Deixe a arma e pegue os cannoli
28/01/2024 | 10h41
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Era uma terça-feira, meados de fevereiro. A família se reunia em torno da decisão que iria permitir que continuassem no comando da casa. Era uma casa dividida, mas uma das famílias ainda tinha o comando total. Eram eles que confabulavam naquela tarde.

— Temos a maioria, chefe. Não há como perder — disse um dos líderes do baixo clero, Fredo.
— Pode ser, mas ainda temos que confirmar alguns pontos.
— Quais?
— Acho que é muito cedo para a votação. Preciso confirmar alguns pontos, já disse.

O chefe foi consultar Don Tommasino, um antigo capo que servia de consigliere — uma espécie de consultor.

“Há um traidor entre vocês”, Tommasino foi categórico. Embora o chefe confiasse na avaliação do experiente Don, preferiu arriscar. A consulta foi feita por telefone, e na sala estavam alguns associados, soldados e até capitães. Enquanto Tommasino falava, no viva-voz, e reafirmava a existência de um traidor, o chefe fazia sinal negativo aos seus subordinados, indicando que não aceitaria o conselho. A votação para o comando da casa iria acontecer naquele mesmo dia, no final da tarde.
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imagem criada por IA / [email protected]

Por volta das cinco e meia, a votação seria iniciada. Os membros da família controladora estavam confiantes, e já não lembravam da ligação que ouviram algumas horas antes. A outra família, os Barzini, pareciam tranquilos, e alguns até esboçaram alguns sorrisos sarcásticos.

Clemenza, um capitão que comandava o território da baixada, pediu a palavra e defendeu que o comando deveria ir para a família Barzini. Mesmo se dizendo independente, e ligado apenas ao território que comandava, Clemenza se aproximava cada vez mais da família Barzini. Após terminar sua fala, o capitão recostou-se na cadeira e abaixou a aba de seu característico chapéu, o que o fez cochilar.

Enquanto Clemenza dormia, a votação terminou. Todos ficaram ansiosos para saber o resultado, e definir quem iria ficar comandando a casa pelos próximos dois anos. Fredo iniciou a contagem dos votos e seu semblante rapidamente se transformou. A eleição estava perdida. Um membro da alta cúpula da família Barzini era o novo presidente eleito da Casa.

“Don Tommasino estava certo, aquele velho carcomido! Alguém me traiu!”, pensou Fredo enquanto todos brigavam, entre gritaria e empurrões.

Os dias que se seguiram depois da votação foram desesperadores para Fredo. O chefe cobrava uma solução definitiva, e que ele fizesse o que fosse preciso para continuar controlando a casa, e que descobrisse quem era o traidor. Uma das alternativas para anular a votação foi tentar comprovar que Clemenza não havia votado, mesmo ele tendo declarado seu voto. Não deu certo, todos sabiam que ele dormia durante a votação, mas era claro sua posição a favor da família Barzini naquele momento.

Sobre o traidor, Fredo logo descobriu:

— Foi o Moe Greene, chefe. Aquele salafrário jurou que votava em mim. Fizemos até uma oração, como eu podia imaginar, pelo amor de Deus!
— Subestimamos a sabedoria do velho Tommasino, Fredo. Pagaremos um preço alto, e agora vamos ter que aguentar as consequências.
— Será? Acho que não vamos ter problema, chefe!
— Teremos, e não vai ser agora. Os Barzini são rancorosos, e tem aquela agressividade que o capo deles sempre traz à tona.
— Então vamos ao Joey Zasa, o Barzini que está na capital. Ele pode reverter isso tudo, ele é o chefe agora! — Fredo estava ficando ainda mais desesperado.
— Deixe de bobagem, homem. Quem você acha que arquitetou tudo isso? — finalizou o chefe.

Quase dois anos depois, o chefe confirmava seu receio. A cidade, mesmo controlada por ele e sem demonstrar que perderá o controle nos próximos anos, quase ficou paralisada por ação dos Barzini. Também como previa o chefe, o capo da família rival o atacou de forma dura e agressiva. Até tapas na cara foram prometidos, aos berros, no chefe e em Don Tommasino.

Mas o chefe tinha aprendido a lição de 2022. Era preciso controlar as crises, e tentar fazer com que os interesses das famílias rivais não fossem mais importantes. Mesmo ele sendo de uma família que há anos controla territórios, com interesses bem definidos. Carismático e com aprovação de suas ações pela maioria da cidade, o chefe sabia que precisava manter os amigos próximos, mas os inimigos mais próximos ainda.

Durante a crise mais recente, e após os ataques que recebeu, o chefe foi novamente ao encontro de Don Tommasino, desta vez disposto a seguir seus conselhos. “Nunca odeie seu inimigo, isso afeta seu julgamento”, disse o velho Don. O chefe logo entendeu como uma orientação valiosa, e decidiu acatar. Mesmo sabendo que pessoalmente Tommasini não agia assim, na maioria das vezes.

O chefe fez uma autocrítica, e percebeu que havia quebrado um acordo feito com o capo dos Barzini. Mesmo relativamente novo, sabia do peso de uma palavra dada e descumprida. Se arrependeu, mas conseguiu reverter, dada a reação descabida do capo. “Ele pensa que ainda estamos no tempo dos Bórgias”, pensou o chefe.

Após algumas batalhas, e mesmo tendo ficado ferido, o chefe conseguiu sair fortalecido do mais novo embate com a família Barzini. Seu braço direito, e agora subchefe, Tom Hagen, mesmo sem ser um familiar, ajudou a apaziguar os ânimos e pacificar novamente as brigas entre as poderosas famílias.

A casa continuou sob o comando dos Barzini, mas o chefe conseguiu a maioria dos votos. Até o astuto Clemenza hoje é aliado de primeira hora dele. Fredo saiu da casa, e hoje está tocando as obras da cidade. Don Tommasino mantém-se apenas como consigliere, para a alegria do chefe. Moe Greene ficou desacreditado por todas as famílias, mas ainda é protegido pelos Barzini.

Depois de mais uma batalha finalizada, o chefe aparenta cansaço. E faz uma proposta irrecusável para Tom Hagen: “cuide da cidade por um tempo, para mim”.

Enquanto isso, Vincent Mancini, filho de outro antigo capo da cidade, esse já aposentado, confabula mais uma traição, sedento por um lugar à mesa. Perguntado sobre como ficaria o acordo que fez com o chefe, Mancini finaliza: "Não é nada pessoal. São apenas negócios”.




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Talvez não seja tarde: Solar dos Airizes perto do salvamento - saiba como
24/01/2024 | 09h37
Dos patrimônios que estão em risco em Campos, o Solar dos Airizes é um dos mais resistentes. Abandonado há décadas, o casarão construído no início do século XIX, de arquitetura típica do período colonial, resiste — não sem danos e não se sabe como — às intempéries do tempo e do descaso.

Sem passar despercebido por qualquer pessoa que passe pela BR 356 (Rodovia Campos – São João da Barra), o Solar desperta curiosidade; muitas lendas permeiam a construção, sendo a mais conhecida a da Escrava Isaura. Mas gera também desespero em quem se preocupa com a história de Campos.

Paredes caíram, parte da fachada e do interior já não existe, várias portas e janelas em estado precário e o forro de madeira desabou em vários cômodos do Solar, levando a um estado de ruína. A icônica capela que o Airizes abriga também está em estado de deterioração. Parte de uma das extremidades do prédio (em formato de “U” imperfeito) já foi ao chão.
Nas apostas sobre qual patrimônio de Campos será o próximo a deixar de existir, o Solar dos Airizes lidera. Muitos previam que não passaria de 2023. Porém, o resiliente Solar persiste de pé, e se encontra próximo de salvação — como nunca esteve.

28 milhões - Com aval do Governo Federal, via Lei Rouanet, e do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), um projeto que tem como objeto a manutenção e a conservação emergencial do Solar dos Airizes está apto a captar 100% do valor que foi proposto: R$ 28.410.937,55.
 
A Lei Rouanet permite captar recursos com empresas e pessoas físicas que estejam dispostas a patrocinar projetos culturais, incluindo o restauro de patrimônios históricos. Em contrapartida, o valor direcionado à cultura é abatido totalmente ou parcialmente do imposto de renda do patrocinador. Ou seja, os recursos que seriam pagos ao Estado por meio de impostos são direcionados para estimular a atividade cultural.
VERSALIC - Gov. Federal
No caso do Airizes, foi assinado, em julho do ano passado, um protocolo de intenções entre o município de Campos e a empresa Ferroport, que opera o terminal de exportação de minério de ferro no Porto do Açu. A Ferroport se comprometeu a aportar os recursos que pagaria de imposto no Solar, uma vez o projeto aprovado.


