A polarização afetiva e as armadilhas coletivas
28/01/2024 | 12h47
Imagem gerada por IA - Edmundo Siqueira

Não seria impossível — talvez tenha existido de fato — ver um vendedor de rua em qualquer capital brasileira expondo suas camisas de time de futebol em um varal, e entre elas estivessem camisas da Palestina e de Israel. O Brasil atravessa um tempo de polarização extremada e de pensamento binário, que mesmo sobre qual lado você está em conflitos no Oriente Médio são determinantes para formar identidades.

Vivemos, por vários motivos, o que está sendo chamado de “polarização afetiva”, que é quando as discussões e ideologias deixam de ser políticas e passam a ser formadoras de identidade e de pertencimento de grupos sociais. Em outras palavras: a depender da opinião sobre um tema, alguém pode ser aceito ou expulso de uma tribo, de um grupo de pessoas que radicalizaram suas posições.

Relacionar identidade e pertencimento com posições políticas, transformam o jogo democrático em algo tribalizado, essencialmente emotivo e afetivo, portanto. Podemos culpar as redes sociais, mas determinar qual raça ou tribo alguém pertence sempre foi um instrumento poderoso para o ódio, esse significativamente mais antigo que as redes.

A grande contribuição que o mundo virtual trouxe para esse jogo antipolítico foi a gamificação. Uma armadilha que traz ao manipulado uma sensação de prazer e satisfação quando oferece recompensas imediatas por cumprir determinada tarefa ou agir de determinado jeito. Os “likes” e “cliques” se multiplicam por posições radicais, ou por conteúdos que geram discórdia.

Os algoritmos não estão interessados em posições moderadas, principalmente políticas. Mas, de novo, não podemos culpar os instrumentos. O algoritmo responde aos estímulos dados pelas pessoas, que mesmo manipuladas, refletem suas próprias posições extremadas.
Sacadas de apartamentos em São Paulo exibindo bandeiras de Israel e da Palestina.
Sacadas de apartamentos em São Paulo exibindo bandeiras de Israel e da Palestina. / Folhapress - Folha de S. Paulo
Essas armadilhas modernas são eficazes e massificadas. Instrumentos virtuais que utilizam-se de sensações e instintos humanos, esses universais. Portanto, mesmo que tenhamos consciência desses fatores, não é humanamente possível nos colocarmos alheios a esses estímulos, e possivelmente nos reconhecemos caindo em algumas dessas armadilhas.


Voltemos ao caso das camisas de time misturadas às predileções na guerra do Oriente Médio: embora seja um conflito importante, de contornos milenares e envolto em questões religiosas, assumir uma posição neutra ou mediadora não é aceitável nesse jogo antipolítico. Defender a solução de dois estados — Israel e Palestina — não é uma posição que gera “engajamento”. É preciso que você defina de que lado está, mesmo em uma situação de alta complexidade.

Além de permitir que mais e mais pessoas se engajem, estimular posições binárias permite que as soluções sejam de fácil entendimento. Ora, basta eliminar Israel para que o povo palestino deixe de sofrer com o genocídio. Ou, fortaleça o domínio de Israel na região e terá a paz.
Muro com inscrições em hebraico, português e inglês, onde se lê "paz", em Higienópolis, bairro nobre de São Paulo.
Muro com inscrições em hebraico, português e inglês, onde se lê "paz", em Higienópolis, bairro nobre de São Paulo. / Folhapress - Folha de S. Paulo

O maniqueísmo proposital estimulado pelas redes simplifica decisões complexas, a ponto de pessoas determinarem que um semelhante está do lado do bem ou do mal por suas posições políticas. Se alguém é a favor de dois estados no conflito Israel e Palestina, está do lado do mais forte, portanto configura-se como mal na visão de alguém pró-palestina. E vice-versa.

