comércio foi fundamental. A Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL) foi criada em 1963, mas já existia de fato, como um movimento comercial organizado, desde 1890. Hoje, ela e outras entidades reivindicam que o centro histórico atenda às necessidades atuais (a CDL de hoje é presidida por alguém dos "dois mundos" — patrimônio histórico e comércio — o que traz um alento). 

Tudo muito justo e necessário. O centro histórico da cidade está realmente abandonado. Porém, ele pertence a todos os campistas, e como um elemento essencial de sua história não pode permitir que os mesmos erros sejam cometidos. Os campistas de hoje precisam ser apresentados à Campos, e uma revitalização bem feita do centro pode ser um belo cartão de visitas. Campos precisa se reconhecer. Pelo bem do próprio comércio.
O que já foi dito por aqui sobre o assunto: 
Comentar
Compartilhe
Um museu de vaidades
05/03/2023 | 09h34

O Museu Olavo Cardoso é uma casa. É, sim, um relevante equipamento cultural de Campos dos Goytacazes, mas é apenas uma casa na área central da cidade. Pertence à municipalidade por ter sido doada em testamento, assim que morresse seu último herdeiro, pelo usineiro que batiza a instituição museística.

A ideia de Olavo era que sua residência servisse como um local de preservação da memória e da história de Campos. Não conseguiu. Apesar de sua boa intenção, o museu-casa está abandonado há anos. No final de 2020, um caminhão baú levava boa parte do que havia sobrado no Olavo Cardoso, mas não era para restauro ou alguma exposição; criminosos furtavam a mobília, livros, quadros, peças de arte, objetos de decoração e itens históricos de alto valor.
Museu Olavo Cardoso em nova tentativa de furto
Museu Olavo Cardoso em nova tentativa de furto / Reprodução

Ontem, sábado (4), o Olavo Cardoso sofreu outra ação criminosa. Dessa vez os alvos foram as estruturas de ferro que compõem o entorno da casa, que ainda estão gradeando o belo jardim, e que o deixam visível para quem transita pela rua dos Goitacazes e pela avenida Sete de Setembro. Durante a tentativa, os golpes de marreta dos bandidos foram impedidos por uma equipe de policiais militares que faziam a ronda pelo local, impedindo que um novo furto acontecesse.

Campos tem uma longa — e trágica — história de descaso com seus patrimônios. Explicado por vários motivos, mas que destacam-se a vontade frustrada de ser capital do Estado do Rio de Janeiro, processos de modernização cafonas e superficiais, distanciamentos propositais da população campista de sua história e de suas origens rurais, ausência histórica de um projeto de educação patrimonial e problematização dos processos de exploração humana que construíram a cidade, e por uma característica usual dos personagens que sempre estiveram envolvidos com a questão cultural em Campos: a vaidade.

O antigo Cine Teatro Trianon, com suas galerias que lembravam o Municipal, do Rio, veio ao chão para que desse lugar à uma agência bancária. O prédio da antiga Santa Casa de Campos, na praça São Salvador, da Irmandade de Nossa Senhora Mãe dos Homens, com sua emblemática Roda dos Expostos, transformou-se em ruínas para que um estacionamento fosse instalado. O Hotel Flávio, também no centro, palco de importantes acontecimentos, foi consumido pelo fogo há pouco tempo. Tudo isso sob muitos olhares inertes e inexplicavelmente vaidosos.


Hoje, ano 23 do século XXI, o Olavo Cardoso agoniza, totalmente abandonado, com ruína iminente. O Solar dos Airizes, importante construção de valor nacional, às margens da BR 356 (Campos x São João da Barra), apresenta a mesma situação. Ambos, de total responsabilidade da prefeitura. O primeiro por pertencimento, o segundo por decisão judicial com trânsito em julgado.

.
.
Mas eles possuem uma diferença fundamental: o Solar dos
Airizes é um enorme Solar do século XIX, de restauro extremamente dispendioso. Já o Olavo Cardoso é apenas uma casa. Não há justificativa para que esteja nessa situação. Sua reforma (em princípio não há necessidade de restauro) é uma bagatela para a realidade do erário público de Campos e seu uso pode ser definido de diversas formas pela sua localização central. Além disso, projetos para captar recursos de leis de incentivo não são complexos para o Museu-Casa Olavo Cardoso.

