Crônica: Doutor Humberto volta à Campos
10/03/2024 | 06h19
Imagem gerada por IA - Edmundo Siqueira


Humberto saiu de Campos para cursar engenharia na PUC de São Paulo. Saiu novo e nunca mais havia voltado à cidade. Resolveu sua vida por lá, e decidiu esquecer de onde veio; fazia questão de não saber nenhuma notícia.

Mas, por essas idiossincrasias do destino, Humberto, já com quase 70 anos, precisou vir à Campos para fechar um contrato de um novo condomínio. Pediu ao escritório para ver algum hotel disponível, alugar um carro, e reservar dois ou três restaurantes. Quando recebeu a variedade de opções que tinha à escolha, se surpreendeu: “Campos cresceu, está moderna! Finalmente.”

Decidiu não alugar nenhum veículo, ia andar de Uber. Queria ver como estava Campos depois de tantos anos, sem se distrair com o volante. Com muita dificuldade, achou um voo para a cidade — quando avaliou que talvez Campos não tivesse crescido tanto assim — e desceu no Bartolomeu Lisandro, às duas da tarde.

Com alguma demora, um Chevrolet Prisma prata encosta, dirigido por Evandro.

— Boa tarde. Senhor Humberto?
— Isso, boa tarde.
— Vamos para o hotel…
— Não, vamos passar em alguns lugares antes disso — Humberto interrompe o motorista. — Pode ser?
— Claro, o senhor que manda.
Aeroporto Bartolomeu Lisandro
Aeroporto Bartolomeu Lisandro / Foto: Genilson Pessanha

Humberto havia anotado alguns pontos que tinha curiosidade em ver novamente, e um deles era a Praça São Salvador. Em alguns minutos, estavam atravessando a Ponte Alair Ferreira.

— Olha aí o majestoso…lá em São Paulo temos ele também, o grande Paraíba.
— O senhor é paulista?
— Na verdade sou daqui.
— Daqui, daqui? De Campos mesmo?
— Sim…
— O rio não é mais o mesmo não, tá estranho. Tem muita água que sai daqui para outros lugares, inclusive para São Paulo.
— Tem razão — disse Humberto enquanto olhava para o cais, descendo a ponte. — E a política, como está por aqui?
— Ih rapaz, muita coisa acontecendo.
— O Garotinho está por aqui ainda?
— Está, mas quem governa a cidade hoje é seu filho, o Wladimir.
— Sempre achei que era a filha que ia seguir os passos do pai.
— Ela seguiu, mas perdeu a última eleição que concorreu.
— Eu sei, política nacional eu acompanho. Esse menino foi deputado, mas achava que ia ficar no legislativo.
— O pai e o filho estão sempre brigando.
— Sério? Por quê?
— Rapaz, o filho criou um grupo só dele, e o pai não gosta disso não. Acho que ele queria governar igual fazia com a mãe.
— E está sendo bom para Campos?
— O asfalto aqui que estamos passando tá novinho.
— Só isso que tem a dizer do prefeito?
— É que eu ando muito de carro, né doutor. Mas tem muita gente pobre aqui. Sem transporte. Mas ele é muito bem visto aí pelo pessoal.
— Tudo gira em torno do petróleo aqui, e aí não gera emprego. Desde que eu fui embora daqui era assim.
— O senhor tem razão — Evandro encostou o cotovelo na porta, e apoiou o queixo.

O carro estava parado no sinal, esperando para entrar na XV de Novembro. Quando a luz verde foi sinalizada, o motorista continuou a conversa.

Reprodução
— A menina, Clarissa, tá muito junto com os bolsonaros.

— Cidade conservadora, né? Aqui e o Rio.
— É. Até castrar os homens ela propôs na campanha. Isso que chamam de extrema-direita, né? Mas…o Rio de Janeiro é conservador?
— Por incrível que pareça, sim. Basta ver os políticos que saem daqui. Até Crivella foi prefeito do Rio. Aliás, Bolsonaro saiu daqui.
— De Campos, não!
— Não, do Rio, capital — Humberto deu um leve sorriso.
— Essa turma é conservadora? Tô perguntando porque não sei mesmo, doutor.
— São da direita, e o conservadorismo está nesse campo. Mas estão mais para reacionários.
— E o Tarcísio, lá em Sampa? É dessa turma né? Disse um “tô nem aí” esse dias quando reclamaram da violência das polícias.
— Aprendeu bem. Ele aprendeu bem…
— Ah, o Queiroz, da rachadinha de Bolsonaro quer vir pra cá, ser candidato a vereador.
— Não é possível. Tudo tem limite. Não posso acreditar numa coisa dessas.
— O senhor é de esquerda, então?
— Sou liberal.
— Ih, agora está ficando ainda mais confuso. Olha a praça aí que o senhor queria ver.
— Meu Deus — Humberto abril o máximo que pôde o vidro de trás.
— O que foi, doutor?
— Colocaram mármore em tudo?

Evandro ficou surpreso com a expressão de Humberto. Misturava tristeza e perplexidade, mas ele não via motivo para isso, e achava o passageiro cada vez mais estranho. “Esse pessoal paulista deve ser assim”, pensou. Mas tentou entender melhor:

— Era mais bonita antes?
— Muito. Muito mais. Como deixaram isso acontecer? — perguntou Humberto, retoricamente.
— Foi na época de Dr. Arnaldo.
Praça São Salvador em tempos antes do mármore
Praça São Salvador em tempos antes do mármore / Foto: Centro de Memória Fotográfica de Campos - IFF
— Foi prefeito esse?
— Sim, o filho dele também está na política, foi candidato contra Wladimir na última.
— São clãs, então.
— Isso não é negócio de máfia, doutor?
— Mais ou menos. E esse filho do Arnaldo vai concorrer de novo?
— O Caio. Olha, ele ia, mas agora tá junto com o prefeito.
— Sério?
— Então, vi na Folha que até ontem era sério, mas aí tem um negócio aí novo com o prefeito do Rio…mas sei bem não. É um troca-troca danado.
— Sei…aqui perto dessa praça tinha vários prédios antigos bonitos. Como estão hoje?
— Tudo no chão.
— Estou pesquisando aqui. O pior que você tem razão.
— Tem um lá em Tocos, um aqui perto, o Museu, e um lá indo para Atafona. Esses dias derrubaram um aqui bem pertinho, um hotel velho.
— Hotel Flávio. Vi aqui no celular. Meu Deus, um patrimônio histórico.
— Prédio velho, doutor.
— Em alguns lugares teria muito valor.
— Tem que modernizar, acha não?
— Digamos que sim, o que vai ser no lugar então?
— Acho que um estacionamento.
— Entendi — Humberto balança a cabeça negativamente.
— Ah, mas agora vão restaurar o Asilo do Carmo.
— A prefeitura?
— Parece que é o Lula.
O presidente Lula durante o lançamento do Novo PAC, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro (construção da capital que representaria o antigo Teatro Trianon em Campos, caso estivesse de pé)
O presidente Lula durante o lançamento do Novo PAC, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro (construção da capital que representaria o antigo Teatro Trianon em Campos, caso estivesse de pé) / Foto: Tércio Teixeira/Folhapress

