Drummond, o blogueiro do papel
19/07/2013 | 04h30

Relendo com mais atenção o livro O Observador no Escritório, de Carlos Drummond de Andrade, percebo agora que o poeta modernista era mais à frente de seu tempo do que supunha minha vã filosofia. O livro é a compilação de um diário de anotações que Drummond fazia com grande constância. Lendo-o atualmente, sinto nos textos alguma semelhança muito próxima do que são hoje os textos dos blogs que misturam notícias e acontecidos do cotidiano pessoal de quem escreve. Interessante observar que "O Observador no Escritório" reúne anotações, contos e crônicas escritas por Drummond sobre os aspectos da vida política e literária brasileira no período de 1943 a 1977 — algumas publicadas no Jornal do Brasil, entre 1980 e 1981. Por isso, acompanhamos os pensamentos e opiniões do poeta durante todo este tempo de registros, não só observando de seu escritório, mas também vibrando e sofrendo com as coisas de seu tempo. A que interessar possa, seguem abaixo alguns trechos do livro, que pode facilmente ser encontrado em qualquer livraria ou sebo. Nesta primeira postagem, quer dizer, anotação, fica visível, durante a queda de Jango, Drummond anseia por informações precisas, já que as notícias, como nos tempos atuais de internet, corriam (bem mais devagar, é verdade) desconexas.  

1964

Queda de Jango

Abril, 1 — E, de repente, foi-se o Governo Goulart, levando consigo o Comando Geral dos Trabalhadores. Em menos de dois dias, tudo se esfarelou. O Presidente da República, tão seguro de si ao falar aos "senhores sargentos", fugiu de avião para lugar ainda não sabido. Não tinha a força que pensava — e que outros pensavam que ele tivesse.

O dia de ontem foi de tensão e boataria, até que se positivou, entre tarde e noite, a notícia da sublevação da tropa federal em Minas, com o Governador Magalhães Pinto chefiando o movimento. A adesão de São Paulo só foi conhecida pela madrugada. Passei quase toda a noite colado ao radinho transistor, e pedindo e recebendo algumas vezes notícias telefônicas, fornecidas pelo bem informado Otto Lara Resende. Preocupava a situação no Palácio Guanabara: Carlos Lacerda entrincheirado mas também encurralado ali.

Hoje, depois da fala de Lacerda pela Rádio Roquette Pinto, acabaram as notícias, salvo a propaganda contínua, enfadonha, do Governo Jango em sua "cadeia nacional da legalidade". À tarde, informado de que alguma coisa se passava no Forte de Copacabana, fui conferir na praia. Carlos Heitor Cony, meu colega no Correio da Manhã, me pôs a par dos acontecimentos. O Forte estava ocupado por um grupo militar contrário a Jango. Soldados e civis (estes, oficiais da Marinha à paisana, segundo Cony) foram afastando os curiosos que se aglomeravam junto ao Forte. Há poucas dúvidas sobre a derrota de Jango.

Eu voltava para casa quando se ouviram estampidos, houve um corre-corre, e eis que das janelas dos edifícios gente sacode lenços, panos de prato, até lençóis, enquanto outra chuva, esta de papel picado, cai sobre o asfalto. O rádio espalhara a notícia, transmitida por Lacerda: Jango deu o fora. Volto à praia. Gente cantando o Hino Nacional, xingando Brizola em slogan improvisado. Sensação geral de alívio.

Abril, 13 — Baixado Ato Institucional, que atenta rudemente contra o sistema democrático. O Congresso, já tão inexpressivo, passa a ser uma pobre coisa tutelada. Vamos ver o que será das liberdades públicas.

Maio, 3 — Incrível. Prisão de Carlos Ribeiro, o "bom mercador de livros", amigo de todos, sob suspeita de quê? De tramar a derrubada do Marechal Castelo Branco? Encontro-o na Travessa do Ouvidor, levado por um tira jovem, que mais parece poeta debutante, e por Ascendino Leite, que o iria acompanhar ao DOPS como amigo e pessoa insuspeita ao Governo.

Junho, 22 — Desagradável chamada para depor no inquérito administrativo da Rádio Ministério da Educação, em torno de alegadas "atividades subversivas" da antiga diretora, Maria leda Linhares. Queriam saber o motivo do meu afastamento da Rádio, naturalmente para fazer carga contra ela, que de tão atacada chegou ao quase desespero. Respondi que meu afastamento resultou de solicitação de Simeão Leal, Diretor do Serviço de Documentação do MEC, desejoso de contar comigo no seu trabalho. Atividades subversivas na Rádio, eu as ignorava completamente. Os inquéritos desse tipo traduzem mais o espírito de vingança do que o de justiça. Julho, 21 — Pela segunda vez na sede do Ministério da Educação, para depor no inquérito sobre a Rádio MEC. Às mesmas perguntas dou as mesmas respostas. Não sei de atividades subversivas da ex-diretora; nunca tive com ela o menor incidente; pelo contrário, sempre me distinguia em serviço.

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Sobre o autor

Alexandre Bastos

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