Em uma cidade que gasta 100 milhões de reais em um sambódromo que nunca foi usado devidamente — outra prova inequívoca de cópia sem razão de ser da capital —, e que outros bilhões já passaram pelos seus cofres,  precisa repensar como cuidar de seu patrimônio histórico-cultural.
Vale lembrar que outro elefante branco definha em plena Pelinca: o Palácio da Cultura. Essa construção, assim como o novo Trianon, poderiam perfeitamente compor um programa de parceria com a iniciativa privada, através de concessões responsáveis e condizentes com usos culturais, para que o Olavo Cardoso e o Solar dos Airizes pudessem ser ocupados por órgãos públicos de cultura e educação, que promovessem eventos e abrigassem políticas públicas dessas áreas.

O que não é possível, é que continue assim.
Comentar
Compartilhe
A catarse interrompida na Copa
10/12/2022 | 11h11
Reprodução
Não é preciso gostar de futebol — ou mesmo entender do esporte — para sentir a emoção que ele trás. É perceptível. Principalmente em Copa do Mundo, onde uma efervescência coletiva traz harmonia e estimula sentidos estéticos e ritualísticos únicos, em países que tem no Futebol um forte traço cultural, como é o caso brasileiro.


Cultura são os saberes de um povo. Os costumes, o modo de ser, o modo de agir; a forma de ver o mundo. As expressões artísticas são criadas essencialmente desse “caldo” de cultura. Arte, literatura, música, cinema e outras tantas formas de materializar (e eternizar) cultura e conhecimento dependem da cultura para existir.

O futebol tem esse poder no Brasil — como poucas outras expressões humanas possuem por aqui. É uma cultura de massa que permite um sentido de totalidade que é raramente encontrado em outras esferas da vida social. Chico Buarque cantou e compôs o futebol, Nelson Rodrigues escreveu a seleção brasileira co­mo  uma "pátria de chuteiras”.
Nelson Rodrigues no estádio. Era torcedor do Fluminense.
Nelson Rodrigues no estádio. Era torcedor do Fluminense. / Arquivo

Como uma das principais expressões culturais do Brasil, o futebol permite que abraços fraternos aconteçam entre os diferentes de forma genuína. Somos, todos, irmãos de chuteira quando tecemos pela seleção: conversas informais na padaria se transformam em esquemas táticos, insatisfações com o técnico ficam mais leves quando compartilhadas no escritório. As diferenças de classe, de raça e credo deixam de existir, mesmo que por algum momento, e passam a ser coadjuvantes.

O futebol, especialmente na Copa do Mundo, é uma catarse — algo como uma purificação. Na psicanálise, a catarse é um conceito muito caro, usado para que traumas sejam superados. Nas palavras de Aristóteles, a catarse refere-se à purificação das almas por meio de uma descarga emocional provocada por um trauma.

No Brasil de 2022 a catarse de uma vitória derradeira — ou pelo menos a vivida na emoção de uma disputa final — era importante. Mas não aconteceu. Terminamos uma eleição há cerca de 40 dias, e saímos devastados, divididos ao meio e brigando o tempo todo com quem pensa diferente.
Metade dos brasileiros rejeitou o grupo vencedor, outra metade viveu tempos de agonia, sob o risco de uma ruptura democrática. Parte da primeira metade não aceitou o resultado, e está nas ruas, ainda protestando. Pessoas que se agarram em caminhões, que lançam sinais de seus celulares para o céu na esperança alienígena, que cantam o hino para um pneu no meio da rua, precisam ser resgatadas. Elas se perderam.
Muito de psicanálise e catarse era preciso para tentar resgatar essas pessoas, mas também para criar um clima melhor no país para que isso acontecesse, para que pudesse melhorar os afetos de quem não se entregou à uma realidade paralela, e precisa conviver com o diferentes — todos os dias.