— O Governo Federal vai investir no Asilo do Carmo?
— Um tal de PAC.
— Ah sim! Aí tudo bem. Vamos dar uma passada lá então. Quem conseguiu isso, a prefeitura?
— Ih rapaz, essa é outra confusão.
— Por quê?
— Um fala que foi o prefeito, o outro o pessoal do PT aqui de Campos, até de Carla Machado tão falando. Filho bonito é cheio de pai e mãe, né.
— Carla? Foi prefeita aqui?
— De São João da Barra. Quer vir por aqui agora. Ah…! Esse é o negócio de clã que o senhor disse né?
— Mais ou menos. Olha, já deu para mim, me deixe no hotel, por favor.
— O senhor que manda.

Enquanto seguiam para o destino final, um silêncio reflexivo se estabeleceu. Já na frente do hotel, se despediram.

— Obrigado, Evandro. Até.
— Eu que agradeço, doutor. Uma última pergunta, se o senhor não se importar. Como o senhor acha que Campos está?
— Ainda é o espelho do Brasil. Uma polarização autofágica, briga para todos os lados, e nenhuma mudança estrutural à vista.
— Polarização autofa…não entendi muito bem não, mas deve ser bem ruim.
— É sim.
— E como sai disso?
— Pelo aeroporto — Humberto riu. — Tô brincando, o primeiro passo é estabelecer limites éticos, fortalecer a democracia, e saber com que se faz aliança.
— Mas importa tanto assim com quem a gente luta, doutor?
— Mais que a própria guerra.






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Livraria de shopping
03/03/2024 | 08h55
Edmundo Siqueira - Imagem gerada por IA
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Agradeço aos deuses da literatura por (ainda) existir livraria em shopping center.

Devo confessar que uma das missões familiares mais custosas para mim é frequentar esses espaços malls (shoppings). Geralmente saio de lá entediado e esgotado, com a sensação que gastei toda minha energia vital. Mas, há muito descobri um refúgio naquele mundo de lojas de departamento e restaurantes barulhentos: a livraria.

Fizemos um acordo, eu e minha esposa. E sua aplicação se estende a qualquer familiar ou amigo que esteja em nossa companhia naquele momento difícil (para mim, pelo menos). Regras não escritas que devem ser respeitadas, mesmo em minha ausência: “ele deve ter ido comprar alguma coisa”, responde ela, caso algum desavisado reclame o fato de eu ter desaparecido subitamente.
Em troca da mentira social, e da cumplicidade exercida, ela pode demorar o tempo que quiser no shopping. E ainda pode me requisitar para uma segunda opinião sobre tecnologia, e até sobre roupas. Pelo menos naquele ambiente, nos permitimos estratificações sociais e levezas consumistas mútuas.

Praticamente o único item exigido por mim nesse acordo pré-mall é me deixar enfurnado na primeira livraria decente que apareça no shopping. No Rio, muitos desses ambientes absorvedores de energia vital possuem ótimas livrarias. Na Zona Sul tem umas mais modernas e com bastante novidade do mercado literário, na Barra da Tijuca tem uma mais clássica, ampla, bonita, com música ambiente. Lugares onde levo o tempo para passear, enquanto o acordo vai se cumprindo.

Em Campos, até onde eu sei, apenas um shopping tem livraria. Boa livraria, por sinal. No mezanino tem vários setores interessantes de garimpar, uma ou outra revista cult, e cadeiras pretas e acolchoadas; confortáveis para descansar as pernas e ativar o lobo temporal esquerdo.

Talvez nem todos saibam, mas nessas livrarias você pode se sentar e folhear o livro que quiser. É o que eu faço no meu momento de liberdade apalavrada. Em geral, pego um livro de história ou política e leio até onde dá. Ou até o celular avisar que o acordo está vencendo, ou ainda a cláusula sobre ser requisitado é acionada pela esposa.


Claro que a livraria não é boba, tampouco instituição de caridade. A permissão para leituras gratuitas serve para estimular você a levar a obra. E muitas vezes vejo o ímpeto consumista, outrora criticado, me vencer. Sem perceber, me vejo negociando comigo mesmo um Oscar Wilde, um Hemingway que já li mas não tenho, um box de Rubem Fonseca, ou um Carla Madeira que lançou recentemente.

Neste fim de semana, na livraria do shopping campista, estava eu saindo com uma sacola verde nas mãos, que embalava uma obra de sociologia política da atualidade, irresistivelmente exposta na prateleira do mezanino, e vejo um público jovem garimpando livros em várias seções, principalmente nos romances.

Como sou um frequentador de livrarias de shopping quase profissional, treinei minha visão para perceber quem está ali para comprar canetas e estojos, e quem está interessado em literatura. Para minha surpresa, e esperançoso renovar de energia vital, sempre vejo muitos consumidores jovens realmente interessados nos livros.

Meninas e meninos, por volta de 14-16 anos (entre os adolescentes o público feminino é maior, entre crianças é bem dividido), realmente interessados, e discutindo literatura entre eles. Sei que é uma amostragem pequena e burguesa, mas confesso que saio feliz ao ver que os livros ainda encantam, em tempos de IA e TikTok.

Tomara que as livrarias, pelo menos as de shopping, sobrevivam. Ainda não sei o que fazer quando tiver que ir nesses lugares e o contrato não puder ser cumprido por falta de objeto.
 
*Últimas matérias: 
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Deixe a arma e pegue os cannoli
28/01/2024 | 10h41
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Era uma terça-feira, meados de fevereiro. A família se reunia em torno da decisão que iria permitir que continuassem no comando da casa. Era uma casa dividida, mas uma das famílias ainda tinha o comando total. Eram eles que confabulavam naquela tarde.

— Temos a maioria, chefe. Não há como perder — disse um dos líderes do baixo clero, Fredo.
— Pode ser, mas ainda temos que confirmar alguns pontos.
— Quais?
— Acho que é muito cedo para a votação. Preciso confirmar alguns pontos, já disse.