Política e conflito - Radicalizar os temas se tornou crucial para os políticos que buscam visibilidade e engajamento virtual, e é preciso que um conjunto de posições seja pré-estabelecido para que esse representante seja aceito. Temas como aborto, armas e vacinas se tornaram dogmas definidores nos últimos tempos, no Brasil. Não há meio termo, é preciso que um combo decisório seja apresentado pelo político. Ou se é contra, ou se é a favor.

Há pouco mais de 80 anos, o mundo assistia tropas alemãs marcharem pela Europa em nome de dominação ideológica, maniqueísmo, radicalismo e tribalismo. Há pouco mais de 135 anos o Brasil açoitava e comercializava pessoas por questões raciais. Fatos que, historicamente, foram "ontem".

Discursos de ódio podem ser ouvidos hoje em mesmo tom, assim como camisas e bandeiras tremulam em varais e varandas ideológicas, esperando que o próximo manipulado as comprem e as exponham como sua identidade. São armadilhas perigosas. E repetidas. 

Senhora alemã lendo propaganda nazista exposta em locais públicos.
Senhora alemã lendo propaganda nazista exposta em locais públicos. / Holocaust Encyclopedia



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"O combate ao tráfico e as milícias exige investigação e menos espetáculo", diz membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
26/10/2023 | 08h11
Na última segunda-feira (23), a Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro sofreu o maior ataque em um único dia a coletivos urbanos. Ao menos 30 ônibus foram incendiados, e mais 5 BRTs (veículos articulados usados em corredores expressos). O caos afetou oito bairros, diversas vias foram fechadas e milhares de trabalhadores ficaram sem poder voltar para as suas casas.

O motivo dos atos de terror foram uma resposta do poder paralelo que assola o Rio há décadas: a milícia. Após a morte em uma ação da Polícia Civil de Matheus da Silva Rezende, o Faustão, um dos líderes da maior milícia do Estado, os criminosos demonstraram força e mostraram que aquele território é comandado por eles.

“Não adianta fazer operação policial com milhares de policiais, invadir territórios controlados por criminosos e ter confrontos que colocam policiais e inocentes em risco para no final apreender 1 fuzil e 100 kg de cocaína. O trabalho de combate a esse tipo de crime exige investigação e menos espetáculo”, disse Roberto Uchôa, policial federal, doutorando em Democracia do Século XXI, na Universidade de Coimbra, e membro do Conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a este espaço na Folha1.

A reação à morte do miliciano Faustão foi um recado às autoridades do Rio de que o poder em praticamente toda Zona Oeste pertence à milícia que hoje é liderada por Zinho, tio de Faustão, e um dos chefes do grupo conhecido como “Família Braga”, considerada a maior milícia da cidade desde a última década.

Segundo a Polícia Civil, das 833 áreas dominadas pela milícia, 812 têm influência da Família Braga. Em 2010, sob o comando de “CL” ou “Carlinhos Três Pontes”, a milícia se uniu ao tráfico de drogas. Com estrutura de máfia, os criminosos controlaram não apenas o território como as principais atividades econômicas de uma parte significativa do Rio.

Participação ou omissão do Estado — Como resposta aos atos da segunda-feira, o governador Cláudio Castro comemorou a prisão de 12 suspeitos que teriam participado da destruição dos ônibus e BRTs, e segundo o governador eles irão responder pelo crime de terrorismo. Todos foram encaminhados para prisões federais.

A estratégia do Governo do Rio até aqui é a prisão dos líderes do tráfico e da milícia, ou da máfia que os grupos criminosos formam em conjunto, hoje. Porém, é praticamente um consenso entre especialistas em segurança pública que prender lideranças apenas não soluciona o problema, uma vez que a estrutura não se altera e outras pessoas assumem os comandos.

