Arthur Soffiati - Rua Ceriba 130
Arthur Soffiati 06/08/2022 08:51 - Atualizado em 06/08/2022 08:51
Frequentemente, encontro, perto da minha casa, pessoas que passam o dia sentadas em bancos na calçada sem fazer nada. Reflito sobre o que pensam na sua inatividade física. Alguma coisa devem pensar, mas não acredito que seja sobre sua história de vida. Muito menos sobre o tempo anterior a seu nascimento. Nosso mundo nos ensinou a pensar no nada ou pensar de forma fragmentada no aqui e no agora. Somos triturados pelo nosso trabalho e depois jogados fora. Ficamos nessa vida-desvida até a morte. Essa observação vale para simples trabalhadores, empresários, políticos e acadêmicos. Quando deixam de trabalhar, acabam desaparecendo para voltar como notícia nos obituários, se tanto.
Preciso pensar e lembrar da minha história dentro da história da humanidade e do planeta. Preciso lembrar para não esquecer, pois sinto que minha memória pode desaparecer progressiva ou repentinamente. Vendo minhas duas netas de onze anos brincando, penso na vida delas e na minha. Onde eu estava com onze anos? Remonto a 1958. Minha pequena família voltou de Paranaguá para o Rio de Janeiro em 1956. Moramos num simpático apartamento no Cosme Velho. Em 1957, meu pai decidiu morar perto do seu trabalho, embora dispusesse de condução diariamente para Marechal Hermes, onde ficava a sua unidade do Exército. Fomos morar em Padre Miguel, na rua Ceriba número 130.
Padre Miguel fica na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Na época, era chamada de Zona Norte. Padre Miguel ainda era um subúrbio meio rural, meio urbano. A rua Ceriba não tinha calçamento de nenhuma espécie. Só terra batida com duas valas laterais para coleta de esgoto. Não sei se apenas o de pias ou o de banheiros também. Tratava-se de uma casa típica de subúrbio. Uma casa de classe média, com quintal, árvores e uma mangueira na frente, onde eu subia para chupar seus frutos.
Cursei o segundo ano primário no ginásio Souza Lima, que gozava de um certo prestígio. Aos 11 anos, fui matriculado numa escola estranha para fazer o terceiro ano primário. A escola ficava numa casa residencial. Eu saía da Ceriba 130 e ia a pé para a escola. Cruzava a rua Murundu, onde havia uma venda em que minha mãe fazia compras e meu pai tomava cerveja ou bebida mais forte. Não existiam ainda supermercados. As compras eram feitas em armazéns.
Então, eu atravessava um enorme terreno baldio com aspecto de fazenda. Nele, pastavam vacas, bois e cabras. Hoje, ele está urbanizado, mas tem ainda muitos vazios. Creio eu que a escola ficava na rua Frecheirinha. Como em quase todas as ruas, havia valas laterais e chão de terra. Em frente à escola, havia um imenso e intrincado bambuzal. Lembro claramente de uma porca com muitos filhotes e o ataque de um cão. A mãe assumiu o centro de um semicírculo formado pelos porquinhos e afugentou o cão. Foi uma cena fantástica, digna de porco-do-mato e de javali.
Não lembro da professora. Havia uma nítida divisão de trabalho: as mulheres lecionavam no primário. Os homens só trabalhavam no magistério a partir do ginásio. Geralmente, as professoras eram novas e impressionavam os meninos. Era muito comum elas despertarem paixões platônicas em seus alunos.
Tive um colega chamado Lázaro. Era paraense e dizia que, no Pará, menino era batizado de Lázaro e menina de Nazaré. Ele havia chegado havia pouco tempo de Belém e nutria grande admiração por uma professora da sua cidade natal. Segundo suas entusiasmadas palavras, a professora escrevia muito bem. Depois, na releitura, ia pontuando devidamente o texto. Aquilo parecia fantástico aos olhos de uma criança. De fato, amor pelas professoras e professores era um traço bastante forte na minha infância.
Terminada a aula, eu retornava para casa pelo mesmo caminho. No ano seguinte — 1959 — mudamos para a rua Ibitiuva 314, perto da primeira casa, ainda em Padre Miguel. Havia dramas na minha vida, na minha pequena e grande família. Eu não os percebia com a devida nitidez. Morei naquele bairro entre 1957 e 1967. Ele me deixou marcas profundas. Acho que até hoje carrego uma alma suburbana. Parece que vivi em outro mundo ao acompanhar as brincadeiras das minhas netas. Não tivemos telefone e televisão em casa. Quando precisávamos, recorríamos à companhia telefônica, que tinha um posto público na esquina. Televisão só aos domingos, na casa de um vizinho que era dono de um armazém. As brincadeiras — corporais em grande medida — eram praticadas na rua e nos terrenos baldios. Pelada, várias modalidades de pique, bola-de-gude, pipa, pião e outras mais.
Éramos todos analógicos e gostávamos. Nunca imaginei que, na década de 1990, passaríamos para um mundo digital. É nele que vivem meus netos. Tento me adaptar a ele, mas não consigo deixar meu lado analógico. Não posso esquecer do mundo em que me formei. Não posso ser como muitas pessoas da minha geração e das posteriores: viver o dia de hoje como se não houvesse ontem e amanhã.

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