'Covidão' de domingo
Mal cheguei ao churrasco é já vi aqueles três filhos dele. Era aniversário do meu tio. A gente chama de tio, mas na verdade é por educação. Não era nem para eu estar ali, em meio a uma pandemia; devia ter umas 30 pessoas. Mas, como já havia sido vacinado – até a segunda dose já tomei, fui lá dar um abraço nele. A contragosto. 
Detesto-o. Um tipo desprezível, sem educação, iletrado, típico ‘tio do churrasco’, com aquelas brincadeiras racistas e homofóbicas que só os idiotas riem. Soube que ele defende até a ditadura, a tortura. Enfim, uma pessoa abjeta. Mas minha mãe insiste em vir. Ele foi candidato a presidente em 2018. Minha mãe acha que ele é “importante”. Um bosta. Foi deputado por mais de 30 anos, envolvido com o pessoal da milícia, em ‘rachadinha’ com o pessoal do gabinete e com nem sei mais o quê. Depois de perder, voltou para o programa da Luciana Gimenez e continua repetindo que as eleições foram fraudadas.
Estamos em 2021 e parece que 2018 ainda não acabou. A vitória do PT deixou o país ainda mais polarizado e aqueles erros econômicos dos governos passados continuam. Estamos em crise desde então. A coisa já estava bem difícil antes dessa pandemia maldita. Piorou. Mas, pelo menos fomos um dos primeiros países a comprar vacina. A ciência está valorizada como nunca. Já conseguimos vacinar mais da metade da população. Somos um exemplo no mundo e nosso SUS é festejado, apesar de todos seus defeitos. Estamos com quase 30 mil mortos, uma dor imensa, mas os EUA perderam 540 mil (!). O presidente deles defendeu um remédio sem comprovação científica durante toda pandemia. Por sorte o negacionista perdeu as eleições por lá. Que vergonha para os americanos permitir um presidente que negava a ciência todos os dias, chegando a dizer que era uma "gripezinha".
Bem, me deixa parar de lamento e sobreviver a esse churrasco de péssimo gosto. O ‘tiozão do whatsapp’ está lá assando um leitão. Os filhos já tiraram a foto na mesa de doces, estão conversando com uma turma bem estranha, com cara de poucos amigos. O tio os chama por número – 01, 02 e 03. Nada mais frio e patológico. Olho para o lado e devo estar engando, mas acho que vi o “02” com uma arma.
“Olha só, aqui não tem essa de corona não tá ok? Pode vir todo mundo pra cá, vamos aglomerar, porra!” O tal tio grita, lá da mesa. Meu Deus, como é irresponsável. Claro que não fui, para desgosto da minha mãe. Fui um dos poucos que permaneceu na mesa. “Vem pra cá, ô maricas!”
Chega. Vou embora dessa festa.

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    Edmundo Siqueira

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