A dois
27/05/2017 | 13h42
As primeiras luzes da manhã entravam pelas frestas da janela. Eles dormiam enquanto amanhecia o dia nublado.
As primeiras luzes da manhã entravam pelas frestas da janela. Eles dormiam enquanto amanhecia o dia nublado. / pixabay
As primeiras luzes da manhã entravam pelas frestas da janela. Eles dormiam enquanto amanhecia o dia nublado. A mulher ajeitou-se. Pegou o edredom e jogou sobre si. Abriu os olhos. Observou o homem que estava ao seu lado, mergulhado em um sono profundo. Parecia não se incomodar com os movimentos e com a claridade, que tocava cada parte dos corpos e móveis do cômodo. Concentrou-se na respiração dele. Era como uma criança adormecida que não teme os perigos. Ela também não temia. Ele estava ali.
Lembrou-se da noite anterior. Tinham se encontrado em uma mesa de um desses bares cheios, barulhentos e, paradoxalmente, vazios. Entre risadas histéricas e discussões sobre os possíveis caminhos da humanidade. Entre goles de cerveja e doses de quaisquer outras bebidas usadas como válvulas de escape das realidades que esperavam as pessoas longe do conforto passageiro. Havia mais gente. Seguindo o ritmo da noite, debatiam sobre o que surgisse: política, cultura, tragédias cotidianas e vidas alheias.
O homem se mexeu levemente, afastando-a das lembranças. Voltou a analisá-lo. Era tão bonito ver o outro dormir. Estava entregue aos sonhos e, sem saber, à mulher que o olhava silenciosamente. Não queria que ele percebesse seus olhos concentrados no expirar-inspirar-expirar-inspirar gostosamente ritmado. Esticou a mão. Tocou o rosto dele. Acariciou cuidadosamente. Percebeu a serenidade em sua expressão. Esse era um daqueles momentos que faz um dia valer a pena. Que tornam mais suportáveis as horas ruins. Os dedos passearam por seus cabelos. Em uma conversa, havia dito que não gostava que mexessem neles. Mas, pensou, ele não vai se incomodar agora. Sorriu ao imaginar a indignação que o tomaria se soubesse que ela quebrou uma regra.
Eles se conheceram por acaso. Um daqueles encontros em que nada se ouve e pouco se fala. Tempos passaram. E, entre atalhos nos diferentes caminhos, novos trechos levaram-nos a um ponto em comum da estrada. Desta, seguiram em frente, lado a lado. Como podiam. Enquanto passeia pela pele dele, com toques suaves, recorda cada momento. Esbarros, tropeços. Discussões. Contradições. Debates. Conversas. Confrontos. Tentativas de contornar as desavenças. Sorrisos disfarçados. Mãos no rosto. Olhos que se comunicavam em silêncio. Predominância de sentimentos. Desuso da razão. O beijo inesperado em uma noite fria. Um eterno retorno a um mundo habitado somente por eles. Uma realidade particular.
“É a nossa forma de ser”, ele disse a ela, enquanto observava irritações causadas por motivos dos quais a mulher não conseguia se lembrar. Tudo parecia distante e compassado pelo som da respiração do homem. Teve vontade de acordá-lo. Sacudi-lo. Levar café da manhã. Fazer cócegas. Dar risadas. Mas optou por observá-lo. Não podia. Não agora. Estavam plenos na sonolência dupla. Não seria cruel de afastá-los de seus sonhos.
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Epitáfio
13/05/2017 | 02h36
No dia em que eu partir, não chore. Sorria! Permitirei apenas lágrimas vertidas entre risadas pelas lembranças inventadas de um dia de sol que não vivemos. Aquelas histórias, contadas por outros, sobre os momentos em que dividimos cervejas e memórias, vãs memórias, das horas passadas em lugares distantes. Perdidos entre árvores, músicas e beijos.
Não chore! Recorde-se das horas que não passei falando sobre nós. Os abraços nunca dados. Que permaneceram em sonhos contados às três da manhã, em uma noite fria de um domingo de maio. Se vier a angústia, apague-a com as palavras imaginadas. E, também, com as ditas. Creia-me. Não menti em nenhuma ocasião. Exceto quando neguei um sentimento. Ou uma verdade. Duas ou três mentiras entre tantas frases claras.
