Mill, Google e o produtor de milho
04/05/2023 | 08h54
Poder demais concentrado — em um indivíduo, governo ou corporação — sempre representa um risco. Ditaduras nascem dessa concentração, e pode decorrer dela todo tipo de violência, abuso e ímpetos ditatoriais de quem atrai para si uma quantidade abissal de dinheiro e poder.

Uma das principais armas para derrubar poderes abusivos (ou para mantê-los, a depender da perspectiva) é a informação. A palavra, principalmente em sua forma escrita, adquire a capacidade de transformar realidades, para o bem e para o mal, quando divulgada. Sem que ela seja propagada para um número relevante de pessoas, em percentual representativo de uma comunidade ou de um país, ela diminui consideravelmente seu potencial danoso. Mas o contrário é igualmente verdadeiro.

John Stuart Mill
John Stuart Mill / Reprodução
John Stuart Mill, considerado sem favor o filósofo de língua inglesa mais influente do século XIX, teve como um de seus principais objetos de estudo a liberdade de expressão e de opinião. Era um defensor da possibilidade de que a liberdade de falar e se expressar fosse bastante ampla, entendendo que era necessário garantir a todos esse direito.

Mas ele não a entendia como um direito absoluto. Na sua visão, na realidade material e social em que vivia, a liberdade de dizer o que se pensava sobre determinado assunto significava a libertação do indivíduo de amarras governamentais e imperiais. A censura era por vezes a morte do emissor da mensagem, de quem emitisse uma opinião que o status quo definisse como perigosa ou indesejável.

Para Mill, a premissa da liberdade de expressão era a cordialidade e a lealdade. Ou seja: não se teria o direito de dizer o que pensa sem haver a devida responsabilização. Não haveria liberdade se a comunicação se desse em bases desleais — usando inverdades ou tentando desconstruir afirmações alheias com ódio e narrativas falsas.
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Era preciso compreender que a liberdade de expressão termina quando ela causa algum dano relevante. A analogia milliana para explicar esse conceito era a de um produtor de milho. Qualquer um teria o direito de dizer, em qualquer veículo que divulgasse a ideia, que um produtor de milho mataria pobres de fome, ou que a produção de milho de determinado fazendeiro provocaria mal à saúde. Por mais que a informação não estivesse baseada em estudos, ou mesmo não fosse totalmente verdadeira, na visão de Mill, ela poderia ser expressa e divulgada.

O problema estaria no dano. Ainda na analogia, a mesma opinião sobre o produtor não poderia ser dita enquanto uma turba enfurecida estivesse invadindo a sua casa. Naquela situação, a opinião não teria a liberdade — e o direito — de ser emitida. A mesma opinião antes legítima — que o produtor de milho causava fome — poderia inflamar ainda mais os invasores a agir com violência, ou mesmo matar o agricultor.

O mundo de Stuart Mill e o de hoje são radicalmente diferentes. Talvez ele sequer pudesse prever que as informações fossem ser compartilhadas de forma tão rápida e para tanta gente. A ideia de que boa parte da população mundial tivesse em mãos um aparelho capaz de receber informação de forma instantânea e emitir opiniões ou gravar em vídeos e áudios do que estivesse vendo a sua frente é bastante recente.

As plataformas digitais permitiram que todos pudessem falar, se expressar de alguma forma, desde de divulgar uma inocente foto de seu cachorro, a conversar em tempo real com uma autoridade pública sobre suas opiniões. O acesso ficou democratizado, amplo e possível para milhões de pessoas que puderam encontrar quem pensa igual e discutir com quem pensa de forma oposta.

A questão é que o que era para ser essencialmente livre se tornou manipulado e hegemônico. Grandes corporações controlam e direcionam as plataformas a que temos acesso para expor nossas opiniões ou fotos de nossos cachorros. Somos constantemente direcionados a ler e ouvir as opiniões que concordamos e estimulados a nos digladiar com quem pensa diferente.
Maiores empresas do mundo atualmente, em valores de mercado.
Maiores empresas do mundo atualmente, em valores de mercado. / Reprodução
Mecanismos automatizados cuidam para que essa lógica perversa permaneça. E eles que nos faz voltar às informações que apenas confirmem o que pensamos e nos mantenham arredios a qualquer contestação.

Empresas como Google e Meta não apenas cultivam esses mecanismos como editam suas preferências. São veículos de comunicação, mais que plataformas de redes sociais. As vozes mais difundidas não necessariamente são as mais aceitas, mas por vezes as mais massificadas por decisões racionais e humanas de quem controla essas corporações.

O rádio permitiu o fascismo e o comunismo fossem possíveis e se espalhacem, assim como a internet permite que eleições sejam direcionadas e uma quantidade absurda de ódio seja cultivada dia a dia. A diferença das informações de jornais impressos de séculos passados está na quantidade. Centenas de milhões de pessoas são impactadas pelas mídias digitais, que seguem uma lógica própria.

Regulamentar a internet é necessário pelo mesmo motivo que a imprensa é regulada pelo Estado, por sindicatos, por regimentos internos, por códigos de ética e pelos leitores. Sim, os jornais possuem linhas editoriais. As notícias que são veiculadas são editadas, escolhidas para circularem em detrimento de outras. Mas os veículos de imprensa não são hegemônicas nas democracias.

Alguém pode ficar impedido de expressar um tipo de opinião em um jornal, ou aprovar trabalhos científicos em bancas de universidades. Mas certamente encontrará algum veículo ou academia que se interesse em divulgá-las. Em ditaduras acontece o contrário. Apenas um tipo de notícia ou informação é permitida, e para isso jornais são fechados e a liberdade de imprensa é tolhida.

A censura real acontece quando ela é feita de forma prévia ou que não exista espaço em nenhum lugar para determinado tipo de opinião. Regular não é censurar, e sim delimitar na lei o que pode ou não ser dito sem que haja consequências.
Dizer que um produtor de milho provoca a fome não é crime, mas incitar pessoas a matarem esse produtor dizendo a mesma coisa, enquanto invadem sua casa, pode ser considerado uma forma de participar de assassinato. Nos tempos de Mill e de hoje.