O chefe foi consultar Don Tommasino, um antigo capo que servia de consigliere — uma espécie de consultor.

“Há um traidor entre vocês”, Tommasino foi categórico. Embora o chefe confiasse na avaliação do experiente Don, preferiu arriscar. A consulta foi feita por telefone, e na sala estavam alguns associados, soldados e até capitães. Enquanto Tommasino falava, no viva-voz, e reafirmava a existência de um traidor, o chefe fazia sinal negativo aos seus subordinados, indicando que não aceitaria o conselho. A votação para o comando da casa iria acontecer naquele mesmo dia, no final da tarde.
imagem criada por IA
imagem criada por IA / [email protected]

Por volta das cinco e meia, a votação seria iniciada. Os membros da família controladora estavam confiantes, e já não lembravam da ligação que ouviram algumas horas antes. A outra família, os Barzini, pareciam tranquilos, e alguns até esboçaram alguns sorrisos sarcásticos.

Clemenza, um capitão que comandava o território da baixada, pediu a palavra e defendeu que o comando deveria ir para a família Barzini. Mesmo se dizendo independente, e ligado apenas ao território que comandava, Clemenza se aproximava cada vez mais da família Barzini. Após terminar sua fala, o capitão recostou-se na cadeira e abaixou a aba de seu característico chapéu, o que o fez cochilar.

Enquanto Clemenza dormia, a votação terminou. Todos ficaram ansiosos para saber o resultado, e definir quem iria ficar comandando a casa pelos próximos dois anos. Fredo iniciou a contagem dos votos e seu semblante rapidamente se transformou. A eleição estava perdida. Um membro da alta cúpula da família Barzini era o novo presidente eleito da Casa.

“Don Tommasino estava certo, aquele velho carcomido! Alguém me traiu!”, pensou Fredo enquanto todos brigavam, entre gritaria e empurrões.

Os dias que se seguiram depois da votação foram desesperadores para Fredo. O chefe cobrava uma solução definitiva, e que ele fizesse o que fosse preciso para continuar controlando a casa, e que descobrisse quem era o traidor. Uma das alternativas para anular a votação foi tentar comprovar que Clemenza não havia votado, mesmo ele tendo declarado seu voto. Não deu certo, todos sabiam que ele dormia durante a votação, mas era claro sua posição a favor da família Barzini naquele momento.

Sobre o traidor, Fredo logo descobriu:

— Foi o Moe Greene, chefe. Aquele salafrário jurou que votava em mim. Fizemos até uma oração, como eu podia imaginar, pelo amor de Deus!
— Subestimamos a sabedoria do velho Tommasino, Fredo. Pagaremos um preço alto, e agora vamos ter que aguentar as consequências.
— Será? Acho que não vamos ter problema, chefe!
— Teremos, e não vai ser agora. Os Barzini são rancorosos, e tem aquela agressividade que o capo deles sempre traz à tona.
— Então vamos ao Joey Zasa, o Barzini que está na capital. Ele pode reverter isso tudo, ele é o chefe agora! — Fredo estava ficando ainda mais desesperado.
— Deixe de bobagem, homem. Quem você acha que arquitetou tudo isso? — finalizou o chefe.

Quase dois anos depois, o chefe confirmava seu receio. A cidade, mesmo controlada por ele e sem demonstrar que perderá o controle nos próximos anos, quase ficou paralisada por ação dos Barzini. Também como previa o chefe, o capo da família rival o atacou de forma dura e agressiva. Até tapas na cara foram prometidos, aos berros, no chefe e em Don Tommasino.

Mas o chefe tinha aprendido a lição de 2022. Era preciso controlar as crises, e tentar fazer com que os interesses das famílias rivais não fossem mais importantes. Mesmo ele sendo de uma família que há anos controla territórios, com interesses bem definidos. Carismático e com aprovação de suas ações pela maioria da cidade, o chefe sabia que precisava manter os amigos próximos, mas os inimigos mais próximos ainda.

Durante a crise mais recente, e após os ataques que recebeu, o chefe foi novamente ao encontro de Don Tommasino, desta vez disposto a seguir seus conselhos. “Nunca odeie seu inimigo, isso afeta seu julgamento”, disse o velho Don. O chefe logo entendeu como uma orientação valiosa, e decidiu acatar. Mesmo sabendo que pessoalmente Tommasini não agia assim, na maioria das vezes.

O chefe fez uma autocrítica, e percebeu que havia quebrado um acordo feito com o capo dos Barzini. Mesmo relativamente novo, sabia do peso de uma palavra dada e descumprida. Se arrependeu, mas conseguiu reverter, dada a reação descabida do capo. “Ele pensa que ainda estamos no tempo dos Bórgias”, pensou o chefe.

Após algumas batalhas, e mesmo tendo ficado ferido, o chefe conseguiu sair fortalecido do mais novo embate com a família Barzini. Seu braço direito, e agora subchefe, Tom Hagen, mesmo sem ser um familiar, ajudou a apaziguar os ânimos e pacificar novamente as brigas entre as poderosas famílias.

A casa continuou sob o comando dos Barzini, mas o chefe conseguiu a maioria dos votos. Até o astuto Clemenza hoje é aliado de primeira hora dele. Fredo saiu da casa, e hoje está tocando as obras da cidade. Don Tommasino mantém-se apenas como consigliere, para a alegria do chefe. Moe Greene ficou desacreditado por todas as famílias, mas ainda é protegido pelos Barzini.

Depois de mais uma batalha finalizada, o chefe aparenta cansaço. E faz uma proposta irrecusável para Tom Hagen: “cuide da cidade por um tempo, para mim”.

Enquanto isso, Vincent Mancini, filho de outro antigo capo da cidade, esse já aposentado, confabula mais uma traição, sedento por um lugar à mesa. Perguntado sobre como ficaria o acordo que fez com o chefe, Mancini finaliza: "Não é nada pessoal. São apenas negócios”.




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Morte e impostos - O dia que Kissinger encontrou com Napoleão
05/12/2023 | 10h56
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Ele percebeu que havia morrido quando caminhava sozinho em uma paisagem gélida, sem se cansar. Suas pernas, antes quase inúteis por 100 anos de uso em uma vida de excessos, não demonstraram qualquer vacilo, mesmo afundadas na neve. “Só posso estar morto”, pensou. “Não deve ser sonho, é a morte, e já não estava sem tempo”.