O som da voz. Por ora, ligue-se a ela. Em breve, meus tons sumirão no meio de outros que surgirão em seu caminho. Mas não deixe que eu parta com eles por toda a estranha eternidade. Não agora. Não já. Mantenha meu jeito de falar, o mexer dos lábios, em sua mente enquanto ainda me despeço dia a dia. É nossa fonte de união.
Quando vier a dor da ausência, sinta meu cheiro ao seu lado. Na cama. No travesseiro. Nas roupas jogadas no chão. Naquela toalha de banho velha que deixei sobre a cama. Toque meus livros e sinta os meus toques nos seus. Os dedos cansados que folhearam tantas páginas da vida. Há traços de minha fisionomia perdidos em seu rosto sombrio.
Não deixe que o tic-tac dos relógios te torne exausto. Ele será o barulho do meu silêncio. Você se lembra do quanto eu gostava de acompanhar os ponteiros? Olhe-os. Ali, estarei. Siga os meus passos em todos os cômodos. Em cada canto de nossos cantos, encontrará meu sorriso. Se procurar pela casa, restam os bilhetes que deixei naquela noite. E os que não deixei. Nem tudo precisa ser claramente dito. Você também me achará na escuridão.
Na solidão.
No apagar das luzes da cidade.
Das nossas luzes.
Das suas luzes.
E, quando elas sumirem vagarosamente, estarei ali, do outro lado, para te contar sobre um dia de sol que não vivemos. Para lembrar aquelas histórias, inventadas por outros, sobre os momentos em que dividimos cervejas e memórias das horas passadas em lugares distantes. Detalhar as horas que não passei falando sobre nós. Os abraços nunca dados. Os beijos perdidos entre árvores e músicas. E revertê-los em vidas quase vividas.
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Ação
02/05/2017 | 20h30
Via, nas vias, o rosto desejado
Via, nas vias, o rosto desejado
Turbilhões silenciosos invadem o espaço apertado. Gritos abafados ecoam através de portas, janelas, salas, quartos. Cozinhas e banheiros. Estendido sobre o sofá, ele. A inércia dominando os sentidos. Os sentimentos. Os dias. Caminhava, mentalmente, por todas as vielas que era capaz de encontrar. Andava. Pernoitava em penumbras.
Via, nas vias, o rosto desejado. Continuava a seguir. Mentalmente. Buscava para si o pronome pessoal reto que ambicionava. Ela. Para transformá-lo em possessivo. Sua. Quebrar laços, traços. Utilizar verbos a seu favor. Deixar. Ir. Partir. Ficar. Transmutar todos os pronomes retos, possessivos, demonstrativos e indefinidos em nós.
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Resquícios
05/04/2017 | 13h11
Pixabay
Montou em sua bicicleta e seguiu pelas ruas. Vias desertas. / Pixabay
Era pontual. Às sete da manhã, saía de casa. Traçava, em uma pequena caderneta, a rota pela qual passaria nas horas seguintes. Vestiu-se de forma meticulosa. Cueca. Meias. Calça. Blusa. Tênis. Analisou a imagem no espelho. Ajeitou os cabelos com os dedos. Nem se lembrava de onde havia deixado o pente que herdara de sua mãe.  
A bolsa estava jogada na cadeira da bagunça, perto de sua cama. Era onde ficavam os principais acessórios do dia. Sempre acomodava-os ali. Era mais fácil de encontrar todos os objetos dos quais precisaria. Pegou-a. Colocou-a sobre o ombro esquerdo. Estava vazia. Refez o trajeto. Encontrou a caneta. Traçou. Demoraria poucas horas para retornar à sua casa.
Abriu a porta da sala. Estava sol. Um dia mais quente do que esperava. Montou em sua bicicleta e seguiu pelas ruas. Vias desertas. Por trás dos muros, vidas vazias. Prosseguiu. A bolsa balançava enquanto ele andava sobre paralelepípedos. No chão, a característica sujeira de uma noite movimentada.