A liberdade não é absoluta. Os pactos sociais são formas de limitar liberdades para que se viva em mínimas condições de segurança e civilidade. Não pode existir em comunidades humanas um território onde não haja consequências. Em expressões humanas virtuais ou não, em formas de se relacionar digitais ou reais, sempre haverá danos possíveis por extrapolações de direitos e liberdades.
Impedir, então?
Por outro lado, impedir previamente opiniões ou transformar espaços públicos como as redes sociais em ambientes policialescos, onde o judiciário ou algum ente estatal exerça controle constante sobre o que é dito ou sobre opiniões de grupos empresariais acabam por configurar o mesmo problema anterior. A questão é a hegemonia, em última análise. A questão são os abusos de poder.

Quando o poder é muito concentrado, ele acaba por determinar as relações que o circundam. E quando essa concentração de poder é forte o suficiente para que essas determinações atinjam milhões de pessoas, temos um problema. Quando pessoas deixam de se vacinar por essas imposições, ou invadem prédios públicos pedindo regimes de exceção, temos um enorme problema.

A linguagem sempre será o código fonte da humanidade. A Bíblia e o Corão são palavras escritas, formas de linguagem que acreditamos serem sagradas. Constituições são palavras escritas e uma forma de linguagem que acreditamos ser a lei maior numa democracia. Mas apesar de exercerem poder e determinações seguidas por milhões de pessoas, não são hegemônicas. Há pluralidade de religiões e países seguem Constituições distintas.

Se concentramos poder demais, poderemos perder a capacidade de discernir se devemos ou não matar um produtor de milho.
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O déspota das joias
14/03/2023 | 08h05

A Arábia Saudita é uma monarquia absolutista e teocrática. Em outras palavras: um país em que o rei tem o poder supremo, acima de qualquer lei, e as decisões políticas, jurídicas e policiais são submetidas às normas religiosas. Hoje, a palavra final no reino é de Mohammad bin Salman, o príncipe herdeiro que virou notícia no Brasil ao presentear o ex-presidente Bolsonaro e a ex-primeira-dama com joias no valor de R$16 milhões.

A partir daí, um país que apresenta (desde sempre) uma profunda desigualdade como o Brasil, ficou envolvido com joias milionárias e sheiks árabes. Segundo apuração da imprensa, o regalo foi entendido por Bolsonaro como sendo seu, não como um bem do Estado brasileiro, como é, de fato.

Representação em telenovela dos coronéis.
Representação em telenovela dos coronéis. / Reprodução
A confusão do público com o privado não é uma exclusividade de Bolsonaro. A história do Brasil é marcada por coronelismos e governantes que personalizam o poder, extrapolando seus comandos em territórios federativos, consolidando dinastias políticas — como Bahia e Maranhão, por exemplo.
Em cidades pequenas, antes da Nova República, a figura do mandante, que detinha o poder político e econômico, era tratada por “coronel”, uma patente militar, não por coincidência.

Destratar a coisa pública como sendo “de ninguém” é um traço cultural do brasileiro, que entende o público não como algo de todos, mas algo que não tem dono. Na democracia representativa, quem é investido em cargos públicos deve obedecer preceitos éticos e de liturgia (modos de agir e se comportar enquanto investido do cargo) não apenas por uma obrigação legal, mas para servir de exemplo e espelho de uma sociedade que respeita a coletividade que está inserida.

Porém o oposto acontece com frequência. Políticos como Bolsonaro agem em afronta a esses preceitos, quando estabelecem conflitos constantes com outros poderes, usam palavras ofensivas, não respeitam a ciência e atentam contra o regime que representa — como o sistema eleitoral, por exemplo.
Então seria utópico ou incoerente pensarmos em representantes políticos agindo eticamente quando originam de uma sociedade incapaz de agir assim?

Ao mesmo tempo que parece uma pergunta impossível de ser respondida, é possível pensar que existam pessoas públicas que estão imbuídas no intuito de servir, de agir com abnegação e didaticamente, onde o público e o privado estejam separados por limites intransponíveis.
Assim como indivíduos antiéticos e distantes do sentido real da res publica (coisa pública) possuem o poder de influenciar a sociedade, o contrário também pode ser verdadeiro, e exemplos virtuosos possam surtir efeitos em mesma medida.

A partir desses preceitos, caímos em outro problema de fundo: personalismos exacerbados. Ao buscarmos bons exemplos — ou sermos influenciados pelos maus — estamos, em certa medida, à espera que “alguém faça alguma coisa”, ou que “salvadores da pátria” venham para uma rendição coletiva. Quando uma sociedade depende exclusivamente de governantes que a guie, sem senso crítico, participação e cidadania, está semeando um campo que será fértil para o nascimento de déspotas e tiranos.

O tirano se difere do déspota, representando uma figura da política grega que refere-se ao “homem excepcional”, alguém que reúna características grandiosas, podendo ser força física, grande intelectualidade, clarividência política, oralidade ou persuasão. Seria alguém chamado pelo povo para salvá-lo de uma crise, de uma guerra ou da baderna generalizada, que governará com o consentimento coletivo, com poderes de suspender leis antigas e criar outras, novas.

Já o déspota é alguém da sociedade, investido de poderes quase ilimitados. É o governante que percebe a coisa pública como sendo dele, algo como um “chefe de família”, trazendo relações fundamentais e históricas para o jogo político: a do senhor e o escravo, a do marido e a mulher, e a do pai e os filhos. O déspota é o governante que acredita que tem uma missão dada por ordens superiores, de cunho religioso, onde deve ter o poder absoluto, inclusive sobre as pessoas (representantes dos escravos, da mulher, dos filhos e parentes) que dele dependem para sobreviver ou usufruir de direitos básicos como saúde e segurança pública.

A principal característica do déspota encontra-se no fato de ser ele o autor único e exclusivo das normas e das regras que definem a vida coletiva, que ele entende como familiar, confundindo o público com o privado, novamente.