Os mais de 28 milhões de reais aprovados não precisam ser depositados de uma vez, e além da Ferroport, outras empresas podem participar. O projeto tem como proponente a Sociedade Artística Brasileira (Sabra) que também tem termo de cooperação técnica com a prefeitura.
Assinatura da parceria entre a prefeitura de Campos e a empresa Ferroport.
Assinatura da parceria entre a prefeitura de Campos e a empresa Ferroport. / PMCG
Escoramento e cobertura -
Em paralelo ao projeto via Lei de Incentivo, a prefeitura de Campos protocolou junto ao Iphan um pedido de autorização para realizar o escoramento das partes mais críticas do prédio, e a construção de uma cobertura temporária em toda construção, como forma de tentar conter a ação do tempo e das chuvas, enquanto as obras de restauro não se iniciam. 
Segundo fonte do Iphan, o projeto apresenta algumas pendências, mas com chances de aprovação.

A prefeitura é a responsável pelo Solar dos Airizes, após decisão do Tribunal Regional Federal (TRF-2), que transitou em julgado em 2020, e condenou o município de Campos a restaurar o Solar de forma emergencial. A ação foi proposta pelo Ministério Público Federal (MPF), e não cabem mais recursos.
Projeto da prefeitura
Projeto da prefeitura / Iphan
“A prefeitura vai fazer, emergencialmente, o escoramento total e a cobertura, para nos resguardar que não vai acontecer nada com o prédio. Mas para a obra de restauro, o dinheiro da Ferroport está garantido na parceria, já assinaram o termo de cooperação e já aprovaram no conselho”, disse o prefeito Wladimir Garotinho a este blog.


Wladimir disse ainda que o escoramento e a cobertura estão “prontos para serem feitos”, e que com a votação da LOA [hoje (24), veja aqui], “abre o orçamento e licita rápido”.
Procurada pelo blog, a empresa Ferroport não retornou os contatos. 

Família Lamego e condomínio na Fazenda dos Airizes - O Solar do Colégio e sua capela, e ainda todo seu entorno, são tombados pelo Iphan desde 1940, o que impede qualquer tipo de descaracterização. Porém, houve algumas tentativas de venda do Solar pelos herdeiros de Alberto Lamego e de sua esposa (filha do comendador Cláudio de Couto e Souza, construtor do prédio), e também de doação para a prefeitura de Campos.

Mas o espólio de Lamego não se limita ao Solar. A construção faz parte de uma grande fazenda, às margens da BR-356. Essas terras sempre foram alvo de especulações imobiliárias, e recentemente foi aventado que uma empresa de São Paulo seria a nova potencial compradora da propriedade.

Também a este blog, um dos herdeiros da família Lamego explica que a empresa paulista é a ABMais Incorporadora, que havia “fechado uma área para início de urbanização”, mas que não teria relação com o Solar dos Airizes, sendo “em uma área distante” do patrimônio.

O blog Ponto de Vista, de Christiano Abreu Barbosa, deu mais detalhes da transação:

“O trecho da BR-356 entre o final da Avenida Alberto Lamego e Martins Lage está se
transformando rapidamente num dos principais vetores de crescimento imobiliário de Campos. Com a expansão contínua do Porto do Açu, as terras às margens da rodovia - que acompanha o traçado do Rio Paraíba do Sul em direção à foz - se tornaram uma excelente opção para quem busca tranquilidade e, ao mesmo tempo, estar perto das comodidades e infra-estrutura da área urbana.

Em breve, os condomínios - Vale do Paraíba, Remanso do Paraíba e Palm Springs - já instalados naquele trecho terão um novo vizinho. A ABMais, incorporadora de São Paulo que e uma das maiores urbanizadoras do país, escolheu a região para o seu segundo empreendimento na cidade”.

O Solar e a Esperança - O Solar dos Airizes não traz apenas significado arquitetônico. O local foi residência de um dos maiores intelectuais e escritores campistas, Alberto Lamego, onde ele abrigou sua vasta pinacoteca, além de uma biblioteca repleta de obras raras trazidas da Europa e um extenso acervo documental.

O Airizes foi considerado a “meca da intelectualidade” do Brasil, que atraía diversos artistas, escritores e pensadores importantes do país, pelo acervo recolhido por Lamego. Uma dessas personalidades foi Mário de Andrade, um dos fundadores do modernismo. O local recebeu também o Imperador Dom Pedro II, em 1883.

Aos poucos, e percebendo (já naqueles tempos) o descaso de Campos com o patrimônio material e imaterial, Lamego vendeu a coleção de pinturas para o Museu Antônio Parreiras, em Niterói, onde se encontra até hoje, e o acervo para a USP, em São Paulo.

Foto; Edmundo Siqueira
Se salvo, o Solar deverá passar por um segundo restauro, onde será definido seu uso cultural, turístico e de educação patrimonial. Os recursos e as ações atuais servirão para impedir sua ruína e mantê-lo de pé, mas ainda há muito para ser feito, inclusive com a repatriação dos acervos. 


Prefeitura e Governo Federal, através da Lei de Incentivo, possuem o dever de preservar a história e incentivar a cultura, por obrigação constitucional e para fomentar um setor que empregava em 2020 quase 5 milhões de pessoas, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE.

Dos tempos de glória aos dias atuais, o Solar dos Airizes passou por várias intervenções, e um longo período de abandono. Representante de importante parte da história de Campos, a ruína total parecia uma realidade imutável. Mas, novos ares de esperança surgem, e caso se concretizem, a resistente construção pode ser um raro caso de salvamento patrimonial numa cidade que não compreende a importância de sua própria história.
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A brasilidade, a Constituição, o STF e os contragolpes
06/01/2024 | 01h09
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Candido Portinari, filho de imigrantes italianos, nascido no interior de São Paulo em 1903, é tido como um dos maiores pintores do mundo. Autor dos painéis “Guerra e Paz”, expostos desde 1957 na sede da ONU em Nova Iorque, e de obras emblemáticas como o “O Lavrador de Café”, que pintou quando retornou ao Brasil no início dos anos 1930, Portinari faleceu aos 58 anos, e não pôde viver no país fundado pela Constituição Cidadã, de 1988.

Já o brasileiro que recebeu seu nome em homenagem, Alberto Portinari Rodrigues, nasceu em 5 de outubro de 1988, no mesmo dia da criação do Estado do Tocantins — sendo ele o primeiro cidadão tocantinense — e da promulgação da Constituição Federal do Brasil.
O Café, de Portinari
O Café, de Portinari / Google / Reprodução ND
“Ela [a Constituição] passa a enxergar o brasileiro como um todo, a nossa diversidade, e imaginar que nós vivemos em cenários, em situações diferentes. A Constituição Federal vem para abraçar a todos”, disse Portinari, o tocantinense, na abertura do documentário “Filhos da Democracia - Os 35 Anos da Constituição”, dirigido por Marcya Reis e

produzido pela Câmara dos Deputados, em 2023.
Documentário Filhos da Democracia - Os 35 Anos da Constituição (YouTube).

Enquanto sua fala podia ser ouvida como narração do documentário, o espectador via o jovem Portinari misturar café solúvel em uma panela simples, que depois foi passado por um coador de pano, caindo em uma garrafa térmica alaranjada. Na cena seguinte, com uma parede de tijolos aparentes no fundo, a mesma garrafa é usada por sua mãe, Nelsir Ferreira, para servir-lhe uma xícara. Ele, sentado em uma cadeira de plástico que fazia conjunto de uma mesa forrada caprichosamente por uma toalha branca, sorria, assim como sua mãe.

Imagem e som se misturavam no documentário para retratar um Brasil real, diverso, de dimensões continentais e em construção. Um país que ainda aprende a conviver com a democracia recriada há 35 anos, quando a chamada “Nova República” ainda engatinhava após o fim da Ditadura Militar, e se transformava em um regime democrático com a promulgação da Constituição.

“Passamos a ter direito de falar, né (sic)? direito de pensar e direito de se manifestar. A gente viu na história o que o Brasil já passou, com a censura e com todos os movimentos que tiveram, de estudantes, artistas, de jornalistas…que tiveram muitos momentos difíceis de prisão e de exílio, por não poder falar e se manifestar. Com a Constituição de 1988 a gente viu uma luz, onde as pessoas passaram a ter direito de falar, de dizer o que pensa, de brigar por seus direitos” — complementou Alberto Portinari.

