A cultura, o teatro, o Arquivo e os Garotinhos
17/12/2021 | 08h27
A primeira vitória política de Anthony Garotinho em Campos foi graças a uma plataforma essencialmente cultural. Eleito prefeito da cidade em outubro de 1988, aos 28 anos, recebera 30% dos votos válidos, desbancando uma oligarquia tradicional da cidade. Em 1983, como um jovem candidato a vereador claramente de esquerda, não venceu. Viria pelo PT. Para ser eleito, se filiou ao PDT, e foi o líder de um movimento que começa com o nome de “Frente Campos”. De 83 a 88 a memória de uma demolição construiu, paradoxalmente, o nome de Garotinho.
Não corro risco em afirmar que Garotinho venceu aquela eleição pelas mãos do “setor cultural” de Campos. Mais especificamente do teatro amador, que no início dos anos 80 fez nascer o “Grupo Abertura”, revelando nomes que ficariam conhecidos da cena política campista. Fernando Leite, Rosinha Garotinho, Sérgio Mendes e o próprio Anthony. Todos foram abrigados no PDT, e queriam lutar contra uma elite campista que eles consideravam atrasada, representada pelo prefeito da ocasião, Zezé Barbosa.
De fato o poder estava concentrado nas mãos de grandes produtores rurais, ligados ao setor sucroalcooleiro, e de comerciantes. Zezé Barbosa acumulava três mandatos. Carregava consigo o perfil do coronelismo típico, usando o poder econômico e exercendo o poder local de forma personalista e autoritária. Mas o Brasil estava mudando. A ditadura militar instalada em 1964 ia aos poucos cedendo espaço para a abertura democrática. Uma “Nova República” se instalava nos anos 1980. Mas não sem sangue, suor e lágrimas.
O teatro era o palco comum de engajamento político contra a ditadura, não só em Campos, como em várias partes do país. As peças teatrais eram a forma de criticar, com arte, o regime. A ruptura para um modelo mais democrático e moderno em Campos foi proposto pelas mãos de um grupo de teatro amador, que trazia no título de uma peça, escrita por Garotinho e Fernando Leite, em 1983, o recado que queria passar: “Precisa Acontecer Alguma Coisa”. E aconteceu.
O Trianon — de antes e de hoje — como elemento de poder
A economia açucareira sustentava uma identidade campista elitizada que passava tardes no Café High-Life, passeava pela Praça São Salvador, sabia das notícias pelo largo da imprensa e Boulevard do Comércio, — e ia ao teatro. O Orion e o Trianon traziam espetáculos de ópera, canto lírico e estavam entre os grandes espaços culturais do país. Ao longo do século XX o teatro era um elemento central que identificava uma elite financeira e intelectual da cidade.
Até que em 26 de junho de 1975 o Teatro Trianon veio ao chão. Um dos mais belos espaços de cultura do Brasil estava destruído para dar lugar a uma agência bancária. Demolido com a cumplicidade e “insensibilidade política e cultural” do prefeito Zezé Barbosa.
Antigo Trianon
Antigo Trianon
Aquilo teria afetado muito, e não apenas a elite financeira de Campos. Os escombros do Trianon passaram a ser um símbolo político que fortaleceria a oposição, que lutava conta o sucateamento da cultura e pela elitização dos espaços. E escandalizou a intelectualidade da época.
O grupo que simbolizava a cultura popular e buscava a modernização, pela via do progressismo, estava no “Abertura”, de Garotinho. Zezé Barbosa carregaria uma culpa histórica pela demolição de um símbolo campista, o que certamente levou a um sentimento crescente de renovação. E erguer um novo Trianon estava entre as propostas desse sentimento.
O início da “nova república campista” com Garotinho
A “Frente Campos” passa a se chamar “Muda Campos”, unindo o teatro amador, professores, intelectuais e a classe média campista em torno do seu projeto político. Anthony Garotinho, pelo PDT, coligado com partidos de esquerda, escolhe um representante da classe médica para ser seu vice, e de quebra leva o PSB. Adilson Sarmet traria à chapa a segurança que Garotinho precisava para romper o preconceito com o progressismo, existente ainda hoje em uma cidade conservadora com Campos.
Garotinho e Rosinha nas primeiras campanhas, em Campos. Foto: Acervo O Globo
Garotinho e Rosinha nas primeiras campanhas, em Campos. Foto: Acervo O Globo
Garotinho, de forma muito habilidosa, traz para a campanha os elementos que o fizeram vencer. Todos, satélites de um projeto de cultura popular. A praça, o povo, o teatro, a rua, o carnaval. Garotinho estava prometendo democracia, cultura e participação popular, e atendia a elite financeira prometendo retomar a “Campos do Trianon”. E ganhou a disputa.