Déspotas — presidentes brasileiros ou príncipes sauditas — subvertem o regime democrático justamente por não saber viver nele. Negar vacinas durante uma pandemia devastadora, como fez Bolsonaro, ou condenar jornalistas opositores à morte e ao esquartejamento, como é acusado Mohammad bin Salman, representa a ausência de entendimento mínimo para viver em sociedade.

Receber um presente de 16 milhões de reais enquanto chefe de Estado, em missão oficial, e acreditar que ele deveria ser de sua propriedade privada, é nada mais que despótico.
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Fecha aqui, por favor, preciso ir embora
07/08/2022 | 12h23
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Aqui na cidade é costume os bares começarem a encher lá pelas onze horas, onze e meia. Os amantes da noite de Campos gostam mais da madrugada, nunca entendi bem o porquê.
Há algum tempo, era mais jovem e solteiro, e as saídas eram mais frequentes. Praticamente todas as semanas; começava nas quintas. Numa dessas acabei percebendo que era mais notívago que diurnal, mesmo. Não somente para os bares e outros eventos, mas também em outras searas. Acho que para quem cultiva a necessidade — mais que o hábito — de escrever, as noites são melhores. Seja para o ato intelectual solitário, ou para convivência pessoal, sempre mais rica em mesa de bar.
Numa dessas quintas pedi a conta mais cedo, contrariando os conterrâneos goytacá.
— Fecha aqui, amigo, por favor — pedi a Assis, dono do Terapia´s Bar, que na época era ali perto do Liceu.
O Terapias era um ponto frequente para algumas cervejas, e às vezes uma língua bovina com batatas, feita por Dona Ângela, esposa de Assis. O bar era costumeiramente frequentado por gente do jornalismo e da intelectualidade campista. Wellington Cordeiro, Esdras Pereira, Orávio de Campos, Jorge Rocha, Vitor Menezes, Aluysio Abreu Barbosa, e tantos outros. Joca Muylaert era habitué.
— Foram três cervejas, um cigarro e uma dose de uísque — disse um taciturno Assis, que estava para pouca conversa, chateado com a derrota do Botafogo na noite anterior.
Peguei as chaves do carro que estava no balcão, conferi os bolsos, acenei para Dona Ângela e entreguei o uísque ao Joca, que havia me pedido, e estava sentado na mesa de esquina. “Carga rápida”, dizia ele sobre o bourbon. Ainda de pé o abracei, arqueando o corpo, e disse que precisava ir mais cedo.
O motivo da antecipação da volta para casa era o "Programa do Jô". O talk show que Jô Soares apresentava nas madrugadas da Rede Globo. Naqueles tempos não havia algum YouTube que permitisse ver o programa depois. Havia umas repetições, um canal de TV a cabo que passava programas antigos e a possiblidade de gravar o programa no videocassete. Mas parecia ser mais especial ver na exibição primeira do programa.
Nos dias que não saía era mais fácil e inevitável assistir Jô. Se no outro dia precisasse acordar mais cedo, era obrigado a perder o programa, mas não sem lastimar silenciosamente antes de dormir. Ainda não trabalhava, fazia apenas a Uenf, e podia me dar ao luxo de dormir tarde para ver um programa de televisão e ainda me achar notívago, igual ao apresentador.
Naquele dia a entrevista era com Ariano Suassuna. Imperdível. Suassuna, autor de "Auto da Compadecida" e "O Romance d'A Pedra do Reino", poeta, advogado e professor, era sempre uma aula. Ele e Jô Soares, uma magna.

Ainda na casa dos vinte e poucos, sem streaming e com pouca opção de qualidade nas produções televisivas, o Programa do Jô era um oásis para mim na TV aberta. Claro, havia o cinema e os livros, mas aquele gordo das madrugadas fazia parte da minha formação cultural. O Jazz e o Blues chegaram a mim, também, pela porta analógica que Jô abria nas madrugadas.
O Jô era — muito — além daquele programa. Poliglota, quase diplomata de carreira, ator, músico, produtor cultural, escritor e dono de uma opinião política coerente e corajosa. Um democrata, convicto, como todos que se prezem. O Jô falado era tão bom quanto o escrito, e isso não é tão fácil e corriqueiro para um intelectual. Era um privilégio poder acompanhar suas entrevistas.
A obra literária de Jô Soares chegou para mim aos poucos. "O Xangô de Baker Street", de 1995, que virou filme, e "O Homem que Matou Getúlio Vargas", de 1998. Todos mais tarde. Sim, inicia-se na juventude jovem, mas me acompanha depois.
Quando abandono definitivamente o esquema faculdade-cinema-bar-televisão, sentia saudades do gordo. Mas sabia que o conhecimento apreendido estava comigo. Assistir Jô na TV era uma espécie de credencial, nos tempos juvenis. Depois, uma forma de alicerçar outras formas de adquirir cultura.
Mesmo sem mais assisti-lo na TV, soube de um quadro novo do seu programa: “Meninas do Jô”. Ali ele recebia jornalistas para formar uma roda de conversa sobre o momento político do Brasil. Esse quadro assisti algumas vezes já com a facilidade de redes sociais, em horários possíveis dentro dos poucos momentos de liberdade que o capitalismo concede.
Sem qualquer incoerência, o 'Meninas' era tão profundo quanto descontraído, e trazia mulheres para o centro do debate político em um contexto que isso era absolutamente necessário. O quadro foi ao ar até 2016. “Para mim, em todos esses 28 anos, a coisa mais gratificante foi a criação do ‘Meninas do Jô’”, disse Jô Soares.
Não conheci Jô pessoalmente, não fui ao auditório do seu programa, não entreguei um livro em suas mãos para que ele o autografasse. Esses privilégios, não tive. Mas, nos bares notívagos de Campos — mesmo no Terapia´s que sempre fechou cedo —, pude tê-lo à mesa, pois internalizados estavam os aprendizados de cultura, refino literário, irreverência ácida, simplicidade sofisticada e a certeza que escrever e aprender são mais que hábitos. São, para alguns, condições essenciais para viver 84 anos, ou mais.
Gabriela Biló
"Não chore à beira do meu túmulo, eu não estou lá. Estou no soprar dos ventos, nas tempestades de verão e nos chuviscos suaves da primavera. Não chore à beira do meu túmulo, eu não estou lá. Estou no brilho das estrelas e no cantar alegre dos pássaros. Não chore à beira do meu túmulo, eu não estou lá, eu não morri". Mary Elizabeth Frye.
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O velho e o rio
10/01/2022 | 10h32