Aproveitou a vista e a caminhada. Sentia-se bem, apesar de reconhecer a morte. Olhou para suas mãos e percebeu que ainda estava velho; o corpo não havia rejuvenescido, só não se cansava mais. Achou uma pequena colina e já em seu topo fechou seus olhos, respirando o ar gelado. Tentou fazer uma pequena retrospectiva de suas últimas horas no mundo dos vivos, mas não lhe veio nada. Pensou que aquela história de que a vida passa diante dos olhos antes da morte era uma balela. “Deve ser mentira, não vi nada” — não levou em consideração que sua vida foi incrivelmente intensa e complexa, e que mudou o mundo moderno.
Imagem criada por I.A. - Edmundo Siqueira
Embora estivesse gostando de estar sozinho; o que era raro durante sua vida. Começava a se incomodar em ver apenas neve e árvores enquanto andava. Havia algumas elevações que revelavam as pontas cinzas das pedras e havia o verde congelado de pinheiros-silvestres, alguns espruces e outras árvores coníferas. De resto, tudo branco e quieto. Apenas o barulho de vento e do afundar dos pés na neve ao andar. Tentou gritar; mas foi inútil. O único a fazer era mesmo andar.

Depois de algumas horas finalmente avistou algo de diferente. Os óculos que ele mantinha na cara por toda vida já não eram mais necessários, mas mesmo assim o limpou para confirmar que estava vendo realmente o que seria uma espécie de casa. Ao se aproximar confirmou ser uma choupana de madeira, com uma chaminé externa de pedra que começava do chão. A fumaça que saía no ar e uma luz terna vinda do interior do casebre denunciavam que havia alguém ali. À medida que ele se aproximava mais, aumentava o receio do que ou quem encontraria, mas não lhe restava muita escolha.

Sem muita demora chegou até a casa, e depois de três batidas na porta, olhou pelo vidro com as mãos em concha por cima das sobrancelhas. “Alguém aí?”, perguntou com a voz rouca. Sem qualquer resposta, decidiu entrar. Sem trancas, o rangido das dobradiças velhas deram um tom de suspense ainda maior do que a situação já trazia.

Enfim, o morador da choupana foi revelado sem dizer seu nome, mantendo-se de costas, sentado em uma mesa de madeira com bancos compridos. O velho ficou surpreso ao ver que era alguém vestido com uniforme militar francês do século 19, com um chapéu de feltro, com abas amplas e rígidas, e coroa alta. Era Napoleão. Ou alguém vestido como Napoleão.

Photo: Taryn Simon. Courtesy Gagosian
— Olá, meu senhor. Me chamo Kissinger, Henry Kissinger. Quem é o senhor, e onde estamos? — disse o velho, que se apresentou sem se aproximar.

— Já esperava por você, senhor secretário — respondeu ainda sentado à mesa, de costas.
— Secretário? Então me conhece! Diga, homem, onde estamos afinal? Estamos mortos?
— Morte…ah, velho Kissinger, conhecemos bem ela, não é mesmo? Carregamos tantas nas costas que a reconhecemos de cara.
— Quem é você? Exijo que se revele!
O homem virou-se; era mesmo Napoleão.
— Aqui não exigimos nada, senhor secretário. Mesmo eu, um Imperador da maior nação que nosso mundo já viu, não exijo nada por aqui. Aliás, estamos numa posição desvantajosa, não sei se percebeu, mas não há nada aqui além de nós, das árvores, da neve e essa casa imunda de madeira.
— Meu Deus…estamos no purgatório? — Kissinger resolveu sentar-se no banco de madeira ao lado do anfitrião.
A resposta veio após uma sonora gargalhada:
— Fique aí, meu velho. Vou pegar uma bebida — Napoleão levantou-se e buscou uma ânfora de duas alças na extremidade do cômodo, serviu dois copos do vinho que estava em seu interior e continuou: Até hoje não sei onde estou, mas acredite: não há nada de transitório aqui, é tudo definitivo.
— Espere aí, se você é mesmo Napoleão, está aqui há mais de dois séculos! Não pode ser, isso não pode ser verdade — pela primeira vez Kissinger demonstrava desespero.
— Você falando em purgatório…em verdade…achei que estaria mais consciente de si mesmo, meu nobre amigo. Eu e você não lidamos com verdades, e nenhum purgatório nos levaria para o céu.
— Olhe, eu não sei quem é você, não sei o que faço aqui. Isso tudo me parece um pesadelo, se que vou acordar na minha cama, logo. Aliás, se isso aqui não é um purgatório, também não pode ser o inferno.
— Diz isso por causa do gelo? Queria o que? Labaredas de fogo e cheiro de enxofre?
— Sim! — disse Kissinger em voz mais alta.
— Eu juro que achava você mais esperto.
— Olhe bem, eu vou embora! Isso tudo é uma loucura. Adeus.
Kissinger levantou-se abruptamente e caminhou à porta.
— Pode ir, não vai encontrar nada lá fora mesmo. Entenda, nós não cansamos, não temos fome, e sequer o vinho nos embriaga, mas por outro lado não temos nada além dessa casa e do gelo.
A afirmação sobre a ausência de cansaço fez o velho Kissinger acreditar no que ouvia.
— Ok, você ganhou, Napoleão. Vou entrar nesse seu jogo. Como sabe que eu viria?
— Eu recebo um relatório.
— Ah, então vou poder ir embora em algum momento!
— Não disse isso.
— Eu não mereço esse exílio!
— Disso eu entendo.
— De culpa?
— De exílio.

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Os dois riram. E ficaram um tempo sem conversar. Kissinger ficou de pé, ao lado da janela, olhando para o exterior branco e sufocante. Após refletir por um tempo continuou a falar, dessa vez em monólogo. Explicou como o mundo havia mudado desde que Napoleão tinha morrido, e como a França havia se comportado como nação na Segunda Guerra. 
Ao entrar na história dos EUA, uma discussão acalorada começou. Discordaram sobre economia e diplomacia. E em como seus países tratavam a cobrança de impostos.  
Havia muitos nacionalismos para uma casa tão pequena.