Para entender melhor essa ruptura, trago à conversa o ecohistoriador Arthur Soffiati, que estava lá, e viveu aquele momento histórico de perto.
“O governo de Zezé não se interessava por cultura. Eu trabalhei 18 meses com ele e posso afirmar isso. Contudo, ele contou com dois nomes fundamentais para a cultura: Amaro Prata Tavares e Diva Abreu, que fizeram o possível pela cultura. Eu diria que trabalhei 18 meses na estrutura da cultura municipal e dela saiu apenas a Casa de Cultura José Cândido de Carvalho e o Prêmio Alberto Ribeiro Lamego. Tudo foi esquecido e perdido. Ainda bem que guardei cópia. Pretendia-se democratizar a cultura, atendendo todos os setores da produção e horizontalizá-la, criando casas de cultura no interior”, disse Soffiati.
A estratégia estava certa. A modernização, descentralização e abertura popular da cultura, e da identidade campista, já estavam em curso pelas mãos de gente competente e compromissada, como Diva e Arthur. Mas, a insensibilidade do prefeito não permitiu que acontecesse, e seu atraso custou a sua cadeira.
O ‘Garotinho’ de hoje
Não corro risco  (novamente) de errar, em afirmar que Garotinho hoje é o maior político de Campos desde Nilo Peçanha. Após seu primeiro mandato como prefeito, foi Deputado Federal eleito com a maior votação já registrada para o cargo no Estado do Rio, governador, e recebeu mais de 15 milhões de votos para presidente. Não é uma questão de avaliação qualitativa do político Garotinho; são os fatos.
Em Campos, Garotinho deixou sucessores, produziu aliados e muitos inimigos. Dois de seus filhos estão na vida política com relativo sucesso. Clarissa, atualmente Deputada Federal, e Wladimir, que segue o legado como prefeito.
Wladimir Garotinho, por ironia ou consequência do destino, venceu o neto de Zezé Barbosa, Rafael Diniz. A cultura não estava no centro das discussões. A economia falava mais alto. Mas alguns centros culturais estavam em destaque, como a promessa não cumprida de Diniz em entregar o Palácio da Cultura. Nas palavras de Soffiati, Rafael “nada fez; pelo contrário, abandou a cultura em nome do saneamento financeiro”. O que confirma o que costuma dizer o jornalista Aluysio Abreu Barbosa: “cultura não elege, mas retira voto”.
Arquivo, ‘Trianon’ de hoje
O teatro, por infelicidade do destino, deixou de estar no centro da cultura e identidade de Campos. Embora o “novo Trianon” tenha sido erguido, com o depósito de um milhão de dólares conseguido por garotinho em 1989 junto ao banco que “demoliu” o Trianon antigo, ele pouco recebe espetáculos.
Talvez o Trianon de hoje seja o Arquivo Público. Instalado na construção mais antiga de Campos, o Solar do Colégio, na baixada, vem recebendo atenção da sociedade campista e da intelectualidade. Instrumento essencial para salvaguardar a memória e história de toda região, o Arquivo se firmou como o principal equipamento cultural da cidade.
Fundado 2002, por meio de uma parceria com a Uenf, supervisionada pelo Arquivo do Estado (APERJ), Lei Municipal do vereador Edson Batista e viabilizada pelo então governador Anthony Garotinho, o Arquivo de Campos foi considerado o 5º melhor do país, e vem recebendo atenção do meio acadêmico e da imprensa campista.
A exposição que vem recebendo e o trabalho de excelência desenvolvido pela equipe da instituição, fizeram com que o atual prefeito Wladimir o escolhesse para receber 20 milhões (Folha1) em um acordo com a Uenf e Alerj (pelas mãos do deputado Bruno Dauaire e do presidente da Casa, André Ceciliano). O dinheiro será utilizado no restauro do Solar e consequente uso do espaço pelo Arquivo, com instalação de projeto para digitalização do acervo, e de acessibilidade à sociedade campista.
Wladimir talvez tenha cumprido a missão e desejo que todo pai responsável deseja ao filho. Pelo menos no “setor cultual” vem demonstrando que superará o pai, que teve recursos abundantes pelos tempos áureos dos royalties. Com uma “tacada só” deverá não apenas impedir que o Arquivo viesse ao chão, como entrega-lo em plenas funções a Campos, e por muito tempo, sem gastar recursos da municipalidade.
Muito ainda precisa ser feito, na cultura, na economia, no social, na infraestrutura, e tantos outros setores do município. Muito poderia ter sido feito em governos anteriores. Mas superar velhas oligarquias é um passo importante e essencial, mesmo (ou principalmente) se elas forem próximas o bastante para virem de um pai. Que seja novamente pela cultura!
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Sobre o autor

Edmundo Siqueira

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