Segundo Uchôa, “esse tipo de postura é para dar a impressão de que as milícias estão sendo combatidas, quando na verdade nada muda” e que “a forma como as milícias se estruturaram ao longo tempo hoje permite que elas permaneçam funcionando mesmo com a troca de líderes”.
Mais 35 ônibus foram incendiados no Rio de Janeiro após morte de suspeito apontado como líder de milícia (folha de S.Paulo).
Mais 35 ônibus foram incendiados no Rio de Janeiro após morte de suspeito apontado como líder de milícia (folha de S.Paulo). / Reprodução/TV Globo
“Então promover uma caçada sem atacar essas estruturas é inócuo e serve somente para possíveis ganhos políticos. Não há crime organizado sem participação ou omissão de agentes do Estado e o que vimos nas últimas décadas foi um exemplo claro disso. Governos foram omissos ao impedir que agentes de segurança fizessem parte da criação e do crescimento dessas organizações. Isso acontecia porque muitos entendiam que era um mal menor e que o mais importante era combater os narcotraficantes. Vale lembrar, policiais criaram as milícias. E a simbiose de políticos e integrantes de milícias foi além”, explica o pesquisador.

Autor do livro “Armas para Quem? A busca por armas de fogo”, Uchôa desenvolveu grande parte de sua pesquisa em entender como as armas legais iam parar na mão dos criminosos e como uma política pública que flexibilizasse a compra e o porte de armas aumentaria o poder de fogo de milícias e do tráfico.

Sobre o comércio de armas e o envolvimento da política nas questões relacionadas à segurança pública, ele é enfático e propõe um caminho para além de uma intervenção federal no Rio:
Reprodução
— Através do domínio armado de territórios, os criminosos além do controle econômico tinham também o controle político, o que atraiu o interesse de muitos. Tivemos caso inclusive de integrante de milícia sendo homenageado na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Então se houver realmente o desejo de combater esse tipo de organização criminosa é preciso começar pelo ataque às suas estruturas, que hoje estão entranhadas em muitas estruturas do poder público. Defendo que o combate a esse tipo de atividade novamente passa pela necessidade de ações do Governo Federal. Mas não o envio de força nacional. É necessária a criação de uma força tarefa composta pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal com apoio integral do governo federal e liberdade de ação. Aí sim podemos vislumbrar alguma mudança futura.


A segurança pública em um Estado que permitiu um nível de apodrecimento institucional que o Rio de Janeiro apresenta hoje é altamente complexa e as soluções que os sucessivos governos dos últimos anos apresentaram não enfrentaram o problema, permitindo seu agravamento.

Além dos territórios ocupados, milícias e o tráfico fortaleceram seus braços financeiros e possuem denso e pesado armamento, ao ponto de desafiar o poder do Estado frontalmente, como na última segunda-feira.

Segundo Uchôa, as flexibilizações na legislação de armas impostas pelo governo Bolsonaro permitiram que os criminosos tivessem “mais uma fonte” de armamento pesado.

— Historicamente as fontes de armamento pesado, como fuzis e pistolas de calibres restritos, eram o tráfico internacional de armas e desvios de instituições públicas como quartéis, batalhões e delegacias, como vimos recentemente no caso das metralhadoras furtadas dos militares. Essas armas não estavam disponíveis no mercado interno. Com a flexibilização da legislação promovida durante o governo Bolsonaro houve uma mudança no mercado já que fuzis e pistolas de calibres que antes eram restritos passaram a ser acessíveis à população. Isso permitiu que criminosos tivessem mais uma fonte para conseguirem esse tipo de armamento, só que agora por um custo menor e menos riscos. Seja através do uso de "laranjas", de repasse ou até mesmo compra direta, não são poucos os casos noticiados de criminosos que aproveitaram as facilidades para conseguirem armas. Em recente pesquisa que fiz analisei um caso onde milicianos se registraram como CACs e adquiriram armas legais diretamente. Todos foram presos em flagrante em atividade de milícia com as armas legais. Claro que foi um caso, mas se fossemos citar todos os que estão sendo descobertos, faltaria espaço nessa entrevista. Ao encerrar a corrida armamentista que ocorreu nos últimos anos, o Governo Federal (atual, Lula III) deu um importante passo, mas é preciso ir além.
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ONU, reféns e ajuda humanitária: especialistas falam sobre a situação atual em Gaza
22/10/2023 | 07h02

“O conflito em Gaza escancara o que já se sabe há muito: o sistema global multilateral inaugurado a partir de 1945 com a criação da ONU não se demonstrou apto a manter suas promessas de paz e ordem na governança global através do tempo”.