À medida que fazia o percurso, sentia um peso sobre o ombro esquerdo. Fora jovem e correra por aquele caminho. Mais adiante, havia beijado a primeira garota de sua vida. Aninha. Uma paixão adolescente que ainda acelerava o coração adulto. Agora, perto da esquina, em frente à escada que dava acesso ao hospital, revivia as despedidas. Pensou que poderia ter sido um homem melhor.
O peso sobre o ombro esquerdo aumentava.
Percorreu 100, 200, 300 metros. Um quilômetro entre recantos. Cantos outrora seus. A casa de Aninha. Continuava com as mesmas paredes brancas. Apertou os freios. Do outro lado da rua, via o quarto dela, no segundo andar. Estava fechado. Conseguia sentir, apesar da distância, o cheiro de mofo onde, antes, havia perfume, briga, amor, sabonete e sexo. As cortinas azuis combinavam com lençóis e fronhas de sua cama. Hoje, a janela conservava os vidros trincados.
Aumentava o peso sobre o ombro esquerdo.
Retomou o percurso. Sentiu o calor ao pedalar. Pensou no mar. Seria o final do trajeto. Antes, precisava redescobrir outros espaços. Ziguezagueou pelas tradicionais áreas. Supermercados. Bares. Uma casa onde havia funcionado um cinema alternativo. Os primeiros porres compartilhados com os amigos. Os segredos trocados. As juras de amor eterno. Tantas promessas sopradas ao vento. E, ainda ali, Aninha. O sorriso aberto ao saber das novidades. O cenho franzido denunciando a insatisfação.
Ajeitou a bolsa que pesava sobre o ombro esquerdo.
Poucos metros depois, lembrou-se do último encontro. A despedida dos amigos. Eles iriam para outras cidades. Uns foram aprovados em vestibulares. Outros conseguiram empregos. Um deles conheceu uma moça e queria se casar. Entre eles, Aninha. Havia sido classificada para uma vaga no curso de artes. “Não vá. Fique comigo”, pediu, como uma criança. “Não vou abandonar um sonho. Voltarei um dia. Me espere, querido. O tempo é um sopro.”
Doía, de forma contundente, o ombro esquerdo.
As lembranças gritavam. Ecoavam as vozes da memória. Eram agressivas com o homem que sobrevivia por meio delas. Encontrou o mar. As ondas tranquilizaram-no. O ombro pesado. Doído. Jogou a bolsa na areia. Livrou-se da calça. Blusa. Medos. Meias. Tristezas. Tênis. Culpas. Cueca. Diante do mar, despiu-se da saudade.
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Para ti
20/03/2017 | 19h58
Todos os dias, cometo este mesmo ritual. Um crime contra mim. Sento-me à mesa e traço, em minha cabeça, as primeiras palavras. Para te contar um pouco sobre as histórias. Tantas. Os detalhes perdidos de uma vida. Há quantos anos? Já não me lembro. Não há mais exatidão em mim. É como cortar os pulsos. Foi Fernando Sabino quem disse que esse era o primeiro passo para a escrita? Não sei. Ficamos mais confusos com o passar do tempo.
Por falar nele, vou te perguntar, pela centésima (ou milésima) vez: que fizeste do seu? Ah, o tempo. Queria saber os seus jeitos. Os trejeitos. Se a sua língua presa ainda destoa da voz grossa. Se os cabelos permanecem bagunçados. Ou se apenas permanecem. O que foi feito daquele anel que te dei como lembrança? Memórias de mim. Por onde andas agora? E com quem?
Na noite em que nos despedimos, eu me lembrei de Drummond. Era ele que dizia que o presente é grande. “Não nos afastemos. Não nos afastemos muito. Vamos de mãos dadas.” Você sorriu e concordou. Afirmou que nenhum tempo, longo ou curto, nos afastaria. E aqui estamos. Aqui? Onde? É mais uma das questões diárias que corroem fígado e coração. Acho que o pulmão também. Dizem que é o órgão que somatiza a tristeza. Ou seriam os rins? Pouca diferença faz agora. Todos parecem derreter-se dentro de mim.