Retratos do Brasil

Os Portinaris, o gênio artístico e o tocantinense comum, fazem parte de uma mesma construção social, são retratos de um mesmo Brasil. Uma nação que em pouco mais de 80 anos viu sua população aumentar em 162 milhões de pessoas.

Alguns dados são impressionantes e demonstram a complexidade de um país que ocupa a quinta posição entre os mais extensos países do globo: em 1940, a imensa maioria da população vivia em área rural, chegando a 69%. Em 1980 esses números praticamente se invertem, até que em 2010, apenas 70 anos depois, o Brasil passou a ter 84% das pessoas vivendo em áreas urbanas.

Do penúltimo ao último censo (2010 e 2022) realizado pelo IBGE, o Sudeste foi a região do Brasil que mais ganhou população — um salto de 80.364.410 para 84.847.187 habitantes.
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Era um tempo de transição, a realidade em que a Constituição foi pensada. Não apenas em questões demográficas, mas também democráticas. O Brasil saía de 21 anos de ditadura militar, período iniciado após mais um golpe de Estado que o país sofreu, em 1964.

Era preciso construir uma Carta que possibilitasse não apenas preparar o país para os processos transitórios em curso, mas também para uma nova forma de convívio entre a população e as instituições.

Pós-ditadura e Nova República

A Constituição foi o principal instrumento transformador para o novo país que se formou com a Nova República, e não foi pouco o que ela proporcionou. Depois de 5 de outubro de 1988, entrava em vigor uma Constituição que foi apelidada por um de seus principais articuladores de “cidadã”, com toda razão de ser.
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Inaugurava-se uma nova forma de relações jurídico-institucionais no país, trazendo uma grande ampliação das liberdades civis e os direitos e garantias individuais. A nova Carta trouxe normas e cláusulas que alteraram as relações econômicas, políticas e sociais, como, por exemplo, conceder direito de voto aos analfabetos e aos jovens de 16 a 17 anos, novos direitos trabalhistas, como redução da jornada semanal de 48 para 44 horas, seguro-desemprego e férias remuneradas acrescidas de um terço do salário.


   Outras das principais medidas da Constituição de 1988:

  º Eleições majoritárias em dois turnos;
  º direito à greve e liberdade sindical;
  º aumento da licença-maternidade de três para quatro meses;
  º criação do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em substituição ao Tribunal Federal de Recursos;
  º criação dos mandados de injunção, de segurança coletivo e restabelecimento do habeas corpus;
  º criação do habeas data (instrumento que garante o direito de informações);
  º reforma no sistema tributário e na repartição das receitas tributárias federais;
  º fortalecimento de estados e municípios;
  º nova política agrícola e fundiária;
  º leis de proteção ao meio ambiente;
  º fim da censura em rádios, TVs, teatros, jornais e demais meios de comunicação; e
  º novas regras sobre seguridade e assistência social.
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O STF e a garantia

O Supremo Tribunal Federal (STF) não foi criado junto com a Constituição Federal de 1988. A primeira Corte Suprema que a República experimentou veio após o fim do Império.

O funcionamento da Corte teve suas primeiras regras aprovadas em 8 de agosto de 1891, até então adotando as regras do extinto Supremo Tribunal de Justiça. As sessões eram realizadas aos sábados e às quartas-feiras, e como estabelecia a primeira Constituição, eram 15 os ministros nomeados pelo presidente da República e aprovados pelo Senado Federal, sendo 10 do antigo Supremo Tribunal de Justiça nessa primeira composição.

João Evangelista de Negreiros Sayão Lobato, o Visconde de Sabará, presidiu a primeira sessão do Supremo, despachando em uma mesa que sequer tinha gavetas para guardar os documentos da posse. A Corte funcionou até 1895 na sala da Corte de Apelação do Distrito Federal, tendo um prédio exclusivo depois da virada do século, em 1902. O STF assumiu seu lugar definitivo na Praça dos Três Poderes em 21 de abril de 1960.

Desde então, o Supremo se firmou como o garantidor maior dos direitos fundamentais dos brasileiros, e o guardião das constituições — da que o criou, em 1891, e da última, de 1988. A Corte é essencial para a garantia de direitos fundamentais e fundacionais de uma democracia: as liberdades de imprensa, de religião e de expressão. Liberdades que permitem o “direito de falar”, como lembrou o Portinari de Tocantins.

Com a promulgação de uma “Constituição Cidadã”, o Supremo se firma também como garantidor da cidadania e da convivência solidária. Uma Corte que em seu início se limitava a examinar controvérsias de direito privado, passou a ser um agente jurídico e político, limitando o poder parlamentar quando avalia as leis criadas e as confrontam com a Constituição, do executivo quando impede abusos estatais aos direitos individuais e do judiciário atuando como instância máxima.

Os golpes, as tentativas e os contragolpes

Depois da Primeira República e da primeira Constituição, em 1891, o Brasil teve outras cinco Constituições: 1934, 1937, 1946, 1967 e a cidadã de 1988. Entre as várias mudanças que a Constituição que vigora no país há mais de 35 anos, está a ampliação do STF no terreno institucional.

Durante a sessão solene pelo centenário do STF, em 1991, o ex-presidente José Sarney, então senador, se referiu a um “Supremo monárquico”, onde não havia dimensão política, “que servia a um Estado unitário, sob a invocação do imperador”, e lembrou que o STF nunca faltou à nação, constituindo-se como “uma instituição republicana, federativa”.

Mas nem sempre conseguiu, em uma história marcada por golpes de Estado e autogolpes — mesmo a chegada da República e da primeira Constituição veio através de um golpe, que derrubou o Império. Em 1930, 37, 45 e no último em 1964, a Constituição e seu guardião, o Supremo, sucumbiram ao poder das armas e da violência.

O regime militar de 1964 limitou a competência do Supremo, o deixando sem condições de defender os muitos direitos individuais afrontados no período. Mas, em uma democracia estabelecida e com a Suprema Corte consolidada há mais de três décadas, a tentativa de golpe institucional em 8 de janeiro de 2023 foi frustrada.

Os atos antidemocráticos daquele dia, que nasceram nos acampamentos em frente aos quartéis e culminaram nos ataques físicos às sedes dos três poderes da República — na mesma praça que estão desde a fundação da capital — não resultaram em mais uma ruptura democrática, tendo a ação direta dos poderes constituídos pela Constituição e pelo seu guardião, o STF.
Rodrigo Bittar/Câmara dos Deputados Fonte: Agência Câmara de Notícias
Durante os ataques, manifestantes pediam mais um golpe de Estado — ou um autogolpe que fosse dado pelo governo de ocasião —, e empreenderam vários danos ao patrimônio público, como vidros quebrados, móveis danificados e até incêndios. E diversas obras de arte de valor inestimável foram danificadas, incluindo uma de Candido Portinari.

A cidadania, os direitos, os deveres e a consolidação da democracia, todos garantidos pela Constituição e por suas instituições, deram um contragolpe em 8 de janeiro de 2023, e continuaram a permitir a existência de um país livre, que valoriza a cidadania sendo possível que Portinaris existam.

Um país ainda em construção

“Meu pai e minha mãe não estudaram, não tiveram essa oportunidade. Isso que eu fico pensando. Ficaram só trabalhando na roça. E quando eu trabalhava não tinha folga não, nem dia de domingo. Era diretão (sic). Naquela época a gente trabalhava e passava o dia, dormia no trabalho, ficava lá direto”, disse Nelsir Ferreira, mãe de Alberto Portinari, no mesmo documentário produzido pela Câmara dos Deputados.

A Constituição de 1988 construiu um país mais justo. Porém, ela e a Nova República não fizeram o suficiente. Alguns desafios continuam evidentes no Brasil atual, como permitir que o acesso à justiça, à segurança pública, à educação pública de qualidade e à saúde sejam de fato universais. Ainda somos um país muito desigual, com fortes traços de misoginia e racismo, que nunca conseguiu a verdadeira justiça social para quem é preto e pobre, assim como o era no Brasil antigo.

No mesmo sentido, a Constituição permitiu um estado de coisas com ampliação considerável do acesso de negros, de mulheres, de indígenas e tantas outros grupos minorizados aos espaços da vida pública, mas ainda está longe de representar a distribuição da demografia brasileira.

Mesmo com essas falhas, e nas complexidades de um país continental, foi feito muito em 35 anos. E ainda há muito para fazer. Mas, Nelsir e Portinari vivem em um país diferente, com instituições mais fortes, democráticas e resistentes aos ataques. E com uma Constituição viva e cidadã.
Clauder Diniz/Câmara dos Deputados Fonte: Agência Câmara de Notícias
"Senhoras e senhores constituintes.

