Roberto Dutra - Pra onde vai a Alemanha?
- Atualizado em 22/02/2025 06:17
Roberto Dutra
Roberto Dutra / Sergio Amaral/El País
Amanhã, dia 23 de fevereiro, os alemães vão às urnas para escolher o novo parlamento, do qual deverá sair um novo governo para suceder a fracassa “coalizão semáforo” formada por socialdemocratas, liberais e verdes. Os desafios da eleição do próximo domingo podem ser interpretados como eventos e padrões de uma crise política circundada e amplificada por outras crises, como a guerra na Ucrânia, a estagnação econômica, os problemas com o fluxo descontrolado de pessoas que pedem asilo no país, a reorganização geopolítica global e, não menos importante, uma crise da identidade nacional da Alemanha enquanto suporte europeu dos ditos “valores liberais e democráticos ocidentais” na aliança transatlântica com os EUA. Trata-se de uma policrise, uma crise multidimensional que envolve vários sistemas sociais de modo simultâneo e que corrói rapidamente uma série de certezas e pressupostos que orientaram a vida do povo alemão por algumas décadas desde a reconstrução do país a partir do final da segunda guerra mundial.
Não tenho a pretensão de analisar com profundidade esta situação complexa cheia de incertezas. Apenas desejo traçar as linhas gerais dos desafios que a política alemã não poderá evitar, sob pena de aprofundar ainda mais o processo de deslegitimação do status quo político e de fortalecer a direita radical, representada pelo partido Alternativa para a Alemanha (AfD). O conceito de policrise, como nos ensina Edgard Morin, descreve uma situação complexa de crises múltiplas, interconectadas e que tendem a se amplificar mutuamente. No entanto, como também nos ensina o sociólogo Niklas Luhmann, embora as crises em sociedades hipercomplexas estejam interconectadas em sua emergência e amplificação, a sociedade não dispõe de um sistema central capaz de criar e coordenar com segurança as múltiplas soluções para os diferentes problemas.
O fato da política não ser o centro absoluto da sociedade não significa que ela não consiga coordenar, de modo suficiente para resolver problemas importantes, o funcionamento da economia, do ensino e dos demais sistemas envolvidos na produção das policrises. Significa apenas que ela precisa contar com um grau significativo de imprevisibilidade, ou seja, que políticas públicas podem sempre falhar. A política consegue realizar uma coordenação “contextual”, no tempo e no espaço, dos demais sistemas sociais, mas pode perder esta capacidade em determinados contextos. O problema da política alemã é que ela tem falhado sistemática e continuamente em várias áreas. O longo governo de Angela Merkel não foi capaz de preparar o país para um futuro sem o estrondoso sucesso do modelo fordista de exportações que garantiu o bem-estar dos alemães por décadas a fio. A produtividade do trabalho e a inovação tecnológica estagnaram. O exemplo mais significativo é que hoje, até mesmo na Europa, os carros elétricos chineses deixam os carros alemães no chinelo. As consequências sociais desta decadência econômica são evidentes: retração drástica dos empregos industriais de qualidade, aumento da pobreza e da desigualdade econômica, aniquilamento das chances e perspectivas de ascensão social para as maiorias. É nesta situação de estagnação econômica, desintegração social e insegurança sobre o futuro que o tema da imigração ganha nova relevância política.
Durante muito tempo, os partidos de esquerda negaram as consequências adversas dos fluxos descontrolados de refugiados entrando no país, quase sempre ocasionados por guerras criadas pelos EUA, e recentemente pela guerra da Rússia contra a Ucrânia. Mas estas consequências são visíveis nas escolas e nos bairros de todas as cidades que recebem grande fluxo de pessoas, embora sejam ignoradas pelos progressistas boêmios de Berlin e Hamburgo. A guerra na Ucrânia é outra crise importante para a política alemã. Como as demais, ela não pode ser entendida isoladamente. Mas no seu caso, há a especificidade de que seus efeitos foram importados muito gentilmente pelo governo de Olaf Scholz, com apoio não apenas dos governistas verdes e liberais, mas também do principal partido de oposição, a União Democrática Cristã, líder das pesquisas para domingo, partido do provável novo chanceler Friedrich Merz. A Alemanha decidiu romper o comércio de gás com a Rússia e assim agravar a tendência de aumento da energia, afetando não só a vida das pessoas comuns, como também sua competitividade industrial. Até o começo do ano, a direita radical alemã parecia estar isolada em sua posição pró-negociação com a Rússia. Todos os demais partidos, acreditando na duração eterna da “aliança transatlântica” com os EUA, acusavam a AfD de ser uma sucursal de Putin na Alemanha.
Mas com a volta de Trump tudo mudou. Agora não só a negociação de paz entrou na pauta, como entrou para isolar politicamente e geopoliticamente seus antigos opositores na Alemanha e na Europa. A crença na perenidade da “aliança transatlântica de valores” como suporte de uma “ordem global baseada em regras”, na qual a Europa tinha sua posição de centralidade garantida pela aliança, está sendo atacada pelo seu principal parceiro. As negociações entre Trump e Putin sobre o fim da guerra na Ucrânia, iniciadas esta semana na Arábia Saudita com a exclusão sumária dos europeus enquanto interlocutores, assumem um formato no qual a crescente periferização geopolítica da Europa e da Alemanha estão claramente indicadas.
Ao sistema político alemão só resta processar esta situação “caótica” para os padrões anteriores e tentar criar e oferecer novas alternativas para lidar com as múltiplas crises que afetam o país. Da perspectiva política a crise é tanto de “demanda” quanto de “oferta”, tanto de input como de output: os partidos e lideranças atuais não conseguem mais, como era o caso antes, obter o apoio de grandes maiorias que enxerguem nestes partidos e lideranças a representação de seus interesses e visões de mundo, e isto porque não conseguem também – inclusive a direita radical que se identifica pela alcunha de Alternativa para a Alemanha – ofertar programas distintos, com linhas de ação e políticas públicas capazes de se diferenciar nas eleições e nos governos e assim ganhar a confiança dos eleitores. O agravante é que a crise política envolve não só as múltiplas crises antes mencionadas, mas também o desafio inadiável de reconstruir a identidade nacional alemã depois do fim da era do consenso transatlântico e da política domesticada em torno dos valores liberais e democráticos.

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