Não! Claro que não. Isso não faz parte do meu “tradicional drama mexicano usado para te convencer a ficar”. Foi o médico quem me revelou. Talvez por isso, eu esteja aqui, agora, em busca de ti. De mim. De nós. Por falar na frase, achei-a bastante cafona quando você falou pela primeira vez. “Deus, que homem é este que cria frases tão clichês?”, eu pensei. Era uma forma de parecer forte diante de minha fraqueza. Queria demonstrar um sentimento de pouco caso, que não existia. Meu desejo era que você ficasse. E, como todos os desejos, foi mais um frustrado.
Lembra-se da última noite? Rimos. Tomamos aquele vinho comprado em uma esquina estranha. Comemos queijo. Depois presunto. E, por fim, um sanduíche que me rendeu três dias de horríveis dores no estômago. Ou foi você quem as causou? Quando mordi o último pedaço, você anunciou que precisaria se afastar por uns tempos. Eu, que lia a vida nas entrelinhas, entendi o seu recado. Seria uma loucura continuar te esperando.
Mas, como sempre fui dada a loucuras, aqui estou. Persisto em uma ideia vã como uma forma de morrer lentamente. Dia a dia. Quanto tempo faz? Dez? Quinze? Vinte anos? Um dia? Eu te expliquei que perdi a noção do tempo. Mas ainda me lembro do seu perfume. Do seu sorriso por vezes cafajeste. Do carinho que me acompanha enquanto escrevo estas frases. Como outras tantas que já rabisquei em papéis perdidos. 
Daqui, longe ou perto, desejo que estejas bem. Saudável. Com todos os seus planos em andamento. Aquelas loucuras das quais você falava sempre, sem cessar. Em intermináveis quase monólogos. 
Agora, peço-te licença, meu caro. O tempo – ah, o tempo – passa mais rápido quando menos precisamos. Tenho que guardar esta carta, centésima ou milésima, à espera de um homem que, insistentemente, baterá à porta para levá-la a lugar algum.
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Ritual
16/02/2017 | 16h56
Pinterest
/ Pinterest
Olhou-se no espelho. Havia manchas em sua superfície. Tentou tirá-las com álcool e um pano velho. Esfregou todos os cantos, mas, dali, elas não saíam. Continuou a observar seus movimentos no reflexo. Seriam dela ou do objeto aqueles resquícios de sujeira? Os olhos negros pareciam cansados. Concentrou-se em seus traços. Não era mais uma menina.
— O tempo passa. E não há como fugir dele.
Parou. Seu corpo foi percorrido por uma sensação de frio. Estava arrepiada. De onde vinha aquela voz? Uma estranha conhecida. Olhou ao redor. Estava sozinha.
— Está na hora de olhar para frente e se encarar. Acha que poderá se esconder de si mesma pelo resto da vida?
Continuava a sentir frio. Dizem que a solidão e o medo causam essa sensação. Fechou os olhos.
— Olhe para mim, Diana. Para você mesma.
Abriu-os vagarosamente. Estava diante de si. Pela primeira vez em muitos anos.
— Isso. Exatamente desta forma. É assim que tem que ser.
Essa era a sua voz. Era estranha. Carregava uma ponta de malícia a cada frase formulada. “Você é cruel na forma de falar, Diana”, dissera, há mais tempo do que poderia supor, sua mãe, durante uma briga. E ela rira. Gargalhara com a cara de pavor da mulher. A graça se perdeu em alguma esquina. Agora, só tinha a si mesma naquele lugar. Parecia sufocante, apertado, fétido.
— Não entendo. Não sei como, mas te ouço, embora você diga coisas que eu não diria.
— A diferença está na coragem. E no meu poder de comando, maior que o seu. Achou que nunca fosse ser necessário olhar para dentro de você? Sei que nunca soube o que encontraria. E isso te assusta.
— Assusta.
A mulher parecia uma criança, paralisada pelo medo. Tentava imaginar maneiras de escapar daquele encontro inesperado. Não era o momento. Em duas horas, estaria no salão para se preparar para o chá na casa de Antônia. À noite, tomaria vinho com Luís Carlos. Depois, retornaria para casa e dormiria. Precisava estar disposta para cumprir a agenda do dia seguinte.
— Não, não, minha cara. Desta vez, só desta, não terá como desaparecer da minha frente. A consciência nos chama ao dever, Diana. Há quanto tempo não faz o exercício de prestar atenção ao que a sua te diz?
A mulher do espelho era sádica.