Mas a catarse foi interrompida. A “cura” e a “purificação” não foram possíveis. Sim, temos ainda o futebol e nossa cultura, e outros campeonatos virão, mas como seria bom sermos "purificados", um pouco que seja, do ódio que deixamos entranhar na sociedade brasileira.

Os técnicos nas padarias acordaram de ressaca culpando o Tite, que por sua vez culpou a própria equipe, e os abandonou no campo. Na narrativa ‘futebolesca’ do Brasil na Copa de 2022, o técnico Tite se transformou no vilão (merecidamente por abandonar sua equipe aos prantos), os jogadores em heróis derrotados, os memes (sic) em alívio cômico e o craque da rival Argentina, Messi, em anti-herói (errado torcer por ele?).

Os jogadores da seleção provocam no brasileiro, em grande parte de nós, idealização e identificação. A vitória é comemorada aos berros; as derrotas sofridas como se fossem de um ente familiar. E o desenrolar da Copa é uma novela, um conto de Nelson Rodrigues, uma música de Chico ou uma crônica de costumes.

Foto: GABRIEL UCHIDA
A catarse foi interrompida. Mas os conflitos, que regulam qualquer competição esportiva, deve possuir um caráter singular que simultaneamente demarca e harmoniza as diferenças. O esporte ensina que quando queremos eliminar o inimigo, ou levar a batalha às últimas consequências, significaria certamente o fim do drama esportivo — ou da democracia, na analogia necessária.


A derrota na Copa do Mundo de 2022, nos ensina, mesmo sem a catarse necessária, que um oponente só existe em função do outro, e quanto maior a sua força, maior o conflito e mais empolgante é a competição.
O Brasil precisava da vitória. Mas é preciso lembrar que a democracia venceu há 40 dias, e vai continuar precisando de muito esforço. (ah, mas que seria bom uma catarse, seria...)
Comentar
Compartilhe
Após um ano, acordo segue descumprido: R$ 20 milhões do Arquivo Público parados
05/10/2022 | 08h55
Rodrigo Silveira/Folha1

Em outubro de 2021, o blog Opiniões, de Aluysio Abreu Barbosa, hospedado no Folha1, dava em primeira mão a notícia de que, finalmente, o Solar do Colégio — prédio secular que abriga o Arquivo Público Municipal de Campos —, seria restaurado.

O valor reservado para as obras foi de 20 milhões de reais, resultado da economia da Alerj, repassado na forma de recursos duodécimos à Uenf. A universidade ficou responsável pela execução das obras, com participação da Prefeitura de Campos. Além do restauro, também estava prevista a digitalização do acervo que há no Arquivo.


O acordo foi muito comemorado pelo setor cultural da cidade, afinal trata-se de um solar jesuíta do século XVII, que conta muito sobre os processos de formação de Campos, e cumpre o essencial papel de educação patrimonial.
Por sua simples existência, o restauro já é justificado. Mas, as paredes do Solar do Colégio atualmente abrigam o 5º melhor Arquivo Público do país, que possui uma infinidade de documentos históricos de grande valor para toda região Norte Fluminense.

Porém, desde de outubro de 2021, quando o acordo foi firmado, nada foi feito. A Uenf recebeu os R$ 20 milhões prometidos em janeiro deste ano, como afirmou o prefeito Wladimir na ocasião, em tom de vitória: “O recurso necessário para restauração completa de todo Arquivo Público de Campos, como também a digitalização de seu acervo já está na conta da Uenf”.

A Uenf alega que não encontrou a situação  que a prefeitura havia dito existir. Segundo a universidade, o termo de compromisso que havia entre a empresa Sabra, sediada em Minas, e a prefeitura, para restauração do Arquivo, não poderia ser usado na aplicação dos recursos, pois estava prevista uma indispensável licitação.

Mas o fato é que não houve movimentos efetivos da Uenf para iniciar o processo licitatório. Ainda segundo a universidade, uma série de documentos e projeto de restauro deveriam ser apresentados pela prefeitura para o início do processo. A prefeitura, por sua vez, afirma que encaminhou em julho os documentos necessários à licitação.

