Julho, um mês comum no verão francês
Edmundo Siqueira 16/07/2022 13:18 - Atualizado em 16/07/2022 13:25
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Era verão na França. Os parisienses estavam mais agitados que o normal, já fazia mais de um mês. Na manhã de 13 de julho, bem cedo, Élie já se arrumava. Participara ativamente dos movimentos da Assembleia Nacional, desde sua criação no dia 17 do mês anterior. Se orgulhava disso. Sentia que fazia parte de algo maior; e faria, de fato.
Élie era um francês comum dos “comuns”. “Gente do Terceiro Estado”, como chamavam alguns representantes da nobreza, com visível desprezo. Naqueles tempos finais do século XVIII, a França se dividia formalmente — para além das separações invisíveis provocadas pela desigualdade — em categorias.
Havia a nobreza e o clero; e o povo. Esse último mais numeroso, mais carregado de dor e bem mais revoltado àquela altura. E mais organizados, apesar de ainda peões — os que andam a pé desde que o mundo é mundo, por não ter dinheiro para compra um cavalo, ou os que valem menos no tabuleiro de xadrez da humanidade.
Povo chamado também de sans-culottes, “sem calção”. Nobreza e da burguesia usavam calções, classe trabalhadora, não.
Os que conseguiram se organizar foram chamados de “Terceiro Estado”. Élie era uma das lideranças de lá. Pequeno burguês, tinha um comércio perto da Praça Concorde. Ficou animado com a criação da Assembleia, que acabou com o voto por estamento e mudou significativamente o sistema político da França monarquista. Ficou estabelecido que o voto era das pessoas, não da categoria, que sempre impunha derrotas ao Terceiro Estado.
Clero e nobreza tentaram de tudo para que a camada popular não conseguisse o voto por cabeça, que representava 95% da população e ia causar sérios problemas aos nobres. Mas não houve acordo, a Assembleia estava formada. O reinado de Luís XVI já durava mais de 30 anos e crises econômicas se sucediam. Já quase não era possível compra o pão pelo seu preço, havia escassez generalizada de comida com graves problemas nas colheitas.
Para os burgueses, o que incomodava era o sistema excessivamente regressivo de impostos que Luís XVI implantara. Proporcionalmente, eles arcavam com altíssimos tributos em relação aos nobres. Os sacerdotes já não pagavam mesmo. Fome generalizada e burguesia perdendo dinheiro a cada dia, a terceira camada se autoproclamava agora "Assembleia Nacional", em junho de 1789.
“Finalmente! ”, disse Élie quando evoluíram ainda mais e passaram a ser uma “Assembleia Constituinte”, em 9 do mês seguinte. Queriam criar uma nova Constituição, para desespero do Rei. O Terceiro Estado era composto por gente comum como Élie. Ia de artesãos até médicos e advogados. Mas, apesar de comuns, decidiram se armar contra a tirania.
O dia escolhido foi 14 de julho. Dia encoberto e frio, apesar de ser verão. As ruas estavam em um silêncio incomum. Tudo parecia mais estranho. O silêncio foi interrompido por um grupo grande de homen, mulheres e até algumas crianças que percorriam a Rue de Grenelle em velocidade, com o corpo arqueado e com porretes e facões nas mãos. Alguns com armamento pesado para a época. As janelas se fechavam rapidamente com a passagem dos partidários do Terceiro Estado. Os que não lutariam, se protegiam. Todos do povo saibam o que ia acontecer naquele dia.
A tensão ficava maior a cada passo que o grupo dava a caminho do Palácio dos Inválidos — o Hôtel des Invalides. Já bem próximo, avistaram outros dois grupos que chegavam em uma ação orquestrada. Invadiram o Palácio com facilidade, mas esse era apenas o começo. Nos Inválidos eles conseguiram o que precisava para chegar ao alvo principal do dia: armas e munições. Lá estava uma espécie de paiol do exército francês. Depois da invasão, municiados e com canhões e mosquetes em punho, estariam prontos para seguir para a Bastilha.
A Bastilha era uma fortificação simbólica para eles. Uma enorme prisão que Luís XVI usava para aterrorizar seus opositores. Naquele dia tinham apenas sete detentos nas masmorras. Mas não era a soltura deles o objetivo ali. A Bastilha, além de todo simbolismo, escondia 250 barris de pólvora, que seriam cruciais para guerra que começava ali, entre os monarquistas e revolucionários.
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Os grupos que vinham dos Inválidos encontraram mais outros tantos e as armas eram compartilhadas entre eles. Ia ser uma batalha mais difícil que a tomada do hotel, minutos antes, mas não era para ser um banho de sangue como foi. O comandante da Bastilha era um homem que se orgulhava por sua coragem e condecorações militares. O marquês de Launay decidiu resistir e a Bastilha virou uma guerra, que custou uma centena de vidas — inclusive a dele.
Com a Bastilha tomada, Èlie e seus companheiros mais fiéis, Hullin e Maillard saltavam para ponte e ordenavam intrepidamente que o último protão fosse aberto; o inimigo obedecia. Os cidadãos queriam entrar, os sitiados se defendiam, e todos que se opunham a passagem eram decapitados¹.
A Revolução Francesa teve seu início naquele 14 de julho. Alguns dias depois, o principal jornal de Paris noticiava a tomada da Bastilha, inciando assim: "O sol nasceu às 4h08 daquela terça-feira, dia 14 de julho de 1789, e, apesar da luminosidade, a cidade anunciava um dia encoberto e frio naquele verão, no qual os termômetros marcavam 12 graus pouco antes do meio-dia²”.
Um ciclo de otimismo se instalava em toda França. As classes oprimidas finalmente eram ouvidas, uma revolução real era empreendida. Inspirados na Revolução Americana de alguns anos antes, e na declaração de independência dos Estados Unidos, aprovam a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que garantiam a liberdade de expressão: todos podem falar, escrever e registrar livremente seus pensamentos.
Mas a Revolução Francesa se transformou em terror. Os valores de liberté, égalité e fraternité logo se transformaram num ciclo de violência e no Tribunal Revolucionário que instaurou o “Reino de Terror”. A guilhotina passou a ser a solução.
Um irlandês, que depois ficou conhecido como o criador da filosofia conservadora inglesa, via um movimento legítimo nos desdobramentos políticos que chegaram na criação da Assembleia Nacional Constituinte. Mas Edmund Burke percebeu que na verdade não ouve a transição da soberania para o povo. O Terror mancharia qualquer expectativa de uma transição de poder das mãos absolutistas para a vontade popular.
Gente comum como Élie, concordava com Edmund segundos antes da lâmina atingir o pescoço. Levantar-se contra a tirania não é, necessariamente, um ato revolucionário. Também é heroico mudar de opinião e usar o voto como arma. Sangue foi derramado antes para que isso seja possível, e para que não seja preciso ser derramado hoje. Mas não significa que se deve tolerar os intolerantes. Mesmo com a consciência que guilhotinas ainda são usadas por quem cultua a morte como ideal político.
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¹A Revolução Francesa, 1789-1799, Por Michel Vovelle e Mariana Echalar.
²Journal de Paris, dia 16 de julho de 1789.

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