— Não, Diana. Eu não sou sádica. Sou somente a sua imagem. Está me reconhecendo? — e riu.
— Para de comentar sobre o que não pergunto. Só responda quando ouvir o som de minha voz.
— Como poderia? Mesmo em silêncio, ouço seu som. E continuarei a ponderar sobre o que achar necessário.
Encararam-se. Ambas seguravam o pano. Diana conservava uma expressão de terror infantil. A outra sorria ironicamente.
— Isso é imaginação. Maluquice. Estou ficando muito tempo sozinha — disse, afastando-se do espelho. Deu dois passos e ficou parada. Não conseguia. Uma parte dela sabia que precisava retornar e ouvir.
— Volte, claro. Querida, sabe que é importante este encontro. Afinal, o que seria de você se não restasse o pouco de humanidade que a faz me escutar?
Refez o caminho e parou em frente à mulher, que sorria de modo indecifrável.
— O que quer?
— O que pensa que eu quero?
— Se soubesse, eu não estaria perguntando a você.
— Se eu sei, você sabe. Eu vivo dentro de você, Diana. Nas verdades que você deseja esconder; nos atos que quer disfarçar; nos ruídos silenciosos que percorrem o seu interior quando busca válvulas de escape. Ou você acha que a vida se resume a cafés, chás, comidas e selfies que contam os dias rasos que tem vivido?
Luz e escuridão; alegria e tristeza; profundidade e superfície; amor e ódio; Yin-Yang. Forças opostas e seu equilíbrio que organizam o mundo. Sabia tantas coisas. Estudou sobre diversos temas. Debateu, escreveu. Teorizou. Mas esquecera tudo em troca de uma vida artificial.
— Não disse que você sabia, Diana?
— O que quer?
— Outra vez a mesma pergunta? Parece ter ficado repetitiva com o passar dos anos. Ou quer apenas ouvir o que sabe que não escutará?
— Tenho o direito de optar pelo meu modo de vida sem que ninguém interfira.
— Ninguém? Nem mesmo você, que oculta as insatisfações em taças de vinho? Vê essas manchas entre nós? Tentou limpá-las. Percebeu que não estão na superfície do espelho?
Diana esfregou o pano em seu próprio rosto.
— Não adianta. Estás marcada. Elas estão por baixo, além, dentro de ti, querida. São todos os dias mal vividos. Todas as fugas para não encarar a realidade. Todas as horas desperdiçadas em passeios vãos que não preencheram seus vazios. Diga-me, Diana, se sente acolhida? Aquecida? Amada?
Novamente, o frio.
— Não.
O celular tocou. Era Antônia. Sempre ligava para confirmar as idas aos eventos promovidos em sua casa. Observou. Segurou-o até que a colega desligasse. Ela tentou novamente. Mais uma, duas, três vezes. Desistiu.
— É assim, Diana. As pessoas desistem da gente quando mais precisamos. Já percebeu isso? Ou sua opção por não pensar sobre a vida fez com que deixasse passar esse detalhe?
— O que quer de mim? Por que essa tortura? Sabe que foi isso que me restou. É isso que, hoje, sou. É assim que devo morrer em poucos ou muitos dias.
— Na verdade, minha cara, você morre todos os dias. Eu te vejo fria, rígida. Dura. Com sorrisos insinceros. Palavras levianas. Em discussões que em nada lhe agradam. Viu como a morte caminha a seu lado? Ela é a sua sombra.
Apertou, com toda a força, a garrafa de álcool e lançou-a no espelho. Pedaços do vidro voaram em sua direção. Sentiu arder partes do corpo. Caminhou para o banheiro. Tomou um banho demorado, lutando para afastar de seus pensamentos os momentos recentes.
Vestiu-se com a roupa mais bonita. Pegou o celular e a bolsa e saiu para encontrar Antônia. Diria à amiga que recebeu uma visita desagradável enquanto estivessem tomando o chá e comendo os maravilhosos biscoitos oferecidos pela anfitriã. Depois, tomaria vinho com Luís Carlos e retornaria para casa e dormiria. Precisava estar disposta para cumprir a agenda do dia seguinte.