— Eu mudei o século 20! Me respeite seu corso pedante! — disse Kissinger com dedo em riste.
— Eu fiz o 19, seu velho alemão egoísta! — retrucou Napoleão.
— Eu não matei gente como você matou, não fui um Ditador disfarçado de Imperador.
— Sério? Depois da Indonésia, do Chile...do Camboja? Está tudo no relatório, e não tem mentiras nele, diferente nos do seu país.
— Não ouse falar da minha nação. Somos o líder do mundo livre!
— Parece até aquele pessoal do Robespierre…me dá até sono.
Kissinger dá uma pausa antes de continuar.
— Só há um motivo para eu ter vindo para cá. Temos muito em comum, apesar de eu achar isso um absurdo. Mudamos nosso século, fizemos algumas besteiras, lideramos um país importante, fomos naturalizados em outra nação e lutamos por ela...eu vim da Alemanha e você da Córsega…mas deve ter alguma outra coisa.
— Você falando assim, e de acordo com a história que me contou agora há pouco, pensei aqui com meus botões — Napoleão estava sentado em uma cadeira que havia na casa, com um dos braços apoiados no topo do encosto, e o outro em sua perna. Vestia um uniforme branco, com botas pretas de cano alto. Havia colocado um casaco surrado enquanto Kissinger contava sobre o século que ele não havia vivido — Não seria a Rússia nosso principal ponto em comum? Veja, toda essa neve e essa terra arrasada.
— Sim! Só pode ser isso, Napoleão! A Rússia.
— A Rússia! Sempre os russos. 
Outra pausa; curta dessa vez. 
— Não, não. Não pode ser isso — disse Kissinger balançando a cabeça negativamente — eu venci a Rússia, e você perdeu para ela.
— Sua guerra foi fria, meu caro.
— Mas venci.
— Você realmente acredita nisso, não é?
— Claro. Isso definiu o mundo como o conhecemos, meu caro — disse em tom irônico
— Definiu o seu mundo, Kissinger. Não confunda as coisas.
— Tá bom. Disse o homem que se autoproclamou Imperador.
— O nome Vietnã te diz alguma coisa? Está no relatório também. 
— Eu negociei a paz por lá, Napoleão. Não fale bobagem. Ganhei o Nobel da Paz por isso.
— Ganhou o que? — outra gargalhada do ex-Imperador da França — Deve algum tipo de brincadeira.
— O mundo depois do seu é complexo, muito complexo. Isso se chama realpolitik.
— Sei...nome moderno para imperialismo.

Mais um silêncio. Dessa vez, interrompido por Napoleão:

— Será que o mundo está melhor com a nossa partida, velho Kissinger?
— Acredito que não.
— O que falta, então?
— Falta combinar com os russos.
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As pessoas são o que são
28/10/2023 | 09h44
*

A velha abriu a porta como se já me conhecesse. Me chamou de “filho”, pediu para que eu me sentasse em um sofá capeado por um tecido verde escuro e áspero, que fez um som de embrulho quando me sentei. Ela seguia para a cozinha enquanto me perguntava se queria uma xícara do café que acabara de sair. Agradeci, disse que aceitava.

Quando sentou-se em minha frente percebi que o vestido arrumado, o cabelo penteado fazendo uma onda sobre a testa e o batom rosado eram costume; ela sabia que eu iria, mas não fez questão de marcarmos horário e dia. A xícara com desenhos imitando um bordado, repousada em um pires branco, dava um ar de sofisticação, que não erraria em supor que ela gostava.

Falamos de amenidades enquanto eu bebia o café forte e cheiroso que foi servido gentilmente. Mas logo entramos no assunto que haveríamos de tratar naquela visita.

Edmundo Siqueira/IA

Estávamos ali para falar de uma reclamação que ela havia feito no Facebook. Ela aparentava uns 90 e poucos e era uma facebokiana convicta. Usou termos fortes e generalistas na postagem-desabafo: “tem que cair tudo mesmo” e “nada vai para frente nessa merda de cidade”. E ainda finalizou o irado texto ornamentado com a foto de um prédio vizinho a sua casa que estava em ruínas, dizendo que quem defende “prédio velho tem que lavar a boca” para falar dela. Disse também que era uma fiel pagadora de impostos.

Pessoalmente era o oposto. Era uma velinha amável, tinha três gatos siameses e tudo na sua casa era muito limpo e arrumado. Os gatos olhavam para mim, um naquela posição tipicamente felina de ataque e o outro em cima da cristaleira, com o rabo balançando para fora do móvel; quase deu para ouvir um tic-tac vindo de lá. Os móveis da casa eram todos de madeira maciça, com aparência conservada, mas que diziam ter uns 100 anos de idade, possivelmente pertencido aos pais da dona da casa — essa possivelmente também herdada.

Apesar de amável, a senhora na minha frente estava irredutível. Queria, porque queria, a demolição do prédio histórico vizinho. Expliquei que era tombado, que havia uma história ali e que a construção remontaria aos primórdios da cidade. Não alterou um milímetro da sua convicção. Quanto mais falava da importância de mantê-lo, mais ela fazia uma cara de achar aquilo tudo uma bobagem.

Tendo a certeza que ela me achava um idiota ou um idealista — talvez os dois —, e me vi encerrando a conversa depois de agradecender o café e elogiar a qualidade da bebida. Ela voltou a ficar amável e doce comigo. Disse, mentindo, que gostou de mim e que eu poderia voltar sempre que quisesse; mentindo de novo.

Antes da despedida final, conversamos um pouco sobre a casa em que ela morava. Confirmou minha suspeita que havia sido herdada dos pais. E disse ainda, orgulhosa, que muita coisa ali havia vindo da Europa. “Berço da civilização”, ela me contou. Não resisti e retruquei: “Mas a senhora percebe que se orgulha de coisas históricas e preservadas?”, ela fechou a cara novamente. E em frase finalística: “Lá meu filho, as pessoas dão valor à história, por isso são o que são”.
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Não é nada
15/10/2023 | 08h28
Guernica, uma das obras mais famosas de Pablo Picasso (1881–1973), pintada a óleo em 1937, é uma "declaração de guerra contra a guerra e um manifesto contra a violência". O quadro, além de ser um ícone da Guerra Civil Espanhola, é hoje um símbolo do antimilitarismo mundial e da luta pela liberdade do ser humano.
Guernica, uma das obras mais famosas de Pablo Picasso (1881–1973), pintada a óleo em 1937, é uma "declaração de guerra contra a guerra e um manifesto contra a violência". O quadro, além de ser um ícone da Guerra Civil Espanhola, é hoje um símbolo do antimilitarismo mundial e da luta pela liberdade do ser humano. / Wiki
Acordou e olhou para o relógio. Sentiu preocupação. Olhou para os lados e viu que tinha tudo que havia de querer, mas ficou preocupado. As crianças ainda dormiam; a ausência de barulhos eletrônicos denunciava. Mas já havia gente acordada. Vindo da cozinha, e depois da sala, os sons abafados dos pratos sendo colocados em jogos americanos, e os estridentes e arranhados da louça.