Justificativas à parte, sabe-se que é possível fazer um processo licitatório para contratar o projeto, inclusive no mesmo ato, licitar também a obra, desde que não seja a mesma empresa escolhida para as duas etapas.
Mas até agora, nada de concreto foi apresentado pela Uenf. Nesse período do ano, a tendência é que as chuvas sejam mais intensas e o risco de deterioração do Solar e do acervo que ele abriga aumentam consideravelmente.

É compreensível que todos os trâmites burocráticos sejam cumpridos, e é uma exigência legal que todo processo seja o mais transparente possível — afinal, trata-se de dinheiro público. O que não é aceitável é que as instituições envolvidas não apresentem nenhum andamento concreto em 1 ano de acordo e 9 meses de recursos parados em conta. Se a licitação é indispensável, a morosidade é.
Comentar
Compartilhe
Mercado Municipal: 101 anos, 41 escondido
15/09/2022 | 07h44
Reprodução

Como na maioria das cidades Brasil afora, o Mercado Municipal é um elemento essencial para entender os processos de construção e crescimento urbano. No caso de Campos dos Goytacazes, o mercado e a praça São Salvador foram locais de grande efervescência social, cultural, política e comercial da cidade.

O Mercado Municipal de Campos não nasceu onde está hoje, outros três existiram no município. O atual foi inaugurado há 101 anos, quando a cidade passava por uma política higienista e de modernização, e um imponente prédio foi construído para abrigar o mercado.
Matéria da Folha sobre os 101 anos, aqui

No dia 15 de setembro de 1921, ao som de bandas e com a presença do prefeito Cezar Tinoco e diversas autoridades, a população foi enfim apresentada ao novo prédio do Mercado. Dois grandes pavimentos de mesmo tamanho, divididos por uma torre do relógio de inspiração europeia. Mais especificamente, a torre é quase uma réplica de outra existente no mercado de Nice, capital da Riviera Francesa.

Os permissionários passavam a contar com um novo espaço para o comércio de gêneros alimentícios populares. E Campos passava para o rol de cidades com um Mercado atrativo, bonito, simbólico e pronto para durar pelos séculos seguintes. Mas durou pouco mais da metade de um.

Mercado de Nice, França.
Mercado de Nice, França. / Reprodução
Em 1981, já no governo Raul Linhares, foi constituída à frente do prédio — e da torre — uma enorme estrutura de sustentação, onde perfis de aço sustentam uma cobertura em alumínio. O que era um dos principais atrativos do Mercado estava escondido, encoberto por um “telhadão”. Se não bastasse, 10 anos depois, outra estrutura viria a esconder o que restou do prédio: nascia o camelódromo.


Toda ideia e toda construção do mercado passou a ficar espremida. Hoje, quem frequenta o local talvez não esteja satisfeito com as condições atuais, e provavelmente sequer saiba que ali existe um prédio com tamanha beleza e simbolismo.

Os reordenamentos urbanos em Campos obedeceram à uma perspectiva higienista. Em 1902, o então presidente da Câmara, Benedito Pereira Nunes, encomendou a outro campista e engenheiro sanitarista, Saturnino de Brito, saneamento e remodelação do espaço urbano, e Saturnino considerou o Mercado um dos maiores “problemas”.

Sendo uma planície alagadiça, Campos precisou de uma estrutura de canais para drenagem. O principal deles, o Canal Campos-Macaé — a maior obra de engenharia do Brasil no século XIX, e o segundo maior canal artificial do mundo — foi o que levou o Mercado a ser instalado onde está onde está hoje, onde estaria "saneado" e "moderno". 

Campos dos Goytacazes — diferente da maioria das cidades Brasil afora que possuem mercados belos e históricos — não soube aproveitar o que recebeu e construiu. Espremido e escondido, o prédio se torna um estorvo, e a torre francesa, uma jóia inacessível.

*O Mercado Municipal é tombado desde 2013 pelo Conselho de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural de Campos (Coppam) e, há vários anos, vem sendo mapeado para receber tombamento também pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac). O Coppam, apesar de sua atribuição principal de defesa do patrimônio, autorizou a descaracterização do entorno e o encobrimento do Mercado.
Comentar
Compartilhe
Próximo >
Sobre o autor

Edmundo Siqueira

[email protected]