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Minutos
29/01/2017 | 10h33
A cama continuava bagunçada. O lençol branco, ainda quente e desarrumado, sinalizava a recente partida da mulher. As luzes fracas do ambiente iluminavam os rostos. Semblantes aflitos espalhados pelo quarto, sala e varanda. No portão, um carro com as portas traseiras abertas aguardava a saída de homens vestidos de branco. Eles carregariam os últimos momentos da vida enclausurada, que espiara entre grades e janelas, mas permanecera alheia ao mundo que transcorria fora de seu espaço.
Mais cedo, naquele mesmo dia, um sussurro antecipou a despedida. Quase inaudível. Ao redor, somente memórias preenchiam os seus dias vazios de sentido. As horas transcorriam sem que pudessem ser percebidas. O relógio mostrava o passar de minutos à medida que seu tempo era o retrocesso. Regresso a um passado de marcas e memórias. Elas dominavam o presente e serviam para alimentar o futuro.
Por muitos dias, a mulher se sentou em sua sala de visitas. A cadeira, posicionada entre móveis escuros que ditavam as cores da casa, permitia que ela visse as fotos. O passado em destaque. Marido, filhos, netos. Dali, contabilizava perdas. Ali, morria a cada dia. Enquanto se sentava para reverenciar os bons momentos, escondia o aperto em seu coração. Conduzia os outros, os poucos chegados, para que não tivessem muitas informações sobre o presente. Recebia-os. Enquanto conversava, observava os retratos. Sempre distante da realidade. Em sua cabeça, dialogava com todos os representados por fotografias. Para a idosa, eles eram sua verdadeira companhia.
A mão direita segurava o copo de café. Um prato de bolo estava posicionado sobre o seu colo. Usava um vestido preto. O barulho dos carros, que transitavam em alta velocidade pela rua onde morava, não era capaz de atingir seus ouvidos. Por eles, entravam apenas as músicas de bailes de Carnaval pelos quais passou com o marido. Com quem dançou e comemorou os anos, os filhos, a vida. Para quem se doou e por quem se tornou alheia as dores do mundo.
Concentrada, observava seu retrato. Sentia saudade. Tantos anos que partira, mas sempre parecia ontem. Há poucos minutos. Dizem que o tempo cura tudo. Mas, para ela, apenas exercera o poder de aquietar o coração para que aguardasse o fim de espaçados tic-tac-tic-tac-tic-tac.
Levou o copo à boca. O calor aqueceu seu corpo. Levantou-se, com certa dificuldade, e caminhou para a cama. Era uma tarde de sábado. Mais uma. Uma a mais. Só uma. O corpo cansado. Deitou-se. A cama não estava bagunçada. O lençol branco, frio e esticado, estava preparado para o momento do repouso. Fechou os olhos. Histórias em câmera lenta transmitidas em uma tela inalcançável. Seria capaz de reproduzir os diálogos se sua boca respeitasse a vontade. Tentou emitir sons. Precisava contar aos demais que sua vida ainda existia.
Seus dedos eram tocados por ele. Os sorrisos recíprocos. Ele retornara para ela. Agora, sem adiar mais um minuto, se levantaria para preparar o prato de alface e tomate com bife de que tanto gostava. Ou mingau.
As pernas bagunçavam a roupa de cama. Os movimentos não coordenados. Tentou se levantar. O peso sobre o peito. As mãos perto das dele. Os olhos pousados em seu corpo, que não se mexia em conformidade com os pensamentos.
As pernas agitadas.
Os pés frios.
O prato de salada.
O mingau.
Ele.
O peso no corpo.
Ele.
O sussurro.
Ele.
O suspiro.
Eles.
A cama bagunçada.
O lençol branco, quente e desarrumado.
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Monólogo do adeus
26/01/2017 | 15h20
Pixabay.com
/ Pixabay.com
“E aqui estou eu que, ao contrário do que esperavam, não fiz tudo por você. Eu que, de maneira egoísta, me tranquei em minha jaula isolada do mundo para esconder a fera que poderia surgir em uma noite densa. Eu que deveria ceder o lugar a outro eu esperado por você. Incapaz de mover a mão para estender em momentos de aflição.