Decidiu levantar, não sem antes tatear a lateral da cama em busca da esposa. Achou. Pensou em acordá-la. Desistiu. Levantou-se, pé ante pé. Sentiu preocupação novamente. O que está me preocupando? Parece pressentimento. Não. Nada de superstição. Deve ser alguma bobagem inconsciente, ou esses tempos malucos. Ou, deve ser da idade. Ah! Já sei o que é: Aquele médico que fui essa semana, que ela me arrastou, ali no prédio de consultórios da 13 de maio. Sabia que ia me prejudicar — mais que me ajudar.

Havia feito 60 há pouco. Uma ou outra enfermidade, mas nada de mais. Os médicos ajudavam, obviamente. Mas pensava, mesmo sabendo estar errado, que descobrir doenças era pior que tratá-las antes de ficarem crônicas. Sentou-se para o café já com todos acordados. Estava tudo como antes, na verdade como sempre: as meninas conversavam sobre os jogos, o mais novo queria cereal, o namorado que na sua casa já dormia, a seu contragosto, e falava sem parar querendo mostrar conhecimento que não tinha. Sua mais velha arrumou aquele tipo, que ele detestava; quieto. Sorvia mais uns goles de café, o ouvindo falar sobre geopolítica de botequim fazendo cara de intelectual. Como detestava aquele garoto pedante.

Se estava tudo como sempre, a preocupação ainda não tinha mostrado sua motivação real. Pegou o jornal que mantinha a leitura no modelo impresso, jogado por cima do muro, embalado em saco plástico transparente. Sempre vinha amassado, e ele resmungou alguma coisa inaudível. Leu de fio a pavio tentando descobrir se a preocupação estava ali. Mesmo que fossem as premonitórias. Achou que não estava, apesar de ter lido vários motivos para as duas formas. Enquanto lia sobre o atual conflito no Oriente Médio deu um sorriso de deboche lembrando do menino.

Como era domingo, o dia seguiu dentro do esperado, com as crianças indo e voltando, almoço barulhento, cinema programado à tardinha. Mas ela estava lá, insistia em perturbá-lo, como uma voz que não dizia nada que ele pudesse entender, era só uma sensação; uma inquietação. A mulher soube, ele contou. Não pôde guardar aquilo por muito tempo sozinho. Disse-lhe que era bobagem, que estava ficando velho e para parar de sandices. Embora ele quisesse obedecê-la, não se livrou do sentimento inquietante.

Mais para o fim do dia, o telefone tocou. Olhou para a tela, afastando para poder enxergar e viu que era sua irmã. Ah, aí está o motivo! Sabia que não estava preocupado à toa. Minha irmã nunca me liga, certamente aconteceu alguma coisa. Agora vou descobrir o motivo dessa aflição. Ele e sua irmã não se falam com regularidade. Divergências ideológicas e uma partilha difícil da herança, alguns anos antes daquela ligação, trataram de afastá-los.
Mas a ligação seria apenas para confirmar se iriam na formatura da caçula da irmã pois era preciso ter certeza, dado as limitações dos convites. Encerraram a ligação depois de tudo acertado, e definitivamente ele havia desistido de procurar entender sua preocupação constante naquele domingo. Aceitou que poderia mesmo ser uma bobagem, e seguiu com seu dia, que chegou ao final antes que ele percebesse, principalmente depois que aceitou aquele sentimento, que poderia ser mesmo só uma sandice, como disse a esposa.

Deitados, o casal preparava-se para os últimos minutos acordados do dia quando ela perguntou se o marido havia encontrado as motivações de sua preocupação. Respondeu negativamente, e disse que ela estava certa, não passava de um sentimento, que poderia ser da idade, afinal. “Não é nada”, ouviu dela. Ao ouvir aquilo, ele finalmente entenderia. Não era nada; era tudo.
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Roberval e a abstinência
02/07/2023 | 11h03
As reuniões aconteciam toda quarta, no salão de festas de um condomínio chique. Haviam se intensificado neste ano. Era a primeira vez que ele ia.
— Olá a todos, me chamo Roberval.
“Olá Roberval!”, todos cumprimentam. Roberval continua:
— Não sei bem por onde começar... acho que nem deveria estar aqui.
— Roberval, fique à vontade. Você está em segurança aqui. Fale se e quando estiver pronto, tudo bem assim? — disse Eleonora, uma senhora branca, de meia idade, de cabelos aloirados e maquiagem forte, que conduzia a reunião. As cadeiras eram dispostas a formar um círculo, a mulher sentava-se no diâmetro oposto.