Ele era um velho que remava sozinho em sua canoa, na baixada. Havia oitenta e quatro anos que fazia esse percurso pela beira do rio cheio. Naquele janeiro, ele estranhava a velocidade que o rio subia. “De manhãzinha ainda estava no curral; já chegou à soleira da cozinha”. O velho encostou a canoa na vegetação mais densa, que começou a despontar onde a cheia terminava. O barulho de madeira rangendo se potencializava nas águas já calmas ali da beira. Desceu com as calças dobradas no joelho, e o barulho de madeira cedia lugar à cadência alta da corrente sendo arrastada pela proa.
Com sua embarcação já ancorada, o velho parou um pouco e olhou para aquele mar amarelo-barro, com algumas árvores de fora. Em sua pequena propriedade o rio sempre crescia nessa época. Aquele ano estava um pouco diferente, mas ele já havia visto pior. “Em 66”. Lembrou-se. “Era tudo água”.
A cheia do rio causava-lhe preocupação. Já não estava mais com a disposição de antes, tudo era mais difícil. Mas aquela ronda no rio cheio lhe trazia um ar de nostalgia. Ademais, tinham sido os últimos cinco anos marcados pelo oposto: secas intermináveis. O amarelão que coloria todo pasto o deixava feliz, apesar de tudo.
Com cheia ou sem, retirar da terra seu sustento era cada vez mais complexo. Não tinha os documentos do pedaço que seu pai lhe deixou, há mais de sessenta anos. Não sabia onde buscar ajuda técnica, e crédito no banco era algo quase impossível. Repetia o que aprendeu, apenas. Até a canoa era a mesma que seu pai usava nas cheias. Não era uma família de pescadores. Mal sabiam lidar com redes, linhas e anzóis. O rio lhes servia para dar de beber as criações e alimentar os lençóis subterrâneos. Portanto, a canoa era utilizada apenas quando o rio enchia, principalmente para ir às pastagens dos altos.
Depois de vistoriar os poucos boi que sobraram da venda feita às pressas quando percebeu que o rio subiria, o velho voltou à canoa. Dessa vez a alegria nostálgica tinha passado. Por mais acostumado que estivesse com aquela situação o velho se ressentia de não ter se programado melhor, de ter vendido o que precisava em melhor época, e de não ter se preparado financeiramente para o prejuízo que inevitavelmente ia sofrer com aquela situação. Puxou a corrente de uma só vez, passou com dificuldade uma das pernas pela borda da canoa, sentou-se de costas para o rio, e empurrou a embarcação para longe da beira, com a cara fechada.
Enquanto remava de volta para casa, percebeu que o rio apenas fazia o que ele nasceu para fazer. E queria ocupar o lugar que era dele, mesmo que sazonalmente. "Ora — pensou, olhando para si mesmo — "quem decidiu plantar ou morar onde se sabe que o rio enche que é culpado".
Já em casa, depois do banho tomado, o velho sentou-se na sala. O leite esfumaçava na xícara sobre a mesinha, ao lado da cadeira. Ligou a televisão. Passavam as notícias. O velho ouvia atentamente o repórter falar, ensopado de chuva, com uma capa amarela e ao fundo uma rua alagada. A âncora do jornal anunciava uma entrevista com um especialista em enchentes, que seria em instantes. O velho acompanhava com atenção enquanto sorvia o leite quente.
— Uma gestão de riscos bem feita e com a previsibilidade que é possível trabalhar, conseguimos mitigar bastante as consequências. Com limpeza de canais, barragens e orientação técnica, podemos controlar bastante as causas — afirmava, com segurança, o especialista da TV.
O velho logo desligou o aparelho depois da fala do especialista. Precisava ir dormir mais cedo; no outro dia precisaria remar novamente. No caminho do quarto, com um copo de água nas mãos, pensou: “a culpa não é de ninguém. É de todos”.
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Jornalismo: "uma condição para a democracia e a paz duradoura" Prêmio Nobel da Paz
09/10/2021 | 01h34
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Jornalistas Maria Ressa e Dmitry Muratov recebem Nobel da Paz
Anunciado nesta sexta-feira (8) pela Academia Sueca, em Estocolmo, o prêmio foi concedido "pelos esforços de salvaguarda da liberdade de expressão, pré-condição para a democracia e paz duradouras".
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“Uma condição para a democracia e a paz duradoura". Essa foi a justa definição para o jornalismo dada no Prêmio Nobel da Paz de 2021. A cerimônia, que aconteceu nesta sexta em Estocolmo, premiou os jornalistas Maria Ressa, das Filipinas, e Dmitri Muratov, da Rússia, por seus esforços para salvaguardar a liberdade de imprensa e de expressão em seus países.
A informação sempre foi uma arma. E como tal, pode ser utilizada como defesa ou como instrumento de destruição. Com a internet, as pessoas tiveram mais acesso e as fronteiras físicas deixaram de ser impeditivas. Porém, o uso da informação passou a ser ainda mais manipulado e danoso, influenciando o voto e instigando as massas para benefício de grupos políticos. Como o Nobel evidencia o jornalismo é, nesse cenário, ainda mais importante e garantidor da democracia e da paz.
Uma das características da onda recente de extrema-direita no mundo é o ataque sistemático à imprensa e o uso constante das chamadas “fake news”. Em seus exemplos mais emblemáticos, o ex-presidente americano Donald Trump e o atual brasileiro Bolsonaro elegeram a imprensa como inimiga. Este, disse que a imprensa é “o maior problema do Brasil”.
— Não é nem lixo, porque lixo é reciclável. Não serve para nada, só fofoca, mentira o tempo todo.
— A imprensa se tornou tão desonesta que, se não falarmos sobre isso, estaremos fazendo um tremendo desserviço ao povo americano. A imprensa está fora de controle.
São alguns dos exemplos do que disseram, sentados em cadeiras presidenciais.
O ataque à imprensa não é exclusividade da extrema-direita. Regimes autoritários e totalitários, — de esquerda ou de direita —, tem como medida essencial para sustentar-se de pé calar jornais, controlar TV e rádio. Sem imprensa livre não há democracia.
Maria e Dmitri – O Prêmio Nobel da Paz de 2021 coloca o jornalismo em seu lugar de merecimento. Os escolhidos mantêm em seus veículos a liberdade de expressão e os fundamentos éticos como norte. Os temas nos artigos críticos de ambos os jornalistas vão desde corrupção, violência policial, prisões ilegais até fraudes eleitorais. Como resumiu bem o ex-presidente da extinta União Soviética, Mikhail Gorbachev, o prêmio “eleva o significado da imprensa no mundo moderno a uma altura maior”.
Dmitry Andreyevich Muratov, de 59 anos, dedicou seu prêmio aos seis colegas que foram assassinados pelo trabalho que desenvolvem na Novaya Gazeta, que Muratov é cofundador e editor. Yury Shchekochikhin, um dos seis jornalistas assassinados, foi o primeiro a escrever sobre corrupção e a máfia na União Soviética, em 1988. Yury temia ser “assassinado por sua escrita”, o que de fato aconteceu.
Maria Ressa e Dmitry Muratov
Maria Ressa e Dmitry Muratov / Reprodução
Como jornalista e diretora da Rappler, companhia de mídia digital voltada ao jornalismo investigativo, Maria Ressa usa a liberdade de expressão em um país de grande repressão. Expondo abusos de poder, a violência e o autoritarismo crescente nas Filipinas, Ressa, de 58 anos, deu um grito e chorou ao saber que receberia o prêmio. “Oh, meu Deus! Estou sem palavras! Muito obrigada!”.
“Essa campanha implacável de assédio e intimidação contra mim e meus colegas jornalistas nas Filipinas é um exemplo forte de uma tendência global de que os jornalistas e a liberdade de expressão enfrentam condições cada vez mais adversas”, disse a jornalista que já recebeu 10 mandados de prisão pelo governo filipino e foi proibida de deixar o país.
Mesmo com todas as ameaças e desafios, os jornalistas vencedores do Nobel são ícones da salvaguarda democrática que o jornalismo exerce. Arriscando a própria vida, exercem a profissão com a grandeza que ela exige. Maria Ressa disse em entrevista sobre a premiação que “é o melhor momento para ser jornalista” e que “os momentos mais perigosos são também os momentos mais importantes”.
O Prêmio Nobel da Paz deste ano coloca o jornalismo em seu lugar de merecimento: garantidor da democracia.
 