E, agora, não posso me perdoar por tudo o que não fiz e não disse. Pelas coisas que deixei passar. Pelo que deveria ter mostrado e demonstrado. Fracassei e tenho consciência disso. Perdi tempo com ideias mirabolantes e esdrúxulas para chamar a atenção do mundo. Hoje, vejo que deveria ter te dado atenção. Eu, centrado em minhas coisas, meus medos, meu mundo. Inapto a enxergar que quem me acompanhou também tinha suas necessidades. Estou habituado a respeitar as necessidades físicas e fisiológicas, mas não as emocionais. Não soube, em um mísero minuto, me esquecer e lembrar de você. Agora, velho e sozinho, sinto que não cumpri os meus deveres. Ser humano fracassado. Marido desinteressado. Pai displicente. Amigo egocêntrico. O tempo passou, e não enxerguei o que fazia com a minha vida”.
“Lembra-se da vez em que te disse para seguir sozinha? Você rebateu. Chamou-me de ridículo e ficou. Eu, no seu lugar, teria ido. E, agora, você foi. E não há volta. Não há negociação. Não há o amanhã em que tudo possa ser resolvido. Não existem palavras para consertar todo o estrago. Definhavas ao meu lado, e eu não a olhava. Gemias. Balbuciavas meu nome, e eu fingia não escutar por não saber te abraçar e mentir, dizendo que tudo ficaria bem. Não. E não vai ficar. Respondia às suas queixas com o meu silêncio. Quantas vezes me chamou de egocêntrico? Eu ria de ti e não compreendia. Achava-a exagerada e carente. Chata, por vezes. E isso quando eu parava para te escutar.
Por trás do muro que construí entre nós, apenas sabia que falavas sem parar, mas não me convinha ouvir-te. Suas lamúrias eram vãs. Hoje, teu silêncio eterno domina a casa, a vida e atingiu o muro. Ele não mais existe. Agora, estou desprotegido e solto entre pessoas que não conheço. Entre seres que não me olham, não falam, não sorriem, não se preocupam. Tornei-me invisível como sempre sonhei. Paradoxalmente, queria ser visto, ouvido, abraçado. Punido, censurado e, quiçá, agredido. Sei que era o seu sonho viver a normalidade que não te proporcionei. Notei que sou humano e não sei exercer a minha humanidade. Você me ajudaria nessa descoberta. A única capaz de me abrir os olhos. Lamento por ter enxergado tarde demais. Sessenta anos e a solidão pela frente. A despedida é sempre dolorosa. A incerteza sobre o fim é angustiante."
Enquanto ela era colocada em sua última morada, uma rosa caiu sobre a madeira. A esposa, mulher de palavras certeiras e coração aflito, esperou um gesto de carinho que nunca veio. Sentimento transfigurado em dor. Todas as frases presas em uma mente conturbada. Uma gota molhou a flor. Olhos ardendo e fechados. Não sabia o que acontecia com eles. Não conseguia controlar as sensações involuntárias. Era insuportável o parto da primeira lágrima.
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Feliz ano velho
21/01/2017 | 11h37
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Cinco de janeiro de dois mil e dezessete. Quinto dia de um ano novo para o qual pessoas reuniram esperanças de vivenciar experiências melhores e mais positivas. Vontade de mudar a realidade e encontrar caminhos que as afastassem dos últimos doze meses. Estes entraram para a lista de alguns dos piores da história do Brasil e do mundo. Mas o quinto dia do novo ano amanheceu com ares de um retrocesso que caracterizou 2016.
Os jornais e o Facebook estamparam a foto de um bebê de 16 meses, chamado Mohammed Shohayet, que não conseguiu sobreviver a um naufrágio durante a fuga de Myanmar (ou Birmânia) para Bangladesh. Ele e seus familiares tentavam escapar da perseguição étnica. O corpo da criança, da etnia Rohingya (considerada pelo governo birmanês como grupo de imigrantes ilegais), foi fotografado à margem do rio Naf. Também morreram sua mãe, seu irmão (de três anos) e um tio. Somente o pai sobreviveu.