— Não, eu quero falar. Não aguento mais. Tudo começou quando eu via o programa da Luciana Gimenez. Ele estava lá, falando o que eu queria. Comecei a ouvi-lo, cada dia mais. Já não era o bastante nas quartas-feiras do programa. Comecei a ver vídeos dele no YouTube, até as sessões da Câmara que ele estava eu assistia.
Alguns faziam movimentos de confirmação com a cabeça, outros, envergonhados, ficaram cabisbaixos. Roberval continuou.
— Mas eu achava que conseguiria parar quando quisesse. Aquela ilusão, sabe? Mas ele estava cada vez mais presente em minha vida. Estava me consumindo. E tudo piorou, ainda mais, naquele Jornal Nacional da 'GloboLixo'. Era 2018, lembro-me bem. Quando o mito mostrou o kit gay...
Roberval é abruptamente interrompido por Eleonora: “por favor, Roberval! Aqui no grupo não falamos ‘mito’. Isso sempre traz recaídas, as pessoas aqui ainda estão muito sensíveis. Foi uma decisão de todos”.
— Taokey, então…
— Evite também “taokey”, “nisso daí”, “olha só” e “a verdade os libertará”. São expressões proibidas aqui, Roberval — Eleonora falava em tom mais baixo, e fazia movimentos circulares com as mãos.
Todos concordaram, alguns cochichavam com o vizinho da cadeira ao lado.
— Isso mexe com a gente, toca muito fundo. Por favor — reforçou Eleonora.
— Taok…certo! Desculpe. Vocês têm razão. Mas, continuando: depois daquilo, fiquei completamente submisso e dependente. Tentei ajuda na igreja, mas meu pastor falava para eu continuar a ouvir aquele homem.
— Certo, continue.
— Foram quatro anos dele na presidência. Depois da posse, ele explicando para a gente o que era golden shower, aquela ministra explicando que menino veste azul e menina veste rosa...meu Deus, era demais. Aquela fase da euforia, sabe? Mas dura pouco. Durou tão pouco…
Muitos confirmaram, novamente, com a cabeça.
— Eu preciso assumir para vocês. Cheguei ao fundo do poço. Quando vi, já estava lá naquele cercadinho, lá em Brasília. Quando olho para trás...quanta humilhação, como podemos chegar naquele ponto?
— Tudo passou, Roberval.
— Não sei…ainda tenho muitas dúvidas na minha cabeça. E essa mídia golpista — Eleonora fez "não" com o indicador da mão direita — quer dizer, a imprensa, falava da rachadinha, da mansão do Flavinho, do Queiroz, daqueles cheques…depois do superfaturamento de vacinas, das bíblias de ouro do ministério da educação, do orçamento secreto, das joias da Michelle…eu não aguentava...
Roberval chorou. O companheiro de grupo ao seu lado colocou a mão no seu ombro, dando-lhe tapinhas de leve.
— Hoje a gente sabe de tanta coisa — Roberval falava ainda com voz de choro — como é doído meu Deus. Que dor. Será que seremos vencidos pelo comunismo...
Mal a palavra “comunismo” foi dita e um senhor de bigodes e camisa de time se retorceu na cadeira. Um rapaz de camisa polo que chorava, olhou assustado. Duas senhoras suspiraram alto.
— Roberval, vamos dar espaço para outras pessoas poderem falar?
— Claro, claro…uma última coisa, que preciso dizer. Eu sou médico, e tinha certeza da necessidade da vacina. Mas cada vez que ele levantava aquela caixa de cloroquina…eu entrava em êxtase. Como explicar aquilo? Eu sabia que não era possível, e a vacina cada vez era mais atrasada propositalmente…ele chamava os vacinados de maricas, era um misto de euforia e dor, sabe? Quando ele andava sem máscara, de moto sem capacete...
— Eu me salvei com cloroquina! — gritou Nildo, um senhor com a camisa da Jovem Pan, levantando-se da cadeira.
— Nildo, já conversamos sobre isso. — repreendia Eleonora — O que dizemos para o Nildo pessoal?
“Vacinas salvam vidas. Eu acredito na vacina. Eu tomei a vacina”, todos repetiram, em coro.
— Roberval, nós te entendemos. Mas não desanime. Precisamos nos unir. Lembra dos acampamentos? Ainda não superamos o 8 de janeiro.
Todos, inclusive Roberval, fizeram uma expressão de orgulho, mas sem externar nenhuma palavra. Eleonora continuou:
— Acho que podemos terminar por hoje, pessoal. Ele está inelegível agora, precisamos nos lembrar todos os dias — uma senhora ao lado de Eleonora colocou as duas mãos no rosto, como se chorasse — precisamos nos curar, precisamos viver cada dia. Só por hoje.
— Só por hoje — todos repetiram.
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Transições
16/04/2023 | 05h52
Quartas-feiras modorrentas e outonos têm algo em comum. São períodos de transição. Talvez o outono seja a quarta-feira do ano. Quando as rotinas ficam cotidianas e as semanas parecem um eterno transitar entre a casa e o trabalho, chegar na quarta é um alento. Faltam dois dias, pensa-se. O fim de semana já chega.

Há um amansar nas transições. As semanas sem os divertimentos do verão, o clima começa a ficar menos quente, mesmo sem estar frio. Às vezes uma brisa nordeste refresca, em outras uma chuva com inveja das de verão cai forte na cidade — chegando até a alagar algumas ruas.
As folhas ficam mais amareladas, os animais menos agitados, as relações humanas ficam por vezes mais abrandadas, algumas até distantes. Parece que nos voltamos mais para as reflexões e as introspecções; as destruições necessárias para o nascimento de outras construções, ou uma mão de tinta nas mesmas estruturas.

Transições podem ser calmas e confusas ao mesmo tempo. Os acontecimentos não param, mas parece que podemos dar um tempo para que eles se acomodem. Mas sem nos livrarmos da ansiedade. Confuso. Com a chegada do inverno vai dar para viajar para aquele lugar que havíamos planejado, iludimo-nos. Mas a transição não pode ser espera apenas; deve ter momentos de destruição. Se encararmos as transições como esperas inertes não teremos entendido nada de movimentos concêntricos.

A terra sabe disso como ninguém. Deixa as folhas das árvores caírem, aumenta os ventos para varrer as impurezas, abaixa os rios sem os secar, só o bastante para se reconstruírem, diminui a umidade do ar para que as vidas sejam menos férteis e consiga focar em transições; não em proliferações.

Política e economia também fazem suas frenagens de arrumação, reestruturam os programas, restabelecem acordos, acomodam apoios. Ao mesmo tempo o vento mais forte faz com que as rêmoras se soltem quando os tubarões pulam fora d´água. Transições.

Acredito que quarta e outono servem para a mesma coisa. Não são exatamente meios, são confusas, não dão prazer, não produzem alívio, não deixam confortáveis. São ao mesmo tempo esperanças e cansaços. Equilíbrio que sempre pode ser distorcido pela ação do ser humano, este que não respeita os ciclos necessários. Provoca furacões em regiões que não existia, ou muda os outonos. Permite pandemias que esticam transições até que elas se tornem algo desnecessário; até virar angústia.

Quartas são necessárias e outonos também. Mesmo que aconteçam em segundas ou verões, a depender da vida no momento. Mas sempre necessárias as transições. Sem elas, estamos fadados apenas às destruições.
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Onde fica o lugar do que não deveria acontecer a ninguém, acontece?
05/04/2023 | 09h26
Onde fica a definição de algo indefinível? Onde fica o lugar do que não deveria acontecer a ninguém, acontece? Podemos tentar arrumar culpados quando uma atrocidade é cometida; mas além de inócua, é uma forma de consternação, de aceitação ou de compensação. Em casos mais graves, de complacência covarde.

Não podemos negar — ou neguemos caso não queiramos aceitar que temos um problema sério — que alguém que comete um crime, por mais odioso que seja, saiu da mesma sociedade que criamos. A cabeça estragada do sujeito dificilmente assim nasceu. As sinapses e outras construções mentais foram sendo produzidas através de uma realidade perversa, odienta, de afastamento emocional e de esvaziamento educacional e cultural.
Podemos chamar o problema de desigualdade, mas essa definição ainda não vai explicar tudo. Nem sempre alguém capaz de uma monstruosidade vem de uma realidade miserável.