 
 
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Fake news, presidencialismo de coalizão e o risco de golpe - uma conversa com Sérgio Abranches
26/08/2021 | 08h42
Gabriel de Paiva/Agência O Globo
Sérgio Abranches é — sem favor nenhum — um dos maiores cientistas políticos do país. É também sociólogo e escritor (veja aqui seus livros publicados). A última Constituição brasileira ainda estava sendo redigida quando ele cunhou o termo “presidencialismo de coalização”, usado largamente nas ciências humanas e nas análises políticas no Brasil, desde sua publicação, em artigo seminal de Abranches no ano da promulgação da CF, 1988. A ideia central que o termo traz é fundamental para entendermos a construção do Brasil desde sua dita "Terceira República", e de como chegamos neste estado de coisas. Em um resumo simplista, “presidencialismo de coalização” diz respeito à necessidade de formar maioria no Congresso, sem a qual não o presidente fica impossibilitado de governar. E acaba caindo, como aconteceu com Collor e Dilma.
Nesta conversa, Sérgio fala sobre fake news, redes sociais, pós-verdade, governo Bolsonaro, o impeachment de Dilma, a obrigatoriedade do voto no Brasil e os rumos da nossa democracia. Às vésperas de uma manifestação capitaneada por Bolsonaro que promete pautas golpistas (veja aqui), no próximo dia 7, as reflexões de Abranches é “luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados”, parafraseando o saudoso Ulysses Guimarães, que é considerado o “pai” da Constituição, que na mesma frase disse: “não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora”.
Edmundo Siqueira - Sérgio, na última semana, algumas pessoas (eu me incluo) passaram por uma situação no mínimo estranha, com a publicação de uma foto. Não se trata de uma imagem qualquer, trazia o registro histórico de centenas de afegãos amontoados em um avião militar de carga dos Estados Unidos para fugir de Cabul, capital do Afeganistão (veja foto aqui). A impressionante foto, publicada originalmente no site americano Defense One nesta semana, viralizou muito rapidamente, circulando em sites de notícias e redes sociais. E foi em uma dessas redes que a compartilhei, após vê-la publicada pelo jornalista Pedro Dória. Minutos depois de compartilhada, recebi um alerta de uma amiga que dizia que aquela foto seria uma montagem, uma fake news, portanto. Por ter confiado na credibilidade da fonte — admiro muito o trabalho Pedro —, não fiz uma checagem prévia sobre a veracidade da imagem, que de tão chocante, poderia mesmo ser uma falsa. Alertei o Dória no mesmo momento; ele me agradeceu e retirou a postagem, fazendo um alerta em sua rede pessoal. Por fim, a foto é verdadeira, depois de todas as checagens feitas. Como você avalia esse episódio, pelo prisma jornalístico e sociológico, e a necessidade de (re)checagem das informações que serão publicadas em veículos de imprensa ou em pesquisas?
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. / (Foto: Fabio Motta/Estadão)
Sérgio Abranches - Um dos problemas da ausência de parâmetros para o uso de redes sociais é a disseminação de fakes news e desinformação. Esse problema tem duas pontas. De um lado, aumenta significativamente o papel do jornalismo profissional na checagem e na garantia da credibilidade do que circula nas redes. A outra ponta é que, diante do grande volume de falsidades, a checagem põe em risco a própria credibilidade das boas informações que circulam nas redes. A digitalização acelerada da sociedade, que ocorreu de forma crescente nas últimas duas décadas, seu dinamismo é vertiginoso, criando um espaço muito novo em nossa vida coletiva. O crescimento do lado digital, do que chamo de ciberesfera, representa um grande desafio para todos. É um fenômeno complexo desde a origem. Ele abarcou praticamente todas as atividades humanas. Em alguns casos substituindo aquelas que pertenciam ao mundo físico, a socioesfera, em outros casos complementando ou “espelhando” atividades que passam a coexistir nas duas esferas. Formou-se um sistema de relações sociais na ciberesfera que interage de forma complexa com as relações na sociosfera, como se criou, também, um feixe de relações entre elas duas.
"Tudo complexo e muito novo. Ainda não temos “instituições digitais”, o conjunto de regras de relacionamento, de freios e contrapesos, que regulem e estruturem as interações na ciberesfera e entre ela e a socioesfera"
É com base nessas camadas de relações sociais que se dá um novo mundo que os especialistas chamam de figital. Ele nasce da fusão entre o físico e o digital, entre a ciberesfera e a socioesfera e da substituição de formas analógicas por formas digitais. Tudo complexo e muito novo. Ainda não temos “instituições digitais”, o conjunto de regras de relacionamento, de freios e contrapesos, que regulem e estruturem as interações na ciberesfera e entre ela e a socioesfera. Se fizermos um paralelo com a formação da sociedade moderna, poderíamos dizer que a ciberesfera ainda está no estágio do poder privado. As regras que regulam minimamente as relações são dadas pelas plataformas, Twitter, Youtube, Instagram, Facebook. As empresas, como a Apple adicionam protocolos de segurança e privacidade, a seus apps e aparelhos, que regulam o rastreamento, o uso de informações e, aparentemente, protegem a privacidade de seus usuários. Mas, não temos uma governança digital, que teria que ser um regime de governança sem governo e sem estado. Seria impensável um governo da ciberesfera ou um “estado digital”— que não se confunde com o “estado digitalizado”, que vem por aí. A ciberesfera é global, planetária. Por isso não acredito que a regulação por estados nacionais, pensada no plano analógico, vá funcionar. Precisamos de regras de transição, até que se formem as instituições da ciberesfera. Será um período de aprendizado e de tentativa e erro.