A foto de Mohammed, tragicamente, traz à lembrança a imagem de Aylan Kurdi, um garoto de três anos encontrado morto em situação semelhante. O corpo da criança foi fotografado em uma praia da Turquia, também após um naufrágio. Na época, o jornal Independent fez um alerta, veiculado em periódicos brasileiros: “se estas imagens com poder extraordinário de uma criança síria levada a uma praia não mudarem as atitudes da Europa com relação aos refugiados, o que mudará?” Passados quase dois anos, a mudança esperada permanece em sonho.
E, no Brasil, com cinco dias de 2017, a população engole mortes individuais e coletivas e cenas diárias de violências enquanto vê o início do desaparecimento da esperança em dias mais calmos e positivos, que foram pedidos na passagem do ano.
A melhor definição sobre os sentimentos gerados pelos primeiros cinco dias de 2017 foi feita, por meio de rede social, pela professora e jornalista Jacqueline Deolindo: “Que época triste vivemos... As notícias, que quase nunca comento, são tristes, e a vida de tanta gente é uma tristeza só. Não dá nem pra dizer ‘oi, tudo ótimo’. Dizer ‘tudo ótimo’ é quase um desrespeito a essas dores. Reconheço, agradecida, tudo de bom, todo conforto, toda alegria e liberdade, todas as conquistas da minha família, mas, vendo pela janela o mar de lama que afoga nossos iguais, aqui perto, lá longe, o que circula no fundo da minha alma é compaixão, tristeza e dúvida. Não tem como não sofrer junto com os outros homens nem deixar de pensar na espantosa natureza humana.””
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Marcas
21/01/2017 | 11h37
Não parece, mas tudo que estamos vivendo hoje se transformará em lembranças. Nostalgia. Memórias perdidas em gavetas. Em compartimentos bagunçados. Registros do ontem que formam o amanhã. Trechos de fases que trouxeram bons e maus momentos. Histórias nossas e nossas histórias dos outros. Em todas as partes, rostos, vozes, expressões. Faces. Abraços, sorrisos. Uma palavra que, talvez, ainda ecoe dentro de nós. Um toque. Os nossos traços perdidos por estradas.
Ali, à frente, o professor esbraveja com os alunos de não mais de 14 anos. Todos risonhos, enfadados com as palavras do homem. Estavam no espaço por obrigação. Consideravam-no tedioso. Mas ouviam. E riam das tentativas de ser engraçado. Ou das implicâncias com as meninas e os meninos. Encontravam diariamente novos aspectos ou expressões para risadas a mais.
Em uma manhã de aula, com todos dispersos, ele levantou os braços, estalou os dedos e chamou a atenção da garotada, que não se calava. Enfurecido, reclamou da desobediência e do descaso e bradou:
— Hello, 2007! — os dedos estalavam, e os alunos riam do repentino (quase) acesso de raiva do professor. A expressão virou um bordão entre os estudantes. Naquele momento, a menina, que se sentava constantemente na primeira cadeira, próxima ao quadro, também riu.
E aquela seria mais uma manhã de aula, em uma escola do centro da cidade, na qual permaneceu por quatro anos. Era mais um dia. Mais uma data imperceptível. Sem grandes marcas. Mas a vida assim se faz. Com dias supostamente irrelevantes.
Meses depois, ainda sentada nas cadeiras da frente das salas de aula, experimentou seu primeiro contato com a literatura. Um livro para ser o trabalho do bimestre. A professora de português teve a ideia, que a assustou inicialmente. “Quem vai querer ler o que eu escrevo? E o que vou escrever?” foram perguntas que passaram pela cabeça da adolescente perdida em falas e personagens. E se envergonhou ao entregar o resultado à professora.
Não imaginava, naquele período em que se dedicou ao trabalho, o que aquela memória significaria no futuro. O quanto um simples dia poderia determinar novos caminhos. Mas, na cabeça dela, eram somente mais uns dias. Mais datas imperceptíveis. Sem grandes marcas.
Sentada sob uma árvore, perto de um ponto de ônibus, ela observa o movimento de carros, motos e bicicletas. De diversas direções, é atingida: pelo asfalto, o calor; pelo céu, os raios de sol; pelas lembranças, as histórias que a levaram diretamente à pedra sob a árvore perto do ponto de ônibus. E a certeza de que este, por mais simples que pareça, será mais um momento na marca da memória.
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Sobre o autor

Paula Vigneron

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