Dois de fevereiro de 1987. Ecoam nesta sala as reivindicações das ruas. A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. São palavras constantes do discurso de posse como presidente da Assembléia Nacional Constituinte.
Hoje. 5 de outubro de 1988, no que tange à Constituição, a Nação mudou. (Aplausos). A Constituição mudou na sua elaboração, mudou na definição dos Poderes. Mudou restaurando a federação, mudou quando quer mudar o homem cidadão. E é só cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa.
Num país de 30 milhões, 401 mil analfabetos, afrontosos 25 por cento da população, cabe advertir a cidadania começa com o alfabeto. Chegamos, esperamos a Constituição como um vigia espera a aurora.
A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo.
A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca.
Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério.
Quando após tantos anos de lutas e sacrifícios promulgamos o Estatuto do Homem da Liberdade e da Democracia bradamos por imposição de sua honra.

Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. (Aplausos)
Amaldiçoamos a tirania aonde quer que ela desgrace homens e nações. Principalmente na América Latina.

Foi a audácia inovadora, a arquitetura da Constituinte, recusando anteprojeto forâneo ou de elaboração interna.
O enorme esforço admissionado pelas 61 mil e 20 emendas, além de 122 emendas populares, algumas com mais de 1 milhão de assinaturas, que foram apresentadas, publicadas, distribuídas, relatadas e votadas no longo caminho das subcomissões até a redação final.
A participação foi também pela presença pois diariamente cerca de 10 mil postulantes franquearam livremente as 11 entradas do enorme complexo arquitetônico do Parlamento à procura dos gabinetes, comissões, galeria e salões.
Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de favela, de fábrica, de trabalhadores, de cozinheiras, de menores carentes, de índios, de posseiros, de empresários, de estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade e autenticidade social do texto que ora passa a vigorar.
Como caramujo guardará para sempre o bramido das ondas de sofrimento, esperança e reivindicações de onde proveio.
Nós os legisladores ampliamos os nossos deveres. Teremos de honrá-los. A Nação repudia a preguiça, a negligência e a inépcia.
Soma-se a nossa atividade ordinária bastante dilatada, a edição de 56 leis complementares e 314 leis ordinárias. Não esquecemos que na ausência da lei complementar os cidadãos poderão ter o provimento suplementar pelo mandado de injunção.
Tem significado de diagnóstico a Constituição ter alargado o exercício da democracia. É o clarim da soberania popular e direta tocando no umbral da Constituição para ordenar o avanço no campo das necessidades sociais.
O povo passou a ter a iniciativa de leis. Mais do que isso, o povo é o superlegislador habilitado a rejeitar pelo referendo os projetos aprovados pelo Parlamento.
A vida pública brasileira será também fiscalizada pelos cidadãos. Do Presidente da República ao prefeito, do senador ao vereador.
A moral é o cerne da pátria. A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune toma nas mão de demagogos que a pretexto de salvá-la a tiranizam.
Não roubar, não deixar roubar, por na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública. Não é a Constituição perfeita. Se fosse perfeita seria irreformável.
Ela própria com humildade e realismo admite ser emendada dentro de cindo anos.
Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora, será luz ainda que de lamparina na noite dos desgraçados.
É caminhando que se abrem os caminhos. Ela vai caminhar e abri-los. Será redentor o caminho que penetrar nos bolsões sujos, escuros e ignorados da miséria.
A sociedade sempre acaba vencendo, mesmo ante a inércia ou o antagonismo do Estado.
O Estado era Tordesilhas. Rebelada a sociedade empurrou as fronteiras do Brasil, criando uma das maiores geografias do mundo.
O Estado encarnado na metrópole resignara-se ante a invasão holandesa no Nordeste. A sociedade restaurou nossa integridade territorial com a insurreição nativa de Tabocas e Guararapes sob a liderança de André Vidal de Negreiros, Felipe Camarão e João Fernandes Vieira que cunhou a frase da preeminência da sociedade sobre o Estado: Desobeder a El Rei para servir El Rei.
O Estado capitulou na entrega do Acre. A sociedade retomou com as foices, os machados e os punhos de Plácido de Castro e seus seringueiros.
O Estado prendeu e exilou. A sociedade, com Teotônio Vilella, pela anistia, libertou e repatriou.
A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram. (Aplausos acalorados)
Foi a sociedade mobilizada nos colossais comícios das Diretas Já que pela transição e pela mudança derrotou o Estado usurpador.
Termino com as palavras com que comecei esta fala.

A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança.

Que a promulgação seja o nosso grito.
Mudar para vencer. Muda Brasil."

Redação: Eduardo Tramarim
Câmara é História
Rádio Câmara
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Férias e feijoada, é o que precisamos
22/12/2023 | 09h35
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Um murmúrio que vinha acompanhado de um cheiro. Entro na cozinha e a concentração silenciosa de minha mãe me deixou ouvir e ver charmosamente aquele balé de bolhas que subiam e estouravam, formando um som murmurado, quase como se fosse uma algazarra entre as bolhas de vapor e água que estavam em ebulição, vindo da panela preferida dela. E o cheiro vinha junto; uma mistura de alho, cebola e amido, que se misturaram alguns minutos antes, através da gordura, e agora fundem-se no branco granulado e perfurado.
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Tinha-se o costume de fazer o arroz antes, em dias de feijoada. Ele, meu pai, preparava as carnes de véspera — uma carne-seca suculenta recebia a última limpeza, cortava-se ao meio gordos paios e o toucinho reluzente escolhido literalmente a dedo, na antevéspera, fechava o que havia de embutidos e proteínas. Dormiam na geladeira, com plástico filme cobrindo para não passar cheiro e perder sabor, e logo de manhãzinha (quase sempre aos domingos), já estavam separadas sobre a pia, cada qual em um pote, previamente combinado entre os cozinheiros. Aí se iniciavam os trabalhos da feijoada.
Com o arroz já pronto e sua panela devidamente embrulhada com um pano de prato, o preparo do guisado iniciava-se. O feijão preto afogado em água limpa precisaria de umas três horas de cozimento, não mais que isso, pois precisava estar al dente. Algumas folhas de louro foram lembradas pelo meu pai inutilmente, respondido com uma pergunta ácida por parte de minha mãe, onde o preparo mudaria de mãos a depender da resposta. No mesmo fogão, as carnes também recebiam uma quentura, que servia para retirar um pouco do sal concentrado para conservação, e dar maciez. Daí chegava a melhor parte para mim; o refogado com bacon, linguiça e alho quase torrado, que misturava-se com algumas conchas de feijão e depois todos os ingredientes iam juntos para o fogo. Meu pai sempre se queixava da ausência de pés e orelhas suínas, partes que minha mãe tinha aversão. E, claro, era respeitado.
A segunda melhor parte para quem assistiu impávido e ansioso todo aquele preparo dançante se dava à mesa. A panela maior, de duas orelhas laterais redondas, que meu pai trouxe com auxílio do mesmo pano que encobria o arroz, era aberta, e todos aqueles odores e sabores brindaram-nos com a primeira fumaça que era expulsa, na retirada da tampa. Couve e farofa acompanhavam, e alguns gomos de laranja descascada estavam ao alcance de quem quisesse quebrar um pouco da gordura, que apesar de deliciosa era pesada. A comida nos abraçava, e nos dava um sentimento de família, algo comum a nós ali naquela mesa. Era deliciosa, mas, caso não fosse, seria do mesmo jeito naquela ambientação mágica.

A feijoada, embora seja um prato, da maneira como feito por minha mãe e meu pai, tipicamente brasileiro, não foi criado nos quilombos e senzalas, como um certo romantismo intelectual quis vender por aqui, o mesmo que tentou emplacar a ideia de uma democracia racial, ou uma "escravidão branda" no Brasil. Já havia o cozido português, que era uma espécie de feijoada, e em terras brasilis, ainda bem longe das senzalas, o alimento básico era uma mistura de feijão com farinha, de herança indígena. Com os portugueses, essa mistura recebeu o acréscimo da carne guisada, refogada; cozidos conjuntamente.

Já o feijão é mais de antes. Sim, veio das Américas, e há registros de seu consumo há pelo menos nove mil anos antes de Cristo. Delas, das Américas, essa leguminosa espalhou-se pelo mundo. Os egípcios antigos acreditavam que os feijões, por terem forma de fetos, continham as almas dos mortos. No Japão, era usado para exorcizar maus espíritos, e na Europa o feijão ganhou destaque nos campos mediterrâneos e no norte, ainda no século 13.

