Divisão política entre Lula e Bolsonaro chega aos que lutam pela terra
Dora Paula Paes - Atualizado em 13/10/2021 08:18
Assentamento Cícero Guedes
Assentamento Cícero Guedes / Rodrigo Silveira
O Brasil se explica no acampamento Cícero Guedes, em Cambaíba. A divisão política, entre esquerda e direita, Lula e Bolsonaro, chegou aos camponeses que lutam por um pedaço de terra através da Reforma Agrária. Em Campos, o grupo está dividido entre os protegidos pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Patriota que optou em dar uma “carta de crédito” ao governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que em 2019 chegou a interromper todos os processos para compra e desapropriação de terras pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
O grupo sob a proteção e orientação do MST, com cerca de 150 famílias, ocupa há três meses o espaço de terra ao lado dos escombros do parque industrial da usina Cambaíba. Há 21 anos, um dos maiores e mais tensos focos desta luta pela terra, no município. No histórico, de acordo com os ocupantes, consta exploração de trabalhadores nos canaviais para a produção de açúcar e álcool.
No contexto político, Cambaíba não fica de fora. Em 2014, o ex-delegado da Polícia Civil do Espírito Santo e ex-agente do Serviço Nacional de Informações (SNI), Cláudio Guerra, participou de reconstituição do caso sobre a incineração de militantes políticos contrários à Ditadura Militar, que foram torturados e assassinados na ‘Casa da Morte’ em Petrópolis, região serrana do Estado, e incinerados nas fornalhas da usina de açúcar, em Campos.
Mas, agora, quem entra na localidade, antes uma vila formada por residências de ex-trabalhadores, é automaticamente transportado para uma nova realidade: todo acostamento e áreas livres foram tomados por barracos de lona e madeira. Esse grupo do acampamento Patriota resolveu não participar mais das ações do MST e as 250 famílias vão esperar pelas promessas do governo Bolsonaro, através do Incra.
Na área, o vermelho das bandeiras dos partidos de esquerda e do próprio MST, símbolos das ocupações incentivadas por governos passados como o de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, deu lugar somente ao verde e amarelo da bandeira do Brasil, que atual foi transformada em referência pela direita.
A divisão dos camponeses foi a partir de uma visita, que não teria sido oficial, do superintendente do Incra, Cassius Rodrigo. Segundo os acampados, foram informados que o Incra não transformaria as terras em assentamento se as famílias permanecessem no local, o que levou o grupo a desocupar a área, demarcada pelo MST, e dar uma “carta de crédito” ao governo Bolsonaro. A Folha tentou ouvir o Incra, através de e-mail, mas até o final desta edição não teve resposta.
Na mesma época, autoridades do Estado se apressaram em desmentir. O defensor público federal Thales Arcoverde disse em vídeo aos acampados: “Não existe nenhum impeditivo legal para que se faça reforma agrária com vocês na terra”.
Grupo patriota deu voto de confiança a Bolsonaro
No acampamento Patriota está a presidente da Associação de Produtores e Agricultores Familiares Oziel Alves 2, Sandra Miranda. Segundo ela, o grupo deixou a área da ocupação há pouco mais de mês. “Participamos de uma reunião com o superintendente do Incra (Cassius) e com o ouvidor agrário José Luiz, que foi quem falou. Ele explicou que teríamos que desocupar o espaço para que fizessem o trabalho da divisão do lote e pediram um prazo de 60 dias”, conta, ressaltando que esse prazo ainda está correndo.
“Olhando para a situação do Brasil e a política do governo (Bolsonaro) achamos melhor dar um passo atrás para saber se o Incra vai cumprir o que prometeu, que é dividir a terra. Hoje, a informação do Incra é que estão dividindo as terras de Quatis e assim que terminarem vão começar o trabalho em Cambaíba”, destaca Sandra.
Ainda, de acordo com ela, a associação abraça os mesmos interesses do MST, porém, com uma demanda diferente, que é esperar a efetivação da política do Incra. “Na ideia deles é ocupar, resistir, que também já fiz parte; estou há 20 anos na luta. Só achamos que teríamos que recuar e esperar a coisa acontecer dando um voto de confiança ao governo e ao Incra”, disse
MST promete manter a luta por todos
“Para nós esse racha é uma divisão política, uma polarização, inclusive, acerca do bolsonarismo. No fundo uma disputa ideológica, com o bolsonarismo agindo para dividir o nosso povo, mas a gente acredita que grande parte das famílias que estão do lado de lá foram iludidas e são famílias trabalhadoras e comprometidas com a luta. Estamos de braços abertos para recebê-los e construir essa luta conjunta e não queremos conflitos, mas fazer o Incra exercer seu papel”. Esse é o pensamento defendido pela representante do MST no acampamento Cícero Guedes, Luana Carvalho.
De acordo com ela, o Incra tem um superintendente no Estado do Rio, bem aliado às políticas do governo federal e contra a reforma agrária. E, por ser contra a reforma agrária, ele é contra qualquer grupo ou organização social que lute por essa bandeira.
“Ele vem cumprindo um papel dentro das áreas de assentamento aqui no Estado do Rio de causar divisão entre as pessoas para que um grupo fique brigando com outro e,assim, a pressão e a união junto ao Incra diminua. Foi assim aqui também. Convenceu um grupo de acampados nossos que só iria fazer qualquer coisa nessas terras se fosse tirada a bandeira do MST. E para isso, era preciso sair da área. Os 25 anos do MST aqui no Estado do Rio dizem pra nós que a gente só conquista terra quando está dentro da terra fazendo essa luta”, dispara.
Luana, que já recebeu procuradores federais e o prefeito de Campos, Wladimir Garotinho, além de equipe do Cras para fazer o Cadastro Único, tão necessário para ser beneficiado com a Reforma Agrária. “Vamos trabalhar para abrir uma mesa de negociação com o Incra”, disse.
Câmara de Campos vai promover audiência pública 
O presidente da Câmara Municipal de Campos, Fábio Ribeiro (PSD), anunciou na última sexta-feira (8), que a questão do Assentamento Cícero Guedes será tema de audiência pública. A data ainda não foi confirmada, mas o assunto foi discutido em uma reunião realizada no acampamento. Além de Fábio, estiveram presentes o reitor da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), Raul Palacio, e a diretora da Universidade Federal Fluminense (UFF) em Campos, Ana Costa.
Na ocasião, o Legislativo também se comprometeu a atuar nas tratativas junto à superintendência regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para a formalização do assentamento.
Decisões da Justiça - Em 5 de maio de 2021, a juíza substituta da 1ª Vara Federal de Campos, Katherine Ramos Cordeiro, desapropriou 1,3 mil hectares de terras de três fazendas da antiga usina - entre elas, a Cambaíba. No despacho, elaobrigou o Incra a tomar posse da área para dar seguimento à reforma agrária, em Campos. Para o MST, o Incra se omitiu da obrigação por mais de um mês. Foi quando o movimento decidiu reocupar a área.
Em 5 de julho, as terras do Conjunto Cambaíba e Conjunto Caetás e Cedro foram concedidas ao Incra, responsável por assentar famílias que ocupam as terras desde 2013.
Uma das empresas que detinha parte da propriedade da antiga usina, a AVM (que constrói condomínios de luxo em Campos) ainda tentou a reintegração da posse, mas a juíza voltou a dar decisão favorável aos trabalhadores. No despacho, há ainda a autorização para o acampamento permanecer na terra.

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