Três meninos e uma menina, entre 5 e 7 anos, morreram em uma creche na manhã de hoje, 5 de abril, em Blumenau, Santa Catarina. Foram atingidas por golpes de machado, vindas de um homem de 25 anos que invadiu a escola. Ainda não se sabe o motivo de um ato de tamanha crueldade; e talvez nunca saberemos, pois são muitos.
“Nada justifica”. É verdade, mas quando afirmamos que algo vem do “nada” estamos apenas aceitando o fato de que não podemos dizer de onde ele vem. É o lugar que não deveria existir. A dor que não deveria ser sentida. A atrocidade que não deveria acontecer. É o nada, mas ao mesmo tempo, é uma enormidade de coisas que não existem; mesmo existindo.

Jean-Paul Sartre, filósofo francês, escreveu uma peça em 1944 que contava a história de três pessoas mortas condenadas a passar a eternidade confinadas em um mesmo quarto. Uma se torna carrasco da outra em uma convivência destrutiva. Uma das personagens cênicas diz uma frase que viria a ficar imortalizada pela obra sartriana: “o inferno são os outros”.

É preciso arranjar culpados para que rapidamente nos distanciamos dos monstros. Embora eles existam e sejam uma minoria, quando agem afetam a todos, sem distinção. Devem ser punidos, linchados, condenados à morte por tribunais populares. Muito compreensível. Eliminá-los, porém, não determina que outros — outros infernos — deixem de existir. E quando irrefutavelmente podemos dizer que é aquele o monstro, temos a falsa ilusão de que estamos livres do enxofre, do fétido, das trevas. Mas sempre estaremos fadados à desilusão.

Nos resta a angústia de tentar encontrar caminhos, de saber onde erramos enquanto sociedade, de procurar entender o que leva alguém ao impensável, ao abominável. Aglomerações humanas, físicas ou virtuais, alimentadas pelo ódio e ressentimento, invariavelmente provocam gatilhos em cabeças estragadas, e formam a monstruosidade.
Não há culpados diretos para além dos executores, mas há, sim, os que incentivam. Há sim os que desejam uma sociedade cindida, que criam inimigos imaginários, que negam formas evidentemente científicas de salvar vidas, que cultuam a morte, que pregam a violência, que adoram armas, que buscam o conflito constante. Há os que lucram com o inimaginável, pois concorrem para que se materializem.

Três meninos e uma menina, entre 5 e 7 anos. Onde fica o lugar do que não deveria acontecer a ninguém, acontece?
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Engodo, Ódio e Ressentimento
18/09/2022 | 11h24
General Bonaparte no Conselho dos Quinhentos, por François Bouchot. Paris, França.
General Bonaparte no Conselho dos Quinhentos, por François Bouchot. Paris, França. / Reprodução

Estavam marcadas as eleições presidenciais na República de Pindorama. Três candidatos estavam à frente das pesquisas: Engodo, Ódio e Ressentimento.

A população de Pindorama parecia estar mais decidida que nunca; um dos dois primeiros colocados ganharia a eleição. Engodo tinha uma relativa vantagem, era dono de um carisma nuca antes visto na história do país. Ódio vinha crescendo, mas parecia ter um problema em furar a bolha eleitoral que o apoiava, e teria atingido seu teto.

Ressentimento era o mais preparado, com um projeto consistente para Pindorama. Mas não conseguia convencer o número de eleitores suficientes para ganhar. Com uma linguagem tecnicista — com “t” de tapioca — e conceitos rebuscados, não ganhava a simpatia do votante.

Muito se discutia em Pindorama sobre o risco que representava a reeleição de Ódio. Havia razão de ser. Enquanto estava à frente do país, aprofundou-se na sociedade o desprezo pela vida humana e pela democracia. Cultura e educação estavam sofrendo ataques severos, com cortes no orçamento e desconstruções diversas. Milhões de pessoas em Pindorama estavam na miséria e episódios de violência estavam cada vez mais frequentes.

Mas apesar de ter muita rejeição, Ódio sabia como poucos instigar sua claque. Usava a estrutura do governo para fazer eventos de todos os tipos, onde sempre aparecia como alguém predestinado a estar ali e usava os inimigos coletivos imaginários do povo a seu favor.

Engodo, por outro lado, sabia que parcela ainda mais numerosa da população de Pindorama estava conseguindo ver os absurdos impostos por Ódio. E também usava isso a seu favor. Vendia-se como a única solução para aquela crise e operava politicamente no medo. Sua militância, também aguerrida, atacava Ressentimento e tentava a todo custo lhe impor a pecha de auxiliar de Ódio. Engodo já falava em regular a imprensa e se negava a apresentar propostas concretas.

Alguns analistas tentavam alertar que aquele, apesar de grave, não era o momento mais perigoso de Pindorama. O país já tinha atravessado um período de repressão sangrenta. Revoluções nos anos 1930, com um presidente havia cometendo suicídio duas décadas depois, atos institucionais extremamente repressivos, e ainda dois governantes máximos da República haviam sido depostos por processos dramáticos depois que o país foi redemocratizados. O alerta era de que certamente um processo eleitoral apenas não iria resolver aquela situação.

Era preciso mais política, não menos. Era preciso mais conscientização e não processos despolitizantes que queriam impor o voto por constrangimento ou medo. Mas a população de Pindorama não ouvia os analistas, não escutava quem ponderava, e o jogo havia se tornado essencialmente uma escolha de torcidas. E como todas, cegas.

No dia marcado as eleições aconteceram. Não sem traumas e atos violentos. Ódio tentava a todo custo desacreditar o sistema que ele próprio havia sido eleito, Engodo usava e abusava de sua flauta política para o encantamento de serpentes e Ressentimento destilava arrogância e altivez despropositada. Mas a votação aconteceu.

A apuração começou e a população de Pindorama estava ansiosa para o resultado. Quase todos em suas casas aguardando o anúncio final. A disputa estava favorável para Engodo e a claque de Ódio estava pronta para usar de violência, se aquilo se concretizasse como parecia. Ressentimento já falava em se abster e sua equipe de marketing se arrependia profundamente de ter usado uma charge em vídeo onde ele aparecia como o “Mestre dos Magos”, um personagem que sempre desapareceria em momentos cruciais.

Um pouco antes do anúncio derradeiro, um jovem anarquista black bloc pichava a parede do Tribunal Eleitoral: “Deus tenha misericórdia dessa nação”. A frase, oportuna para aquele momento, não era dele. Alguns anos antes o presidente da Câmara, Deputado Maracutaia, a havia dito.

Pindorama estava condenada a ver encenações de sua história se repetirem. As primeiras como tragédias; as segundas como farsas.
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Sobre o autor

Edmundo Siqueira

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