Esse é um trecho da resposta de Letícia Haertel, mestre em Direito e especialista em Direito Internacional, dada a este espaço no Folha1 quando perguntada sobre um possível enfraquecimento da Organização das Nações Unidas (ONU) caso não consiga assegurar um cessar-fogo em Gaza ou garantir a chegada de assistência humanitária. Letícia continua:

— O principal exemplo se dá no âmbito do Conselho de Segurança, concebido como instância máxima na garantia da paz e segurança internacionais, mas que já nasceu falho pela inclusão, na Carta da ONU, do poder de veto dos membros permanentes. Sua incapacidade de contribuir para a resolução de conflitos e garantir o respeito ao Direito Internacional, em especial, ao Direito Humanitário, em parte significativa dos conflitos após a Segunda Guerra como já havia se tornado incontestável no contexto da Ucrânia, bem como da situação em Nagorno-Karabakh e outras com menos atenção midiática.

No conflito atual na Faixa de Gaza, depois que terroristas do grupo Hamas fizeram o pior ataque em 50 anos contra Israel no último dia 7, o governo israelense convocou um número recorde de 300 mil reservistas e mantém bombardeios intensos contra Gaza.
Crianças em escola no campo de refugiados Al-Maghazi, no centro da Faixa de Gaza, onde seis pessoas morreram após um bombardeio de Israel (Folha S.Paulo)
Crianças em escola no campo de refugiados Al-Maghazi, no centro da Faixa de Gaza, onde seis pessoas morreram após um bombardeio de Israel (Folha S.Paulo) / Foto: Mohammed Faiq/AFP


Israel prepara uma ofensiva terrestre, e em movimentos recentes mísseis atingiram os dois principais aeroportos da Síria neste domingo (22), e o primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, disse que uma eventual frente de batalha aberta pelo grupo Hezbollah levaria "devastação" ao Líbano.

O mundo vê crescer o risco de uma conflagração regional no Oriente Médio, e os EUA, através do secretário de Defesa, Lloyd Austin, avisou que o país não hesitaria em agir para se defender na região. Os Estados Unidos são declaradamente a favor de Israel.

Enquanto a situação geopolítica da região se agrava, os 2,2 milhões de habitantes da Faixa de Gaza tiveram suspenso o fornecimento de energia, alimentos, água, medicamentos e combustível por Israel.

— Para formar um corredor humanitário para Gaza, hoje a opção mais viável é pelo Egito, pela passagem de Rafah, por uma série de motivos, mas principalmente porque Israel não abriria suas passagens com Gaza, por uma questão de segurança, principalmente. Então a principal opção é pelo Egito, até porque existe a questão de que a ajuda entrando por Israel possivelmente não seria bem aceita pela própria população de Gaza. — disse Filipe Figueiredo, graduado em história pela Universidade de São Paulo (USP) e autor do podcast Xadrez Verbal, também a este espaço no Folha1.
Ontem (21), após dias de impasses e disputas diplomáticas, os primeiros caminhões com toneladas de suprimentos entraram no território palestino, pela primeira vez desde o começo da guerra. Após um ultimato feito por Israel para que deixassem o norte, muitos moradores de Gaza estão aglomerados no sul do território, temendo o início de uma invasão terrestre pelas forças israelenses.

Apesar da entrada do primeiro lote de ajuda humanitária que aconteceu um dia após o Hamas libertar duas reféns americanas — Judith Raanan e sua filha, Natalie —, há muita resistência do Egito em formar o chamado corredor humanitário em Gaza.

