* Arthur Soffiati
09/08/2025 08:56 - Atualizado em 09/08/2025 08:56
A viagem de Manaus a São Gabriel da Cachoeira, tradicionalmente, era feita de embarcação. Hoje pode ser feita de avião em voo de duas horas. Mas ainda pode ser feita em balsa, em viagem com 26 horas de duração apenas uma vez por semana. Algumas cidades estão no trajeto, como Novo Airão, indicando que já existiu a cidade velha de Airão. Hoje, está abandonada. Subindo o rio, encontra-se Moura. A seguir, Barcelos, que já foi capital do Amazonas, Cumaru, Santa Isabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira. Não mencionei todos os povoados nesse trecho fluvial tão longo.
Antes da minha viagem a São Gabriel da Cachoeira, em maio de 2025, supus que essa cidade, sede do terceiro maior município do Brasil em extensão territorial, era o fim da linha. Só na volta, lendo “História indígena e do indigenismo no alto Rio Negro”, de Robin M. Wright (Instituto Socioambiental e Mercado das Letras, 2005) e “Do Rio Negro ao Orenoco”, do Marechal Boanerges Lopes de Sousa (Instituto Nacional do Livro, 1959), dei-me conta de que o alto Rio Negro é muito mais complexo do que se supõe e talvez do que se possa supor em termos de natureza e de diversidade cultural. No século XIX e XX, naturalistas e antropólogos já haviam percebido esta complexidade.
Depois de São Gabriel, ainda no curso do Rio Negro, encontram-se as comunidades de Nossa Senhora Aparecida e de São Filipe. Mais acima, a Vila da Guia, de Santo Antônio, de Xaraco, Tabocal, Marabitanas e Cucui. Daí pra frente, entramos já na Venezuela, onde o Negro é usado como limite físico com a Colômbia.
Mas não apenas. Subindo o Rio Negro por água, encontra-se o fabuloso e complexo arquipélago fluvial de Anavilhanas. Navegantes pouco conhecedores dos meandros do rio podem se perder nesse mundo de ilhas grandes e pequenas. Parece que, acima de São Gabriel da Cachoeira, a complexidade fluvial aumenta. O grande afluente do Negro pela margem direita é o rio Uaupés, onde existem também povoados, como Bawari, São Joaquim, São Tomé, Açaí Paraná, Taracuá etc. Meia dúzia de casas ou palhoças caracterizam um povoado.
Um complexo hídrico na Amazônia não poderia se reduzir a dois rios. Acima do Uaupés, ainda na margem direita, corre o rio Içana como afluente do Negro. Mais acima, também na margem direita do Negro, desemboca o rio Xié. A água de todos eles é negra. Explicam os geólogos e hidrólogos que rios com essa coloração não fertilizam os solos tanto quanto os rios de água barrenta. E, na bacia do Negro, são poucos os rios de coloração ocre. O principal é o rio Branco, no baixo curso do Negro.
A riqueza cultural da bacia do Rio Negro está no seu curso alto. Negro, Uaupés, Içana e Xié reúnem os Arapaso, Baré, Barasana, Karapanã, Kubeo, Makuna, Miriti-tapuya, Pirá-tapuya, Siriano, Tariana, Tukano, Kotiria, Dow, Hupda, Nadöb, Yuhupde, Kakwa, Nukak. Baniwa e Coripaco.
Não é de hoje que o ocidente, através de militares, exploradores de minérios, comerciantes e missionários católicos exploram o alto Rio Negro e seus afluentes. No período colonial, os militares subiram o Negro para defender o território português do Brasil das penetrações espanholas através de suas colônias. Os povos indígenas tinham seus próprios limites. Eles eram elásticos e não definidos por linhas demarcatórias. Os militares do período colonial construíram fortes não apenas na costa marítima, como também no interior do Brasil, em pontos estratégicos.
Os missionários católicos vinham no rastro dos militares com a finalidade de catequizar os nativos. Um dos primeiros documentos bem fundamentados é “Sequente notitiate de Rio Negro”, do padre jesuíta Ignacio Szentmartoniy (1718-1793), nascido na Croácia. Os comerciantes são representados sobretudo pelos regatões. Em suas vendas navegantes, eles chegavam aos mais longínquos rincões fluviais para vendar seus produtos, o que pressupunha uma economia monetária mínima. Um dos mais conhecidos é Germano Garrido, que se aldeia de São Felipe. Ao mesmo tempo que representante do ocidente pelo comércio, ele adotou hábitos indígenas. Casou-se com várias índias e teve muitos filhos nas bandas dos rios Uaupés, Içana e Xié. Os mineradores não tinham e ainda não têm controle absoluto por parte do Estado. Posteriormente, eles passaram a ser representados por grandes companhias de mineração.
O alto Rio Negro, principalmente, é um campo rico para estudos ecológicos e antropológicos. De lá, vieram muitos indígenas que se instalaram em São Gabriel da Cachoeira, vivendo na cidade de artesanato e culinária. É também um campo rico para a história da globalização e planetária. Meu desejo é ainda conhecer todo esse mundo por navegação. Para tanto, eu precisaria ter dez anos menos. Minha curiosidade compensaria minhas limitações físicas.