Já a farinha sim, é nossa. De origem tupi, antes da colonização, as raízes de mandioca eram o elemento principal de cultivo e nutrição dos Tupinambás, e os tupis-guaranis colocaram milho na conversa. Como eram nômades, o consumo da farinha de milho, feita do cereal seco triturado no pilão de madeira, principalmente no sudeste do Brasil, ficou conhecido como “o pão da terra”. Era de fácil armazenamento e durava bastante.

Mas o Brasil se apropriou dessas culturas, elevou a feijoada à enésima potência, e como toda cultura popular bem trabalhada, transformou-se em identidade. Cada um com um segredinho, cada região incluindo ou retirando ingredientes, mas essencialmente semelhante e produtora de sentimentos comuns. Assim como a música, a literatura e a arte. Elementos que nos transformam em um povo, que trazem as mesmas memórias afetivas em um país continental. Ou pelo menos, as mesmas referências.
A feijoada lá de casa era agregadora, quase uma tradição que nos mantinha, como ingredientes daquele núcleo familiar cozido e refogado em dores e sabores, unidos. Claro que havia diferenças, o paladar não era igual, tampouco a percepção minha ou de minhas irmãs eram as mesmas. Trago aqui as minhas, que podem ser diametralmente opostas de outras percepções vindas do mesmo ambiente. Meus pais, conservadores por assim terem sido criados, decidiram que aquele ia ser um lar de liberdade e conhecimento; sempre incentivados, ambos os conceitos.
Ao meu alcance e de minhas irmãs, e de quem passasse por lá, estava o “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte” de Marx, na mesma estante de “A Riqueza das Nações”, de Adam Smith. Convivemos com essas misturas, como convive a feijoada. De resultado, saiu alguém social-democrata, ou social-liberal (ainda em construção e influenciado pelo contexto histórico de um país complexo), como eu, e uma progressista quase radical, psolista de carteirinha, como minha irmã mais velha. É óbvio que as discussões, mesmo em dia de feijoada, aconteciam. E por vezes as palavras eram advindas do fígado, e não da razão. Mas, havia convivência e respeito mútuo. Esses, aprendidos na mistura, na miscigenação e no refogar de ideias velhas e no cozimento de outras, antes estratificadas, que mudaram de forma com o calor. Sentávamos à mesa misturados, não separados à direita e à esquerda, como girondinos e jacobinos.

Como referência intelectual, até por sua ligação com Campos dos Goytacazes (nome indígena em uma cidade conservadora), sempre li e me alimentei de Darcy Ribeiro. E sempre relutei em aceitar a tal “democracia racial” da Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. Darcy queria entender a miscigenação, compreender um povo formado por pessoas escravizadas africanas, indígenas nativos e portugueses fugidos. Entendia que o mestiço era o trunfo da nação, assim como Freyre, mas com necessidade de luta, de processos emancipatórios e compensatórios.

Darcy não pode ver, mas há dez anos nosso Brasil cindiu. Rachou ao meio. Desde de 2013 passamos a nos odiar por opções eleitorais e ideológicas. Perdemos o sentido da feijoada. Precisamos recuperá-lo, achar os ingredientes que estragaram e tentar refazer a receita de um país minimamente civilizado, onde não se queira fritar um adversário, ou dar tapas na cara de quem veste camisa da seleção brasileira. Devemos saber sentir a dor de sangue preto escorrendo nas ruas, sem rasgar placas feitas em sua homenagem e lembrança.

Como cantou e versou Chico, talvez devêssemos aproveitar a gordura da frigideira, melhor temperar a couve mineira. Fazer uma feijoada nova, achar um Brasil que saia dessa fumaça aromática. E se estivermos duros para uma feijoada completa, podemos pendurar a fatura no nosso irmão. E botar água no feijão, que deve dar para todos.

*Vou tirar uns dias deste espaço, retornando em meados de janeiro. Deixo essa mensagem de fim de ano, que embora um tanto quanto idealizada, é sinceramente esperançada. Ao leitor, agradeço a parceria neste ano, e digo que sou muito honrado em receber todos os retornos positivos que sempre recebo. Até as críticas, essas necessárias, são bem vindas; e refogadas. Até a volta!
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Lula, o discurso do esquecimento e a incapacidade de lidar com o presente
18/12/2023 | 07h14
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A vitória de Lula em 2022 — por pouco mais de 2 milhões de votos — demonstrou que seria preciso um governo de coalizão, e embora seja um modelo que Lula sempre adotou, o Brasil atual difere bastante da realidade de seus dois últimos governos (2003-2011). Porém, Lula parece esquecer essas condições em alguns momentos.

Lula recebeu um país cindido, para além da polarização saudável de qualquer democracia. A partir de 2013 foi profundamente alterada não apenas a forma de votar, se transformando essencialmente em binarismo, mas também a sociedade brasileira foi assumindo uma postura de polarização com contornos emocionais e de identidade.

Os grupos políticos majoritários — bolsonarismo e lulismo — representam não apenas decisões eleitorais, mas definem identidade. Pautas como armas, aborto, igualdade de gênero, e outras relacionadas aos costumes, fazem parte de um combo ideológico que determina quem o eleitor é no mundo, qual sua visão sobre outros temas, e principalmente definem sua participação ou não em um grupo; definem o pertencimento.

Antes de 2013, isso não acontecia.

Os movimentos de rua que ficaram conhecidos como as Jornadas de Junho, em 2013, contraditoriamente resultaram em um fortalecimento da antipolítica. Com pautas difusas e falta de lideranças orgânicas, o movimento foi gradativamente sendo absorvidos por grupos organizados, como MBL, o Vem pra Rua, e outras siglas de perfil ideológico conservador.

Depois das Jornadas e de suas contradições, o Brasil apresentou uma instabilidade crescente. Com o agravamento da crise de representatividade e da demonização da classe política, o judiciário passou a ser chamado para intervir em relações que antes ficavam restritas ao mundo político, principalmente com a Operação Lava Jato.

Com a Lava Jato em curso e um impeachment em 2016, a crise econômica se agravou. Pela primeira vez na história do país o PIB recuou durante 11 trimestres seguidos até dezembro de 2016. Segundo dados do Governo Federal, a renda per capita caiu 9,3% de 2014 a 2016, o desemprego aumentou significativamente até atingir mais de 14 milhões de pessoas (13,8% da população economicamente ativa) em março de 2017, e a inflação chegou a superar dois dígitos. A dívida pública saltou de 54% do PIB em 2014, para 70% em 2016.

Edmundo Siqueira
O que o PT chama de “golpe” foi o expulsamento político de uma presidente que permitiu duas condições incompatíveis com a permanência no cargo: crise econômica gravíssima e perda de apoio total no Congresso. A situação era insustentável, e o impeachment, como remédio político, foi a solução encontrada.


A questão é que a “solução” não veio acompanhada de melhora econômica, tampouco de equilíbrio institucional. A prisão de Lula em 2018 coroou o ódio ao PT de parte significativa da sociedade, formada essencialmente pela classe média que quebrou no governo Dilma. O resultado das eleições de 2018 não poderia ter sido diferente.

Além da aversão ao PT, o esfacelamento do PSDB também pela Lava Jato e a condição econômica construíram uma eleição onde quem conseguisse vocalizar melhor o antipetismo, a anti-esquerda e todo ódio produzido e incentivado, ganhava.
Jair Bolsonaro conseguiu.

O discurso do esquecimento

“Em 2016, quando veio o golpe contra nossa querida companheira presidente Dilma, que hoje exerce a graça função de ser a presidenta (sic) do Banco dos Brics (Novo Banco do Desenvolvimento). Esses dias, ela vinha de 1º classe para o Brasil e uma fascista, que estão em todo lugar, foi tentar dizer para ela: ‘hum…a senhora está andando na 1º classe?’ E ela respondeu: onde a senhora acha que banqueiro anda?”

Esse foi um dos trechos do discurso do presidente Lula dado na última quinta-feira (14), durante abertura da 4ª Conferência Nacional da Juventude, em Brasília. Lula chamou de “fascista” uma popular que questionou o fato da ex-presidente Dilma viajar de primeira classe. Disse ainda que eles, os fascistas, “estão em todo lugar”.

O “nós contra eles”, apesar de agravado no pós-2013, foi iniciado quando o PT ainda era oposição ao PSDB. Não era raro ver petistas acusar psdbistas de fascismo ou ultradireita. Mesmo o PSDB sendo um partido moderado e de mesma base social e ideológica do PT.