Edmundo Siqueira - Vivemos em tempos de pós-verdade. O termo, escolhido como a palavra do ano de 2016, segundo o Dicionário Oxford, tem uma definição simples, que é a relativização do que é verdadeiro, onde não seria mais preciso comprovar o que se é dito. Porém a manipulação do que é ou não real, não é recente. Joseph Goebbels, ministro da propaganda na Alemanha Nazista, já dizia que "uma mentira dita mil vezes torna-se verdade". Nos veículos de comunicação de massa, historicamente, as mentiras sempre estiveram presente. Com a internet, as pessoas, qualquer uma, podem se tornar um propagador de notícias — falsas ou não. O conceito de mentira, ou fake news, mudou com o tempo, ou deixamos de ter um "monopólio da mentira"?
Sérgio Abranches - Há dois modos de encarar essa questão da “verdade” e da “falsidade” nas redes. A mais simples e comum, é a que adotamos usualmente, que parte da percepção habitual e mais consensual de “verdade” para definir a informação “falsa”. Às vezes, eu diria na maioria dos casos, de fake news, foto e vídeomontagens, a avaliação é direta e inequívoca. Mas, aumenta a quantidade de questões que não são tão simples: de conceitos como “cura”, “livre” e de situações para as quais caberia mais de uma interpretação. Aí estamos diante de casos em que as verdades são provisórias, hipóteses que ainda não foram rejeitadas. É situação comum no trabalho científico. Não há verdades absolutas, toda verdade é objeto de ceticismo e submetida a provas recorrentes e, eventualmente, submetidas por uma nova “verdade”. O cientista vive em um mundo de hipóteses, não de verdades. Neste plano, as verdades “certas” fazem parte do mundo da fé. O fato é que a realidade sempre foi relativa. No mundo social, além de termos “verdades provisórias” que nos são dadas a conhecer pela ciência; temos a verdade factual, que nos é dada pelo jornalismo, por exemplo, e ainda lidamos com a natureza histórica das verdades; muito do que era verdade na Idade Média, foi desmentido pelo Iluminismo. Várias verdades do século XX, foram superadas no século atual.
Ou seja, muitas das verdades nas quais acreditamos são relativas. Com essa relativização da verdade factual, pela capacidade de dar aparência de verdade às mentiras que circulam nas redes, nós temos que nos comportar como se fôssemos cientistas, checando, rechecando, duvidando de tudo que circula e submetendo tudo a testes de veracidade. As tecnologias para fazer isso estão se desenvolvendo tão rapidamente quanto a capacidade de circular fake news com aparência de verdade, formatadas como informações verdadeiras. Creio que a referência a Goebbels se encaixa perfeitamente em comportamentos políticos, como os de Trump e de Bolsonaro, que copiaram descaradamente as técnicas desenvolvidas pelo chefe da propaganda nazista. Escrevi sobre isso aqui e aqui. 
Edmundo Siqueira - Embora a Internet não seja a causa do problema, é parte fundamental do que enfrentamos contemporaneamente nesse assunto. Apesar de dotar o indivíduo de seu próprio espaço, privatizou, de certo modo, a Ágora, a Praça Pública, que hoje chamamos hoje de Facebook, Instagram e Twitter. As pessoas encontraram outras que pensam e veem o mundo da mesma forma, trazendo um viés de confirmação, com noção de pertencimento e fortalecendo crenças. Se fizermos um resgate histórico, a imprensa de Johann Gutenberg, criada no século XVI, mudou a forma de leitura das pessoas, trazendo uma circulação de ideias em escala assustadora para a época, gerando confusão e excesso de informação, sendo muitas longe de ser exatamente uma verdade. Seria um processo parecido ao que vivemos hoje? Você acredita que esse processo atual é auto-depurável?
"O fato é que a realidade sempre foi relativa. No mundo social, além de termos “verdades provisórias” que nos são dadas a conhecer pela ciência; temos a verdade factual, que nos é dada pelo jornalismo, por exemplo, e ainda lidamos com a natureza histórica das verdades; muito do que era verdade na Idade Média, foi desmentido pelo Iluminismo. Várias verdades do século XX, foram superadas no século atual. Ou seja, muitas das verdades nas quais acreditamos são relativas"
