Tirando a poeira dos porões
21/03/2019 17:03 - Atualizado em 19/05/2020 16:33
Eu me chamo Mariana Luiza por escolha de minha mãe. Luiza com Z, “Igual a música do Tom” dizia ela. Foi ela quem me ensinou a gostar do maestro, e de Chico, de Milton, de Clara, Paulinho e tantos outros. Mas desde pequena, desde muito pequena, nenhuma música me causa mais arrepio do que um samba enredo. Minha avó Diva, a mãe de minha mãe, foi quem me apresentou o carnaval com suas baterias pujantes. Era ao lado dela e escondida dos meus pais, que eu acompanhava os desfiles madrugada adentro na pequena televisão do seu quarto. Uma aventura pueril algumas vezes rodeada de doces que eu só encontrava nos saquinhos de Cosme e Damião. Minha avó era uma senhora de pequenas atitudes transgressoras. Cheirava rapé, escrevia e postava cartas para o Jaspion e deixava os netos passar madrugadas em claro assistindo TV. Tudo isso longe dos olhos e da fiscalização dos meus pais. Um convite de Diva para assistir às duas noites de desfile do grupo especial do carnaval do Rio de Janeiro, soava para mim como uma espécie de contravenção.
Na minha casa, sempre se falou sobre tudo. Principalmente durante os intervalos do Jornal Nacional. Era entre uma matéria e outra que eu sabia a opinião dos meus pais sobre a inflação, o governo, o preço da gasolina e atuação da Glória Pires na novela.
Nem meu pai, nem me minha mãe, falavam abertamente sobre ser contra o carnaval. A condenação da festa pagã morava nos longos silêncios que sucediam as reportagens jornalísticas que mostravam os barracões das escolas. A ausência de conversa a cada matéria sobre o carnaval dizia muito mais do que as curtas frases de efeito proferidas por meu pai associando subdesenvolvimento do Brasil a alienação momesca. Meu pai ainda costumava censurar com veemência a improdutividade dos dias de folga que diminuía ainda mais um mês originalmente curto para seus negócios. “Fevereiro é o terror do comerciante”.
Passados quase trinta anos, não sei se por respeito, ou por um resquício de culpa cristã, não costumo conversar com meu pai sobre minhas incursões pelos blocos de rua. O assunto carnaval é, assim como na minha infância, tratado ainda com bom e costumaz silêncio mineiro. Mas o fato é que por responsabilidade da minha avó materna, tornei-me uma devota de Momo.
Porém, há mais de um ano, ando imbuída por uma fiel letargia. Um cansaço inabalável, que se manteve incurado mesmo após uma semana de completo ócio nas águas da Bahia. Eu passei janeiro e fevereiro acreditando que minha inércia teria fim com a proximidade do carnaval. Mas meu desinteresse era tamanho que só no domingo, às 7 da manhã, quando amigos me ligavam para o cortejo do Boitatá, eu me dei conta de que o carnaval havia chegado enquanto eu abandonara minhas fantasias imaginárias e materiais. Forcei-me a vencer o desânimo inventando personagens a poucos dias que antecediam a festa. Fui a alguns blocos, encontrei amigos, mas eu sentia que ainda não havia vivenciado minha a apoteose carnavalesca de 2019. Foi quando, na segunda-feira de carnaval, depois de me arrastar pelo rio de esgoto e sujeira que o dilúvio de verão transformou o bairro de Botafogo, me senti intimada a assistir ao desfile da Mangueira. Eu havia escutado alguns trechos do samba, mas meu cansaço eterno me impedira de ouvir o samba completo. Logo eu, neta de dona Diva.
Compramos ingressos em cima da hora pelas mãos de cambistas afoitos. Acreditávamos seguir para o setor 10, quando na verdade havíamos adquirido ingressos para o último setor. O recuado 13. A arquibancada popular. Único setor privado de assistir a totalidade da escola na passarela. O lugar onde o desfile chega de surpresa, depois de quase 40 minutos, e no seu mal chegar já se aligeira, muitas vezes com pressa do cronômetro e fechamento dos portões. O lugar onde vemos o dispersar dos foliões e dos carros alegóricos. A despedida. O fim do carnaval. E era, no início do fim, onde aguardávamos a minha apoteose.
Já passava das 3 da manhã quando a Mangueira iniciou seu desfile. A escola ainda demoraria uns trinta minutos até a chegada dos primeiros membros da diretoria. A nós, reles pagantes de ingressos populares, restava apenas o som do samba ecoado pelas caixas. Alguns turistas estrangeiros descansavam sentados a espera da chegada da comissão de frente. Outros tiravam uma soneca. Mas na minha frente, uma família negra, composta por uma mãe, um filho adolescente e duas meninas entre seus 8 e 10 anos cantavam o samba de cor enquanto eu e meus amigos líamos as partes mais difíceis não decoradas. Mesmo sem ver nada do desfile, a menina mais nova erguia os braços quando o samba falava de um Brasil real e possível não contado pelos livros de História. Enquanto eu me debulhava em lágrimas.
Mil novecentos e noventa e poucos. Eu tinha um pouco mais do que a idade da menina, era aula de história do Brasil. Meu professor justificava a escravidão dos africanos como uma forma de compensar a preguiça e indolência dos indígenas. Eu, uma dos poucos estudantes negros, - 2 numa turma de 34 - me senti extremamente envergonhada ao aprender que éramos feitos para o trabalho, para a força e para a servidão sem contestação ou resistência. A falsa subserviência a qual os escravizados eram retratados se comparara a minha letargia atual em assistir, de camarote do conforto da timeline do meu Facebook, as publicações indignadas de amigos contra esse desgoverno que reverencia torturadores, saqueia terras indígenas, libera armas para a população e envenena nossos alimentos.
A HISTÓRIA PARA NINAR GENTE GRANDE passou como um rolo compressor por cima de toda minha letargia e exaustão. O samba da Mangueira, já tão debatido pela imprensa, atravessou a avenida devagar, sem pressa, como se quisesse me ensinar aquilo que eu me negava a entender. Não que eu ignorasse Luiz Gama, os caboclos de Julho ou o Dragão do Mar. Não que eu não soubesse quem foi Mahin e os Malês. Embora aprendesse tardiamente, eu conhecia suas histórias, mas desde outubro de 2018, havia me esquecido que é na luta que a gente se encontra e que a alegria é a arma mais poderosa para vencer a onda de ódio, ignorância e retrocesso.
Há um ano, a senhora vereadora Rute Costa, apresentou um projeto de lei a câmara dos vereadores de São Paulo – a ser votado ontem - que visava proibir que crianças e adolescentes participem do desfile das escolas de samba do município. Tal qual as leis que criminalizaram o samba e a capoeira no passado e que tentaram fazer o mesmo com funk recentemente, o projeto é mais uma tentativa de calar a voz do morro. De apagar as expressões culturais que escrevem na História a História de um povo.
Eu, ao contrário da menininha de 8 anos que sambou alegremente todo o desfile da escola, chorei o tempo perdido da minha criação não racializada. Eu demorei para entender quem eu era. Assim como minha mãe, assim como minha avó Diva – que viveu uma vida embranquecida de costumes e cultura e morreu sem conhecer seu passado. Se eu, quando criança soubesse quem de fato sou, ensinaria a meu professor que desde o primeiro navio negreiro aportou nestas terras que pisamos, há resistência e quilombos. Passaria o desfile da Mangueira sambando alegre como fez a pequena. E escutaria de minha mãe, que meu nome é Luiza com Z. Tal qual Luiza Mahin.

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    Mariana Luiza

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