Assumir que um adversário político democrático é um inimigo, significa dizer que a pluralidade de ideias e a alternância de poder não serão respeitadas. Significa negar a democracia. E isso vem sendo reforçado no Brasil pela própria classe política.

O neofascismo mostrou sua face verdadeira durante o governo Bolsonaro, coroado com o 8 de janeiro. A tentativa de derrubar o regime democrático, instalando uma autocracia de um líder carismático e populista é justamente o que levou ao fascismo na história.

“Aprender a lição da importância da democracia neste país e o que aconteceu há apenas seis (na verdade o impeachment de Dilma aconteceu em 2016, portanto foram sete) anos quando perdemos o direito de exercer a democracia neste país”, continuou Lula no discurso.

Embora existam correntes que vêem o impeachment como golpe, a ideia de um impedimento presidencial é eminentemente político. Cabe ao Senado, depois de autorizado por 2/3 da Câmara dos Deputados, formular a acusação (juízo de pronúncia) e proferir o julgamento.
O mais novo ministro do STF, Flávio Dino, e o presidente Lula - comunista?
O mais novo ministro do STF, Flávio Dino, e o presidente Lula - comunista? / Ricardo Stuckert
A democracia continuou sendo exercida, não houve tentativa de rompimento em 2016, como houve em 2023. Portanto, quando Lula afirma que “perdeu o direito de exercer a democracia” é falso e uma afirmação perigosa, principalmente em tempos de crise democrática. É preciso definir as coisas como elas são, de fato.


“Ainda não conseguimos voltar a quantidade de funcionário públicos que tínhamos em 2010”, disse Lula no mesmo discursos, e na mesma linha afirmou: “a gente precisa parar de acreditar quando a imprensa fala: tem muito ministro, tem muito ministro…tem pouco ministro, é preciso mais ministros para cuidar de mais assuntos neste país”.

Mais uma vez Lula parece esquecer a história recente do país. “Parar de acreditar” na imprensa, mesmo se referindo à uma especificidade, é temerário em um tempo de ataques sistemáticos ao jornalismo e de excesso de notícias falsas, as chamadas “Fake News”. Aumentar a quantidade de ministérios não é necessariamente proporcional à qualidade e eficiência do serviço público.

Em relação ao funcionalismo público, Lula acerta. O efetivo brasileiro está atrás das nações que optaram pelo Estado de bem-estar social na Europa, os servidores representam 30,2% dos trabalhadores na Dinamarca, e 29,2% na Suécia, por exemplo.

Dos 91 milhões de trabalhadores brasileiros, 11,3 milhões estão atuando no setor público, representando 12,45% do total. Nos EUA, país de alta valorização da iniciativa privada, existem 13,5% dos trabalhadores no setor público. Na média dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), os funcionários públicos são 23,48% do total de trabalhadores.

O fantasma do comunismo alimentado

“Como estou feliz hoje, na primeira vez na história desse país nós conseguimos colocar na Suprema Corte desse país um ministro comunista. Vamos politizar esse país, vamos formar novos socialistas nesse país, mais gente de esquerda”.

Continuando o discurso do esquecimento, interrompido por uma tosse rouca e um pedido de água para Janja, e se não bastasse o fortalecimento da cisão na sociedade brasileira, Lula resolveu reforçar a ideia fantasiosa da extrema-direita que há um controle comunista em curso no país.
Reprodução - Charge assinada
Embora tenha falado em tom irônico, Lula esquece o que Bolsonaro fazia questão de esquecer — ou de não entender: a importância de qualquer fala de um presidente da República e da necessária liturgia do cargo.

Dizer que Flávio Dino é comunista e que conseguiu colocar na Suprema Corte um ministro comunista, oferece a uma quantidade gigantesca de pessoas fundamento para acreditar que o comunismo ainda tem algum tipo de poder ou influência no Brasil. E em tempos de rede social, o corte de seu discurso é viralizado, e usado como arma política para um grupo que sabe manejar as redes de maneira muito eficiente e aprendeu a controlar massas com inverdades e discurso de ódio.

Lula demonstra com esse discurso que esqueceu sua missão nesse governo, que é a reconstrução democrática e institucional. E demonstra que não sabe lidar com um tempo em que o jogo político está sendo jogado principalmente nas redes sociais. Aposta na separação, no conflito e no populismo.

Essas apostas são a fórmula de um fracasso conhecido, mas nesses tempos não é arriscar apenas um governo; é arriscar a democracia.
 
Veja aqui:
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No hay plata y no hay racionalidad
13/12/2023 | 08h20
Foto: Juan Mabromata/AFP
A posse do novo presidente da Argentina — que aconteceu no último domingo (10) — foi mais um episódio tragicômico da chegada ao poder de um representante de grupos de direita radical e de extrema-direita no cenário político global. Javier Milei assume a Casa Rosada dizendo ser “o fim da noite populista”, se referindo ao kirchnerismo que derrotou nas urnas.

Milei diz encerrar um ciclo populista, mas inicia outro de sinal ideológico invertido. Abandonou a liturgia do cargo e o protocolo argentino e decidiu discursar do lado de fora do Congresso, onde criticou o antecessor e foi ovacionado por apoiadores. Nada mais populista.

A ideia que o agora empossado presidente da Argentina vendeu durante a campanha foi de alguém antissistema. Com frases de efeito, anarcocapitalismo, libertarismo, cachorros mortos e outras idiossincrasias, Milei trouxe a antipolítica como ideia central em seu discurso.

Porém, em suas primeiras ações como presidente, Milei derrubou uma lei que proibia o nepotismo e nomeou sua irmã em uma cargo importante de seu governo, e mandou incrustar no bastão presidencial argentino (um dos símbolos do poder daquele país) os seus amados cachorros. O libertário usando em benefício próprio o Estado.

Crises — Há uma profunda crise de representatividade, não apenas no Brasil e na Argentina, como em vários países. E essa crise arrasta, como uma das causas, um enfraquecimento brutal e crescente das democracias. A escolha por alguém antissistema reflete esse quadro, onde o eleitorado não vê nos políticos tradicionais uma possibilidade real de solução de seus problemas, ou pelo menos de garantia de seus direitos básicos.

O perigoso populismo autoritário que Milei representa tem pautas comuns, quase todas ligadas aos costumes. Elegem um comunismo inexistente como inimigo e mantém seus apoiadores com a sensação de que fazem parte de algo, e que precisam estar sempre alertas para a iminência da volta “deles”, dos “outros”, da “esquerda comunista”. Teorias conspiratórias não são incomuns.

Uma dessas pautas são as armas. Como parte desse ideário, o cidadão precisa ter acesso facilitado às armas para se proteger. O que é concernente com a lógica antipolítica e antissistema, onde o Estado não consegue promover a segurança pública, e portanto é preciso que individualmente se tenha a possibilidade de defesa. O problema é que essa é uma lógica inversa às democracias liberais.

Durante sua cerimônia de posse, Javier Milei decidiu escreveu no livro de presença do Congresso uma frase que resume esses movimentos populistas autoritários: “Viva la libertad, carajo!” (a tradução ao português é imediata, e sim, é um palavrão), que era também seu lema de campanha. A ideia de liberdade ilimitada, travestida assim para esconder desvios éticos e legais, conjuntamente com o palavreado antissistema, de fácil entendimento e identificação, violento e autoritário, compõe, em resumo, a dialética da nova onda de extrema-direita mundial.

A ideia de “salvador da pátria”, alguém ungido para estar onde está, também faz parte dessa dialética. Além da “libertad”, do “carajo”, Milei disse que em discurso de posse que “no hay plata” (não há dinheiro). Obviamente culpou seu antecessor, mas disse que tudo irá piorar na Argentina antes de melhorar, tendo ele todas as soluções.

Embora a Argentina seja de fato um caso suis generis, principalmente nas questões econômicas, apostar em alguém com as características de Milei parece ser um risco democrático e social.

Vai ser preciso entender qual Milei irá governar a Argentina, e se o poder irá moderar seu discurso e suas ações, mas a posse trouxe sinais de que os argentinos viverão tempos de pouca plata, e pouca racionalidad.
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Projeto de restauração do Museu Olavo Cardoso é enviado à Câmara - local pode abrigar a Escola Legislativa
04/12/2023 | 08h41
Museu Olavo Cardoso, no centro de Campos dos Goytacazes
Museu Olavo Cardoso, no centro de Campos dos Goytacazes / Folha1
O emblemático Museu Olavo Cardoso (MOC), um marco histórico e arquitetônico de Campos dos Goytacazes, está prestes a passar, finalmente, por um processo de restauração. Com investimentos orçados em R$ 2.681.788,02, um projeto foi encaminhado à apreciação da Câmara de Vereadores, visando revitalizar o patrimônio cultural.