O historiador Filipe explica que há mais em jogo:

Filipe Figueiredo
Filipe Figueiredo / Reprodução
— O Egito está disposto a fazer essa operação inclusive para ganhos políticos próprios, nós tivemos imagens de caminhões que entraram em Gaza recentemente e eles levavam artes com a bandeira egípcia e o rosto do Al-Sisi, que é o presidente/ditador egípcio. O Egito, que é um país que já ocupou a faixa de Gaza até 1967, não vai agir de maneira unilateral, até para não alienar suas relações com os EUA e Israel. Vale lembrar que o Egito não é aliado do Hamas, sendo um país que também vê o Hamas como ameaça, mas que precisa que Israel e EUA aprovem a entrada de ajuda humanitária.


Enquanto o Hamas vem utilizando civis inocentes como escudo humano, e constantemente acusado de cometer diversos outros crimes de guerra, Israel, por outro lado, vem sendo acusado de tentar promover uma limpeza étnica contra o povo palestino e também de crimes de guerra em Gaza.

A especialista em Direito Internacional, Letícia Haertel, explica como a ONU vem se posicionando sobre esse assunto:

— O Conselho de Segurança da ONU ainda não logrou adotar uma resolução compreensiva sobre a situação em Gaza, mas diversos outros órgãos e agências da ONU já se pronunciaram e identificaram a ocorrência de violações do Direito Internacional e do Direito Humanitário em uma base diária, clamando por um cessar-fogo. De forma geral, há uma condenação dos ataques do dia 7 perpetrados pelo Hamas e outras de suas práticas, como a tomada de reféns e execuções. A censura ao Hamas costuma ser acompanhada de uma inequívoca condenação de condutas por parte do Estado de Israel, como a punição coletiva contra a população palestina na Faixa de Gaza, a falta de discriminação de alvos e proporcionalidade nos ataques aéreos, a coação a deslocamento forçado sem fornecimento de abrigo seguro, a continuidade dos ataques aéreos ao sul da Faixa de Gaza mesmo após Israel ter indicado diretriz de deslocamento de civis para lá e a falta de condições para provisão de recursos básicos como água, alimento e suprimentos hospitalares, entre outros. É importante destacar, contudo, que a identificação de violações graves ao Direito Internacional pelo Estado de Israel nos territórios ocupados não é um fenômeno recente.


Na última quarta-feira (18), o Brasil conseguiu 12 votos no Conselho de Segurança da ONU, mas os Estados Unidos vetaram a proposta brasileira que pedia, principalmente, a criação de um corredor de ajuda humanitária para Gaza. Entre os membros do Conselho, houve duas abstenções — Reino Unido e Rússia —  e apenas um único voto contrário: dos Estados Unidos. Os cinco integrantes permanentes do conselho têm poder de veto, entre eles, os americanos.

— Tivemos uma demonstração clara da ineficiência do Conselho, com o veto dos Estados Unidos impedindo a aprovação da resolução apresentada pelo Brasil com grande concertação multilateral. A resolução condenava a violência contra civis e atos de terrorismo, demandava a imediata soltura de reféns, reforçava as obrigações do Direito Internacional aplicáveis, demandava a abertura de fluxo para provisão de bens e serviços essenciais aos civis em Gaza, demandava uma pausa humanitária para a entrada de agências da ONU e encorajava o estabelecimento dos corredores humanitárias e enfatizava a importância de conter o spillover (ramificação) do conflito pela região. Assim, as instituições internacionais multilaterais continuam sendo perigosamente enfraquecidas.

Reféns e ajuda humanitária - Neste domingo (22), um  segundo comboio de ajuda humanitária entrou em Gaza, de acordo com informações da mídia estatal do Egito. Foi permitida a entrada de 17 caminhões com alimentos, água potável e suprimentos médicos por Rafah, cidade palestina que faz fronteira com o Egito.

