A decência tardia da Faria Lima
Caso o primeiro-ministro britânico Winston Churchill decidisse por aceitar o acordo proposto pelo nazismo de Adolf Hitler, nos anos 1940, o mundo seria diferente. Para pior, certamente. O chanceler alemão propusera a “paz”, mas a real motivação seria o extermínio total. Churchill não apenas previa o engodo nazista como advertiu outros líderes mundiais. “Hitler é um monstro maligno, insaciável na sua sede de sangue e de pilhagem” “É por isso que esse filho sanguinário da sarjeta está mandando agora seus exércitos blindados a uma nova missão de carnificina, de saque e de destruição”, dizia, após a notícia da invasão alemã à URSS, quebrando um pacto de não agressão com Stálin, ditador soviético.
Os resultados da segunda guerra poderiam ser ainda mais traumáticos caso Churchill não tivesse a decência e a coragem de romper com o nazismo. Político conservador, de família nobre, se posicionou quando a história exigiu que ele assim o fizesse. Sem traços de anacronismo conivente. Portanto, não basta agir certo, quando se tem responsabilidade — é preciso agir com o senso de urgência necessário.
O manifesto emitido nesta semana por mais de 200 economistas, banqueiros, empresários e ex-autoridades do setor público, com críticas à atuação do governo Bolsonaro na pandemia, cumpriu alguns requisitos para um posicionamento histórico necessário e responsável: conteúdo, coragem, firmeza e decência. Faltou o timing (para usar um estrangeirismo linguístico, tão presente nas rodas de conversa deste público). No documento, que vem sendo chamado de “carta dos economistas” ou “carta dos banqueiros”, são cobradas mais vacinas, máscaras gratuitas, medidas de distanciamento social e refutado o "falso dilema entre salvar vidas e garantir o sustento da população vulnerável".
Marco Ankoski
“Faria Lima” se tronou a expressão que designa o grande capital do país. A Avenida Brigadeiro Faria Lima possui a maioria das grandes empresas de São Paulo, especialmente as do mercado financeiro. Nessa região, estão localizadas duas grandes avenidas: a Avenida Brigadeiro Faria Lima e a Avenida Juscelino Kubitschek, onde circulam muitas das pessoas mais ricas do país. Os “Faria Limers” seguem um padrão: acúmulo agressivo de capital e uma vida luxuosa. A maioria dos signatários que assinam o manifesto são representantes fiéis desse condado, desse grupo seleto que vive distante da realidade de um país com profundas desigualdades. Rabiscos de caneta Montblanc, rubricados por gente como os banqueiros Roberto Setubal e Pedro Moreira Salles (Itaú), os ex-ministros Pedro Malan e Rubens Ricupero e economistas como Laura Carvalho e Affonso Celso Pastore, este ex-presidente do Banco Central, compõe o documento.
Mesmo tardio, o documento expõe a fatídica realidade de um país que permite milhares de mortes por dia, provocadas em grande parte por letargia do Governo Federal. Embora não seja o único culpado pelo desastre de proporções bíblicas — que se deve também por hospitais de campanha que nunca existiram por uma corrupção macabra nos estados, o planalto se absteve de comprar vacinas com a antecedência necessária, não articulou a distribuição de oxigênio e outros insumos, não criou mecanismos de coordenação nacional e não apresentou um plano concreto de enfrentamento da pandemia. O Brasil tronou-se um pária no mundo, reforçado pela postura do presidente da República, que desde o início da crise sanitária defendeu tratamentos sem eficácia comprovada, estimula aglomerações e “reforça normas antissociais, dificultando a adesão da população a comportamentos responsáveis”— palavras do próprio manifesto.
Países vizinhos e de realidades econômicas semelhantes, conseguiram promover um enfrentamento minimamente responsável. Como o caso do Chile — um desses exemplos —, que impôs isolamento social rígido e negociou as vacinas para sua população há mais de um ano. Considerado de centro-direita, o presidente chileno aceitou o que a ciência dizia e as boas experiências internacionais.
Não se trata de ideologia. Responsabilidade e competência não dependem de posição geográfico-ideológica. Existem (e faltam) na direita, no centro e na esquerda.
Como esperado em um sistema representativo presidencialista, a fala e os posicionamentos do presidente tem muito peso. Os impactos negativos de uma fala negacionista podem ser desastrosos. “Vocês não ficaram em casa, não se acovardaram. Nós temos que enfrentar os nossos problemas. Chega de frescura, de mimimi (sic). Vão ficar chorando até quando?” Quantas mensagens erradas podem ser passadas à população em uma declaração nesses termos do líder da nação? Proferida em março deste ano, ela demonstra não apenas uma posição genocida, estimulando ao risco milhares de pessoas, mas também uma total desconexão com a realidade. Paulo Guedes, ministro da Economia, disse no final do ano passado, que “a doença cedeu bastante e a economia voltou com muita força”. Não entenderam a gravidade da doença com suas inúmeras consequências e, ainda mais grave, continuam sem entender.
Pérsio Arida, economista que já dirigiu o Banco Central, BNDES e Banco do Brasil, e um dos signatários do manifesto, tem citado o escritor Nelson Rodrigues nas entrevistas sobre o assunto. “Não se improvisa uma derrota”, cita ao criticar o governo. A Faria Lima tem muito a aprender com Nelson Rodrigues, que estaria desconfiado com essa indignação atrasada. “Só acredito nas pessoas que ainda se ruborizam”, disse o escritor, sempre atual.
Parcela significativa da elite brasileira não se ruboriza com recordes de mortes de seus compatriotas, o que é evidenciado em carreatas de SUV´s e pick-ups, que tremulam bandeiras do Brasil, e pedem abertura total do comércio. A realidade de uma maioria que precisa superlotar transportes públicos para ir ao seu local de trabalho é tão desconhecida para este grupo quanto desconhecem o Hino da Bandeira. A ideia contida em “a sociedade que se dane” e “desde que não me atinja está tudo bem” é incoerente — para dizer o mínimo. A cidadania é conferida pela nação e a democracia é o que garante a liberdade. De todos. Uma sociedade mais igualitária e mais justa promove melhores condições de vida. Para todos.
O anacronismo manifesto na Faria Lima indica que a iniciativa ocorre quando os hospitais particulares passaram a não poder mais atender planos de saúde e socorrer os abastados. Não há vagas, nem mesmo para banqueiros. Os invisíveis do SUS não chocam quando morrem nos corredores. É preciso que a cegueira intencional, alicerçada no egoísmo, na proteção de condomínios fechados, escolas e universidades particulares, planos de saúde e rentismo, seja diminuída pela contaminação ampla. A catarata conivente foi reduzida por uma cirurgia dolorosa, sem anestesia.
Talvez haja tempo de romper com absurdo, o inaceitável, como fez Churchill na Segunda Guerra. Embora muitos tenham ficado pelo caminho, e sejam “custos” irreparáveis, a “carta dos economistas” pode servir de alerta a governantes aderentes ao neofascismo. Em todos os entes federados. Que deixemos na invisibilidade apenas a “mão do mercado”. Torçamos para o manifesto possa trazer o mínimo de empatia, senso de coletividade e sentimento de nação. Que traga o mínimo de decência. Mesmo que tardia.

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    Edmundo Siqueira

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