Enviado na última sexta-feira (01), o projeto e orçamento de restauração do Museu Olavo Cardoso poderá abrigar, em um de seus anexos, a Escola Legislativa (antiga Emugle). Segundo a Secretaria de Comunicação, o envio foi fruto de entendimento firmado entre o prefeito de Campos, Wladimir Garotinho, e o presidente do Legislativo, Marquinho Bacellar, nos tempos de pacificação.

Em entrevista à FolhaFm 98.3, em agosto deste ano, Wladimir Garotinho havia aventado a ideia de levar a Escola Legislativa de Campos — antiga Escola Municipal de Gestão do Legislativo (Emugle) — para as instalações do Museu Olavo Cardoso.

“Não é uma informação consolidada, mas um início de conversa. Tive uma conversa boa com o presidente do legislativo, Marquinho Bacellar, para que a Câmara de Vereadores possa, junto com a prefeitura, restaurar o Olavo, e que a Escola do Legislativo da Câmara passe a funcionar em um prédio anexo ao Museu, na área que tem ali nos fundos e que não é utilizada”, disse o prefeito à época.

O MOC - Inaugurado em 2006, o Museu Olavo Cardoso está fechado desde 2014. O prédio, construído no final do século XIX, foi deixado em testamento para a municipalidade com o objetivo de ser utilizado com fins memorialistas. A construção histórica está localizada na avenida Sete de Setembro, na área central da cidade.

Em estado de abandono há anos, o prédio perdeu sua varanda recentemente, e no final do governo Rafael Diniz teve parte de seu acervo subtraído por uma ação criminosa, onde também foram furtados mobiliários.
O MOC carece de medidas emergenciais, e além da recuperação das estruturas danificadas de receber receber restauração de elementos arquitetônicos originais, modernização de sistemas elétricos e hidráulicos, e a implementação de medidas de preservação histórica. Uma das exigências da doação do prédio pelo usineiro que batizou o Museu, foi o uso cultural do espaço, que necessita de entendimentos com o setor, mas que fica contemplado caso a Emugle seja instalada no local.

O projeto agora segue para apreciação dos vereadores, onde espera-se que a importância histórica e cultural do MOC seja reconhecida e que o investimento para sua restauração seja aprovado em prol da preservação e valorização do patrimônio local.

Espera um desfecho positivo, independente do cenário político, pela importância que a pauta cultural e de patrimônio histórico exercem em Campos, apesar do estado de abandono de prédio históricos fundamentais para toda região. Pode ser um bom começo.
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Ciclofaixa deve ser a última etapa, não a primeira
30/11/2023 | 07h55
Novas ciclofaixas em Campos, instaladas na última terça-feira (28).
Novas ciclofaixas em Campos, instaladas na última terça-feira (28). / PMCG - Foto: César Ferreira
Campos dos Goytacazes é uma cidade média que caminha para ser grande, se observados os parâmetros populacionais: possui mais de 480 mil habitantes segundo o último Censo (2022), estando próximo da marca de 500 mil, quando um núcleo urbano passa a ser considerado grande. Porém, como outras cidades no Brasil, cresce de forma desordenada.

O trânsito é um dos principais fatores que denunciam o desordenamento. Em Campos, o deslocamento urbano é historicamente deficitário, com pouca oferta de transporte público, sinalização insuficiente e baixo estímulo e incentivo aos meios de transporte alternativos e não poluentes, como a bicicleta. Para tentar mitigar essa questão, a prefeitura resolveu instalar ciclofaixas na área central, mas sofreu críticas.

Hegemonicamente plana, e dona de um orçamento bilionário, Campos deveria ser um caso de sucesso em ordenamento urbano e malha cicloviária. Tivesse crescido de forma ordenada, a cidade poderia oferecer transporte coletivo de qualidade e com horários definidos, diminuindo consideravelmente a quantidade de carros nas ruas, e possibilitando que fosse pensado um "Plano Cicloviário" que contemplasse não apenas ciclofaixas, mas ciclovias e ciclorotas.
Detran RJ
Como foi feito, a insatisfação da população é justificável. Instaladas em um trânsito desordenado, a ciclofaixa não atende aos ciclistas, por não apresentar segurança e prejudica ainda mais a circulação dos veículos motorizados.

A decisão de colocar as ciclofaixas parece não ter sido planejada como deveria, tampouco discutida com a população. Aliás, é mais um exemplo de um problema campista crônico: as ações do poder executivo não são apresentadas previamente, não contam com a participação da população, de conselhos ou de outros poderes, geram transtornos (como qualquer mudança), a população reclama, e as ações e políticas públicas se retraem.

Exemplos como a cidade de Singapura talvez estejam muito distantes, mas os princípios urbanísticos utilizados por lá podem perfeitamente ser seguidos por qualquer centro urbano, principalmente com as características orçamentárias e geográficas de Campos.
As chamadas “Cidades de 15 minutos”, onde moradia, trabalho, lazer, comércio, áreas verdes e serviços estão dispostos a uma distância que pode ser percorrida a pé, ou pedalando, em até um quarto de hora, favorecem não apenas o ordenamento urbano como os próprios comércios. Em Singapura, lojas, cinemas, museus e bibliotecas estão localizadas no centro da cidade, enquanto escolas e creches estariam mais próximas das áreas residenciais.

Além de criar alternativas, uma cidade pode utilizar suas estruturas já existentes. Incentivo para criação de “telhados verdes”, abertura de prédios públicos e históricos para fins culturais e recreativos, espaços projetados ou adaptados para atender a diversos usos. O Canal Campos- Macaé, por exemplo, poderia ser utilizado para transporte hidroviário e ciclovias.

Convenhamos, colocar o telhado antes das paredes não é uma decisão inteligente. As ciclofaixas são ótimas alternativas, porém devem ser precedidos estudos, planejamentos, audiências públicas, campanhas de educação no trânsito (muito necessárias em Campos), pontos de apoio arborizados para conforto térmico dos ciclistas e bicicletários públicos ou privados em parceria.

Campos não precisa ser uma Singapura, mas um pouco de ordenamento e participação popular em uma cidade bilionária vai bem.

Infográfico
Infográfico / Edmundo Siqueira
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Lembrai-vos da liturgia do cargo
02/11/2023 | 12h11




Desde que a humanidade decidiu abrir mão de parte de sua autonomia e liberdade em nome de um pacto social — uma convivência coletiva pautada em normas e com a presença de um organismo chamado “Estado”, atuando não apenas nos ordenamentos mas com poder real sobre a vida das pessoas —, a preocupação com os preceitos éticos dessas relações foi uma constante.

O axioma acima, caro leitor, não é mero recurso retórico. Sócrates já pensava sobre a ética, já formulava teorias sobre como as pessoas agiam e reagiam diante do “bem” e do “mal”. Isso 300 anos antes de Cristo (ou antes da Era Comum, termo mais apropriado em tempos de guerra no Oriente Médio). Seu pupilo, Platão, e o aluno dele, Aristóteles, continuaram a refletir sobre ética e vida social.

“Conhece-te a ti mesmo”, dizia Sócrates, fazendo alusão direta à ideia de que quando o indivíduo conhece quem ele é, e onde está no mundo, age eticamente. Platão trouxe a discussão para as cidades — as pólis. Para ele, alguém só seria realmente bom sendo efetivamente um “bom cidadão” com a “subordinação do indivíduo à comunidade”, e na necessidade de um Estado. Já Aristóteles, entendia que as virtudes do indivíduo estavam relacionadas com sua prática, e essa deveria refletir em cidadania, participação, e reforçava a inseparabilidade entre ética e política.

Sim, há um abismo temporal e comportamental dos tempos do trio de filósofos da antiguidade. Mas as mesmas questões que refletiam continuam a produzir basicamente os mesmos efeitos, hoje. Quando discutimos políticas públicas, impostos, corrupção ou escolhemos em quem votar de dois em dois anos, estamos analisando, conscientes ou não, através de lentes éticas e morais.

Não se trata de moralismo. O julgamento ético que se faz de uma pessoa pública, ou de um político, abrange diversas questões relacionadas à postura, ao cuidado com o erário, ao passado dessa pessoa, e até seu linguajar e vestimenta. E essencialmente o modo que se relaciona com os seus, com inimigos e com desconhecidos.