Ainda segundo informações vindas da fronteira de Rafah, mais seis caminhões-tanque com combustível também entraram em Gaza, essencial para manter os geradores de energia elétrica de dois hospitais no local.
Caminhão com ajuda humanitária fotografado dentro da Faixa de Gaza, após passagem pela fronteira com o Egito (G1).
Caminhão com ajuda humanitária fotografado dentro da Faixa de Gaza, após passagem pela fronteira com o Egito (G1). / Foto: REUTERS/Ibraheem Abu Mustafa


Ontem (21), porém, a facção radical Hamas afirmou que não vai discutir o destino de mais reféns em troca de ajuda humanitária, principalmente os militares capturados pelo grupo. O Hamas pretende usar os reféns como moeda de troca para que Israel pare com os ataques em Gaza.

Filipe Figueiredo também falou sobre a situação dos reféns e as dificuldades políticas na entrada de ajuda humanitária:

— Algumas questões são postas, e as principais são que uma pausa nos combates, e a própria ajuda humanitária fortaleceriam o Hamas, também por ainda termos dezenas, talvez centenas de pessoas tomadas como reféns dentro da faixa de Gaza, então como mandar ajuda humanitária com essas pessoas lá, pois ela pode servir exatamente como forma de barganha para a devolução delas. Além do parecer que essa ajuda humanitária transformaria o Hamas, não a população de Gaza, mas o Hamas como uma eventual vítima de agressão, sendo que tivemos os brutais atos terroristas do dia 7 de outubro. Esses seriam esses os principais empecilhos para a má vontade política em relação a entrada dessa ajuda humanitária.

Este domingo ainda foi marcado por manifestações em diversas partes do mundo. Na avenida Paulista, dezenas de pessoas levaram bandeiras em apoio à causa Palestina, e outras dezenas apoiavam Israel. Na França, cerca de 15 mil pessoas marcharam pelas ruas de Paris, no primeiro protesto em apoio à causa palestina desde o início do conflito entre Hamas e Israel.
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Quedas e promessas
30/09/2023 | 11h30
Foto: Cintia de Medeiros Galvão / https:/trilhandomontanhas.com
O celular já não notificava as mensagens, programado assim para desacelerar, e em dias bons, sonos mais profundos já teriam iniciado àquela altura. Passava das duas da manhã e ela estava no computador desde cedo. Pescoço esticado, uma espreguiçada com os braços para cima, e em ato contínuo, o queixo apoia-se nas mãos, com os cotovelos na mesa, olhando para a tela onde o cursor piscava depois do ponto final. Se estava pronto ou não, ela saberia no outro dia, depois de revisar novamente.

O trabalho lhe satisfazia, mas cobrava de si mesmo uma ligação mais íntima com a natureza, e tentava se organizar para o esporte e alguma arte. Por vezes conseguia, com a escalada. Praticava na academia perto de casa, mas gostava mesmo do ar livre. Era ali, em cumes, vales e cumeeiras que fazia mais sentido o esforço físico, e o afastar-se de aulas e artigos. Naquele dia, havia conseguido. Não seria a primeira vez em áreas montanhosas, já se aventurava antes em falésias, mas fazia tempo. Queria se reconectar, ir onde os sentidos se faziam mais fortemente.

O laptop foi fechado depois das duas, mas acordou cedo para ir. O destino era uma Chapada no interior do Nordeste, e haveria um bom pedaço de chão para percorrer de jipe antes do trajeto ser feito apenas por botas. Deixaria para dormir na barraca. A saída para o pico seria no escuro, quando o tapete de estrelas fosse visto em todo seu esplendor, naquela região de pouquíssima luz artificial. Era preciso sair ainda de noite, o único jeito de escalar nas primeiras horas da manhã, nas bordas de saliências desuniformes feitas naturalmente e por processos erosivos.