Sérgio Abranches - Na minha visão, são duas questões distintas e que se relacionam. De um lado, a conversação pública continua a se dar e com vantagens em relação a qualquer experiência que se tentou na sociedade analógica; há, na ciberesfera um espaço coletivo, de reunião e debates, de troca democrática de ideias e informações, de divulgação científica e de expertise profissional em todos os campos, troca cultural, que tem enorme valor. De outro, há também a formação de identidades grupais, com alto grau de comunalidade de valores e autoalimentadas, que se isolam desse espaço público. Aí se dá uma polarização que interfere danosamente na conversa que se desenvolve no espaço coletivo, ela alimenta discursos de ódio e é antidemocrática. A privatização das plataformas cria algumas dificuldades na consolidação desse espaço coletivo, de natureza pública, é claro. O ideal é que se desenvolvesse uma plataforma-ágora, autogovernada, para abrigar essa conversação democrática aberta. Eu teria preferência por essa via à da regulação analógica que estados nacionais vem tentando e que acho que não funcionarão por muito tempo. A rede é mais dinâmica do que qualquer ação no campo analógico.
Edmundo Siqueira - Sérgio, a democracia é um sistema muito recente, no contexto histórico mundial, no Brasil ainda mais. Baseia-se em alguns princípios, como imprensa livre, liberdade de expressão, transparência e participação social. Hannah Arendt, filósofa política alemã afirmou que "tanto as mentiras quanto os segredos corrompem o espaço público". Você é "pai" do termo "presidencialismo de coalizão", que em um resumo simplista diz respeito aos arranjos necessários que o presidente da República deve fazer com as diversas correntes do Congresso, sem as quais não governa. O impeachment de Dilma aconteceu em um cenário de total incapacidade política do governo, por características pessoais da ex-presidente, mas também por ela ter vivido uma realidade de realinhamento partidário que complicou ainda mais o nosso presidencialismo de coalizão. A história não aceita "se", mas caso ela não fosse impichada, você acredita que alguém como Bolsonaro, de inspiração fascista, estaria no poder?
Sérgio Abranches - É difícil dizer com certeza, mas acho que o ambiente de polarização existiria independentemente de haver impeachment ou não. De fato, o desalinhamento partidário decorrente da hiperfragmentação já estava avançado. Em 2018, atingiu um auge que torna qualquer coalizão de governo implausível. Ele comprometeu seriamente a capacidade governativa da presidente Dilma. Porém, havia uma radicalização das bases petistas com a Lava Jato, que se acirrou com o impeachment e, de outro, um claro despertar de um espírito de ultradireita, racista, intolerante, misturado à expansão de certas igrejas evangélicas neopentecostais, radicais e de visão muito estreita. Em outras palavras, polarização na política e na religião. No caso do petismo radical, ela estava contida em seu próprio campo. No caso das religiões, elas extravasavam para a política, para a ultradireita. Nesse caldo de polarização e ódio, o surgimento de alguém como Bolsonaro fazia todo sentido. Não era previsível pelos modelos de análise em uso no período pré-eleitoral, que se baseava no padrão eleitoral que existiu entre 1994 e 2018. Mas, hoje ele pode ser explicado. Do mesmo modo que se pode fazer claramente a diferença entre o polo da esquerda, que se manteve no perímetro da democracia, embora com atitudes agressivas e intolerantes, mas não representou ameaça às instituições; e o polo da ultradireita, que agrediu, desde o início, a institucionalidade democrática.
Ex-presidente Dilma Rousseff (PT), sofreu impeachment em 2016.
Ex-presidente Dilma Rousseff (PT), sofreu impeachment em 2016. / REUTERS
 "Havia uma radicalização das bases petistas com a Lava Jato, que se acirrou com o impeachment e, de outro, um claro despertar de um espírito de ultradireita, racista, intolerante, misturado à expansão de certas igrejas evangélicas neopentecostais, radicais e de visão muito estreita"
Edmundo Siqueira - Na noite de 27 de fevereiro de 1933, um incêndio no Reichstag, em Berlim, destruiu o Parlamento alemão. Foi um duro golpe na democracia alemã e levou Hitler a consolidar seu poder e toda sua ânsia ditatorial. Em janeiro deste ano, o Capitólio americano foi invadido por uma turba furiosa, instigada pelo próprio presidente dos EUA e grupos supremacistas. No próximo dia 7 de setembro, estão sendo organizadas — e estimuladas pelo Governo — no Brasil manifestações com pautas golpistas e possivelmente com ampla participação de PM´s. Os EUA conseguiram conter seu 'Reichstag'. Caso a próxima comemoração da independência do Brasil conte com atos radicais e violentos, e Bolsonaro esteja realmente na condução dos protestos, contra as instituições democráticas, conseguiremos conter o nosso 'Reichstag'? Dependeria exclusivamente do Exército?
Em 1933, o edifício do Reichstag foi vítima de um suspeitoso incêndio do qual acusaram de autoria um suposto agitador comunista holandês, fazendo com que os nazistas saíssem completamente beneficiados. Hitler, aproveitando a situação, aboliu a maioria dos direitos fundamentais da Constituição de 1919 da República de Weimar.
Em 1933, o edifício do Reichstag foi vítima de um suspeitoso incêndio do qual acusaram de autoria um suposto agitador comunista holandês, fazendo com que os nazistas saíssem completamente beneficiados. Hitler, aproveitando a situação, aboliu a maioria dos direitos fundamentais da Constituição de 1919 da República de Weimar.
 