O discurso do político importa, não apenas nas tribunas, mas o que e como alguém investido em um cargo público fala, influencia — para o bem e para o mal, no conceito socrático ou contemporâneo. São escolhas do ser político, mas que não se pode esquecer que também são seres sociais.

Ser agressivo em um discurso público agride o ouvinte, mas ofende ainda um princípio básico do fazer político ético: a preocupação com a comunicação e com o uso da língua para construir uma sociedade melhor, e principalmente permitir que mais pessoas possam participar e se sentirem representadas.

A construção da democracia parte de uma ideia abstrata, mas se consolida quando governo e sociedade têm voz e meios de fazer com que seus problemas sejam resolvidos. Nas cidades, é preciso criar as condições para que as pessoas se articulem num nível local de forma consistente, que possam ser ouvidos e sentir-se representados. A agressividade na comunicação e na construção dos discursos públicos afasta; não inclui.
Portanto, é uma postura antidemocrática.

Por tudo isso existe um termo que faz alusão aos rituais católicos que no meio político é conhecido por “liturgia do cargo”. No Brasil, a expressão foi popularizada pelo ex-presidente José Sarney que vinculou a responsabilidade de ocupar um cargo público — no seu caso de presidente da República — perante a população. Das palavras ditas, ao comportamento pessoal, tudo tem seu peso político, sua importância na construção da democracia.

Quando o político age agressivamente, com denuncismo ou tentando criar animosidade contra seus adversários, ele afeta sua moralidade individual, e assim destrói laços vitais e necessários que são visíveis ao povo.
Por outro lado, pode atrair seguidores que se identificam no conflito bélico comunicativo promovido pelo político, principalmente em tempos de redes sociais, mas isso não se sustenta. Primeiro pelo próprio esgotamento do conflito, depois pela percepção de quem o segue que sofreria os mesmos ataques caso desagradasse o político.

O julgamento eleitoral não é apenas relacionado aos resultados que um governante entrega, e embora haja muito de passionalidade nas eleições, a razão também está presente. Quem decide participar do escrutínio público de forma antiética e antidemocrática, utilizando-se de comunicação violenta, atrai o mesmo do eleitorado.

E vale lembrar, mesmo os pensadores que olharam para ética e a relativizaram, como Maquiavel, não dispensaram a obediência aos rituais formais de quem ocupa cargo público. Sob pena de atrair aliados e eleitores que dispensem qualquer liturgia. “O primeiro método para estimar a inteligência de um governante é olhar para os homens que tem à sua volta”, ensinou Maquiavel.
 
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Jovem de Campos é única finalista do interior do Rio em programa da Câmara do Deputados
26/10/2023 | 10h24
*
Quando o educador Darcy Ribeiro faleceu, em fevereiro de 1997, Ana Júlia não era nascida. A educação foi a grande causa de Darcy, e implantar o ensino integral no Rio de Janeiro e no Brasil era pauta constante de sua atuação — assim como já mostra ser para Júlia.

A relação do icônico educador com a jovem Júlia não é apenas coincidência. Campista, moradora de Travessão de Campos, participa de um programa local que estimula a participação de meninas e mulheres na ciência, o “Arduínas”, desenvolvido pela Uenf, universidade sonhada e executada por Darcy, e coordenado pelas professoras Priscila Castro e Elis Miranda, com verba da FAPERJ. .

Na última segunda-feira (23), Ana Júlia foi escolhida como uma das finalistas da 18ª edição do programa Parlamento Jovem Brasileiro (PJB), desenvolvido pela Câmara dos Deputados e dirigido aos estudantes do ensino médio de todo país, com objetivo de discutir questões relacionadas à educação e à democracia. O tema escolhido para este ano foi resumido na frase “a educação que queremos”.

O tema que Júlia escolheu para pesquisar e participar do programa da Câmara foi justamente a educação integral. Após concorrer com 1080 jovens do ensino médio de todo país, distribuídos em 40 vagas por Estado, a campista foi escolhida para ser um dos quatro representantes do Rio de Janeiro, pré-selecionados pelas Secretarias de Educação.
Os quatro finalistas da etapa estadual se apresentam através de vídeos na plataforma do programa, e o mais votado irá à etapa final em Brasília, que ocorre entre os dias 5 e 7 de dezembro.

Ana Júlia
Ana Júlia
“Eu conheci o programa por meio da divulgação do anúncio pelo professor de Diogo (Diogo Jordão, do Colégio Estadual Nelson Pereira Rebel, em Travessão) e logo me interessei. Durante a primeira etapa aprendi sobre políticas públicas voltadas para a educação e escolhi minha tese baseada na minha realidade como estudante integral, em uma escola estadual. Minha proposta é mostrar o valor do ensino integral e como é possível alcançar mudanças a partir dele, principalmente no meio público”, disse Ana Júlia.


O professor Diogo Jordão atua na área de Geografia na Escola Estadual onde Júlia estuda, e é um de seus maiores incentivadores no PJB. Em 2020, Diogo recebeu o Prêmio Educador Nota 10, uma das mais importantes premiações da Educação Básica Brasileira.

Professor Diogo Jordão
Professor Diogo Jordão / Reprodução
“Inicialmente, apresentei a proposta para os alunos, avisando sobre as inscrições. Alguns deles se inscreveram e ela (Ana Júlia) foi uma das sorteadas para participar da Jornada de Aprendizagem Cidadã, por uma plataforma online. Nesse processo, ela aprendeu conceitos relacionados à participação política dos jovens e deveria produzir um discurso defendendo propostas de políticas públicas sobre o tema geral, que é ‘A educação que queremos’. Especificamente , ela escolheu defender a educação integral de qualidade, já que ela é aluna dessa modalidade”, explicou o docente.


Entre os finalistas do Estado do Rio, apenas Júlia é do interior, concorrendo com um aluno da capital e outros dois da região metropolitana. Ela também é a única representante da rede estadual de ensino do Rio no Parlamento Jovem Brasileiro, da Câmara dos Deputados.

“Meu objetivo é defender o maior investimento nesse tipo de ensino e levando oportunidades para os alunos do estado. Gostei muito da experiência e principalmente do aprendizado, espero conseguir levar minha pesquisa à frente compartilhando com todos o meu trabalho”, relata a aluna, orgulhosa.

Para chegar à etapa nacional, em Brasília, Ana Júlia precisará da ajuda do público e da avaliação de uma banca especializada da Câmara Federal. A plataforma do PJB traz os vídeos de cada finalista, e o voto na representante campista pode ser feito através do site https://evc.camara.leg.br/votacao-pjb-2023/ (aqui).

O professor Diogo explica que o caminho que Júlia percorreu não foi fácil e o resultado como finalista estadual do programa foi fruto de muita conversa, pesquisa e trabalho coletivo.

“Para produzir o discurso, deveria fazer pesquisas e ouvir outros jovens da escola. Fizemos rodas de conversa e aplicamos um formulário aos estudantes da instituição. Com o discurso, ela foi escolhida como uma das finalistas do estado do Rio de Janeiro para concorrer à participação na etapa presencial na Câmara dos Deputados, em Brasília. Na etapa atual, ela produziu um vídeo para defender suas ideias, e além da votação do público, os finalistas serão avaliados por uma banca de especialistas da Câmara dos Deputados. Os vencedores de cada estado irão à Brasília, no próximo mês”, conta Diogo.

No discurso que escreveu — que a levou para a final da etapa estadual do PJB — Ana Júlia cita uma afirmação do economista britânico Sir Arthur Lewis, ganhador do Prêmio Nobel, em 1979: “Educação nunca foi despesa. Sempre foi investimento com retorno garantido”.
Com essa certeza, docentes e alunos continuam lutando para construir uma educação pública de qualidade no Brasil, e premiações como o Parlamento Jovem estimulam a continuidade desse trabalho.

Ainda no discurso, Júlia pede aos “demais estudantes e a sociedade em geral” que se juntem a ela, para que a “educação brasileira se torne cada vez melhor”. Para termos esperança em uma sociedade mais justa, em que possamos exercer plenamente a cidadania, em direitos civis, políticos e sociais, a educação se mostra fundamental. E para isso, é preciso que as ideias e as obras de gente como Darcy Ribeiro continue inspirando outros jovens como Ana Júlia.

*Para votar na Ana Júlia acesse o site https://evc.camara.leg.br/votacao-pjb-rio-de-janeiro-rj/, veja seu vídeo e marque o nome dela nas opções disponíveis. A votação está aberta até o dia 10 de novembro.
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Sobre o autor

Edmundo Siqueira

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