Depois da checagem habitual, que ela repetia antes de sair, ergueu a mochila nos ombros, onde estavam água, os mosquetões, a cadeirinha e o capacete. Algum medicamento e uma tala, para imprevistos. Vestia uma calça cáqui de material resistente e uma blusa de botões e mangas compridas. Por baixo, roupas apropriadas para terrenos mais acidentados e subidas verticais. A sapatilha seria a substituta das botas antes da subida para o cume, e a mochila maior daria lugar à uma espécie de pochete onde os equipamentos seriam levados. Uma bolsa com magnésio em pó, essencial para aumentar a aderência e retirar a umidade das mãos, ficaria a tiracolo.

O peso nos ombros não seria problema quando carregado de materialidade. O contrário, o peso mental, usado na analogia, esse sim. Cordas, polias e o Baudrier pesam, mas ela ficava mais leve a cada passo de dança com a montanha. Fazia bem. Aquilo não era uma ode à natureza, e não era exatamente catártico. Era apenas um desanuviar de pensamentos que o trabalho exigia dela.

O sol começava a mudar a cor das coisas quando os pés dela encontraram a primeira fenda na pedra. As rochas esculpidas eram pontos de apoio, e a respiração ficava mais profunda. Havia medo, e a dor era inevitável. Mas o que seria da vida sem elas? Será que teríamos avançado a passos largos para o progresso sem essas expressões do corpo vivo? Sem conflitos internacionais estaríamos dispostos a viver na aldeia global que hoje se formou, ainda que contraditoriamente? Havia medo em Churchill, e a dor dos que morreram e dos que ficaram com os espólios da guerra não foram evitados, mas o pior foi evitado. Foi evitado? Acho que não. Estaríamos em uma sociedade justa, mesmo os passos largos dados? Talvez não. Há tanto de injustiça no mundo, e sequer a fome de nossos compatriotas conseguimos vencer. Não, não houveram vitórias. Mesmo no ensinamento da dor, e depois dele. Mesmo que ainda tenhamos medo, ainda temos que conviver com fantasmas de guerra. Crianças, meu Deus, crianças! Não vencemos; perdemos. A dor e o medo não foram o bastante.

O som das pequenas pedras desprendendo-se da parede irregular, pelo esfregar da sapatilha, interrompeu os pensamentos dela abruptamente, e um pico de adrenalina fazia cada célula do corpo ser usada para sobreviver. Poucos segundos até o dedão do pé direito encostar em outra saliência de pedra, mais abaixo, e a estabilização ser realidade novamente. Mas não sem alguns arranhões no cotovelo, e um suspiro longo, que lembraram-na que era preciso concentração.
Foco. Em um buraco na parede de contorno liso, enfiou os dois joelhos, com as pernas flexionadas, formando dois fortes pontos de apoio: um com a ponta dos pés, outro com a paleta. Sacudiu as mãos, agora livres das pontas de pedra que antes segurava, e outro mergulho no pó branco no interior da sacola de magnésio.

A subida, e agora a queda, para ela ser confrontada com seus próprios limites, com sua própria humanidade. A lição que a natureza lhe dava foi rapidamente relacionada com os pensamentos que a fizeram cair. Quedas, retomadas, arranhões e retrocessos violentos. Ela entendeu, e agradeceu o ensinamento antes de continuar a subida.
Havia esperança para retomar a escalada, mas o que fez ela continuar foram as promessas. Pessoais e coletivas que havia feito, antes. Era preciso continuar por elas, mais que pelas esperanças; essas, carentes de motivação, sendo naturalmente passivas.