Sérgio Abranches - Tenho relembrado o episódio do Reichstag com frequência, quando analiso a investida antidemocrática dessa extrema direita de Trump e Bolsonaro. Mas, não acho que o seu equivalente no Brasil se dará no 7/9. Bolsonaro está coletando pretextos para criar uma situação similar à do Capitólio, após ser derrotado nas eleições. Já estive mais pessimista com relação à possibilidade de sucesso de uma tentativa no “modelo Reichstag” por Bolsonaro. As últimas atitudes do Supremo Tribunal Federal e do Senado reativaram os mecanismos de freios e contrapesos indispensáveis à defesa da democracia. Antes, havia uma certa inércia das instituições e Bolsonaro já havia neutralizado o outro mecanismo de freio e contrapeso, o Ministério Público, com a nomeação de Augusto Aras. A Câmara, com a ação combinada de Arthur Lira, do centrão e dos evangélicos também está relativamente neutralizada na função de fiscalização do Executivo e de freio e contrapeso aos abusos de autoridade do presidente.
Edmundo Siqueira - Abranches, em seu livro "O Tempo dos Governantes Incidentais" você trata os políticos que chegaram ao poder por acidente, por uma imprevisibilidade. Não apenas no Brasil, mas nos EUA, Hungria, Itália, Polônia e outros, alguns desses "incidentais" venceram eleições atípicas, romperam com padrões partidários e do eleitorado e foram (alguns ainda estão) incapazes de cumprir as promessas. Bolsonaro é um claro exemplo desse tipo de governante. No Rio, Witzel também foi, mas logo foi retirado do poder. Como a democracia pode criar mecanismos de defesa para esse tipo de experiência? O "paradoxo da tolerância" (veja mais aqui), conceito do filósofo Karl Popper, diz que não podemos permitir que intolerantes usem da liberdade democrática para implodir o próprio regime. Mas como em um país de tamanha influência política das Forças Armadas, como o Brasil, poderia criar esses mecanismos?
Sérgio Abranches - A democracia tem uma fragilidade intrínseca, ela tem que ser tolerante com todas as correntes que operam, desde que respeitem suas regras e instituições. Ela nunca desenvolveu mecanismo de proteção a essa “estratégia de cavalo de Tróia”, de agir dentro das regras e usar o processo eleitoral, para chegar ao poder legitimamente e, uma vez lá, desmontar a democracia por dentro. Não creio que existam, sobretudo no caso de governantes incidentais, que saem de eleições atípicas, de rupturas eleitorais, portanto de baixa previsibilidade, defesas que funcionem antes de chegarem ao poder. O caminho é reforçar as instituições de freios e contrapesos, para que possam agir cirurgicamente, no primeiro momento em que o eleito ataque a Constituição e a democracia. O paradoxo da intolerância não tem solução prévia observando-se os métodos democráticos. O que se pode é criar meios para que não haja nenhuma tolerância ou leniência ao primeiro ato ilegal, inconstitucional do governante. Neste quadrante, há o que se pode fazer, desenhando melhor as regras do impeachment e diminuindo a rede de imunidade do presidente da República, criando a possibilidade de que seja processado pela suprema corte sem consulta ao Legislativo nos casos de crimes cometidos no exercício do mandato, que estejam capitulados nos códigos legais. O crime de responsabilidade seguiria sendo julgado pelo Congresso, mas pode ser melhor definido e especificado. Acho inaceitável o grau de discricionariedade dado ao presidente da Câmara dos Deputados no encaminhamento do pedido de impeachment. Não faz sentido democrático algum o grau de poder de decisão monocrática do presidente da Câmara. A desmedida discricionariedade e personalismo da decisão permitiu o mais descarado oportunismo do ex-deputado Eduardo Cunha, no caso do impeachment de Dilma, que beirou a chantagem. Ela é que permite ao presidente atual da Câmara, Arthur Lira, procrastinar a decisão sobre os mais de 100 pedidos de impeachment de Bolsonaro.
Edmundo Siqueira - Para finalizar essa conversa Sérgio, como você avalia a obrigatoriedade do voto no Brasil? Um sistema que permitiria que os cidadãos tenham o poder de escolha sobre ir ou não votar, em uma realidade como a brasileira, de pouquíssimo exercício democrático e baixos índices educacionais, seria mais benéfico, favorecendo o voto ideológico, refletido e consciente (apesar de ser uma generalização do conceito de consciência) de uma elite pensante, ou afetaria a democracia representativa?
 Invasão do Capitólio americano por apoiadores de Trump, contestando a vitória de Joe Biden nas eleições. Quatro pessoas foram mortas e mais de 50 foram presas
Invasão do Capitólio americano por apoiadores de Trump, contestando a vitória de Joe Biden nas eleições. Quatro pessoas foram mortas e mais de 50 foram presas / REUTERS
Sérgio Abranches - Eu sou a favor do voto facultativo. Ele força os partidos e candidatos a mobilizar os cidadãos para comparecerem às eleições. Compreendo e respeito a defesa do voto compulsório, como obrigação da cidadania. Mas preferia que ele fosse exercitado como direito, o que creio poderia conferir maior senso de responsabilidade cívica aos cidadãos. O voto facultativo, entretanto, não se resume a um voto ideológico, ele permite todo tipo de voto, inclusive o voto estratégico, contra o mais indesejável. Pesquisas indicam que a maioria das pessoas vota porque considera importante votar. A compulsoriedade no Brasil é muito frouxa. As sanções são fracas para a maioria e a multa baixa. Eu tenho a convicção, posso estar errado, que hoje, no Brasil, só vota quem quer.
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