Agora, com a determinação focada de sempre, e a velocidade de impulsos retomada, e com o esvaziar possível dos pensamentos, ela seguiu. Antes do cume, um último desafio: a ponta de pedra final estava distante, por um erro de percurso. Promessa e esperança. Foi para trás só para pegar impulso, e em um salto chegou ao outro ponto. No alto da Chapada, ofegante e com as mãos na cintura, a paisagem compensava, mas havia algo mais forte que fez o sorriso dela surgir, quase que involuntariamente. Promessas cumpridas. O que seria do mundo e da democracia sem elas?
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Lulinha guerra e amor
18/04/2023 | 09h15
RICARDO STUCKERT/PR
A posição histórica do Brasil em relação aos conflitos armados em outros países é de neutralidade. Não apenas por questões essencialmente militares, mas também por interesses comerciais. Não faz bem a uma nação em desenvolvimento tomar posição em conflitos que não lhe dizem respeito — se não bastasse a irracionalidade que qualquer guerra sempre significa.

No caso do conflito entre Rússia e Ucrânia existe uma questão de fronteira e território muito específica que afeta uma quantidade enorme de países e pessoas que não estavam preocupadas com isso até a decisão russa de invasão. Não foi uma guerra declarada entre nações rivais. Foi uma invasão; uma tentativa de predominância pela força, de reconquista e de domínio.

Essa é a percepção explícita da ampla maioria dos países, em especial a União Europeia e Estados Unidos. Mas não parece ser a de Lula.

Em um país presidencialista como o Brasil, o que o chefe de Estado fala tem muito peso. “O presidente Putin não toma iniciativa de paz. O Zelensky não toma iniciativa de paz. A Europa e os Estados Unidos terminam dando contribuição para a continuidade dessa guerra” — disse Lula em entrevista nos Emirados Árabes, no domingo (16).

Nesta terça (18), Lula tentou se redimir e disse que “condena a violação da integridade territorial da Ucrânia”. Mas o estrago já estava feito. Afinal, qual o interesse do presidente do Brasil em estremecer relações diplomáticas? Existem correntes do PT ou de assessoria presidencial que influenciam nas posições de Lula nessas questões?

Os EUA como inimigo

Não é raro encontrar pessoas na esquerda mais radical que afirmam ser a operação “Lava-Jato” obra dos EUA. Há duas hipóteses que auxiliam nas teorias conspiratórias: a primeira diz respeito aos vazamentos do ex-funcionário da CIA, Edward Snowden, que comprovaram ações de espionagem dos Estados Unidos contra o Brasil, na época, no celular da presidente Dilma Rousseff e em questões relacionadas à Petrobrás. O segundo fato foram os cursos aplicados no Brasil contra lavagem de dinheiro, financiados pelos americanos.

Interesses comerciais muitas vezes escusos e busca por um controle mundial por parte dos EUA não são exatamente uma novidade. E espionagem não é uma exclusividade americana. Países investem em espionagem internacional por interesses diversos. Em fevereiro deste ano, um balão de coleta de informações controlado pela China foi abatido nos EUA, por exemplo.

Na questão da lavagem de dinheiro, os EUA precisam ter uma participação ativa, pois é um campo onde o terrorismo atua, tendo o país norte americano como principal alvo.

Criticar o imperialismo americano não pode passar pela defesa de uma “nova ordem mundial” com a China no comando. Não é razoável a ideia de trocar um imperialismo por outro. Assim como não é aceitável que ditaduras latino americanas como Venezuela e Nicarágua não sejam chamadas pelo nome.

A questão é que o Brasil precisa de seus arranjos comerciais internacionais, e tem na China e nos EUA seus principais parceiros. Quando o presidente, sem qualquer motivo lógico aparente, decide marcar posição em um conflito bélico com implicações mundiais, coloca o Brasil em um lado da história. E ela prova que o lado do invasor quase sempre é o lado errado.
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Uma guerra de informações - Rússia e Ucrânia em uma entrevista com Victor Del Vecchio
19/03/2022 | 06h22
O embaixador da Rússia no Conselho de Segurança da ONU, Vasily Nebenzya.
O embaixador da Rússia no Conselho de Segurança da ONU, Vasily Nebenzya. / Reprodução
Estamos, no Brasil, a pouco mais de sete meses para as eleições presidenciais, e não sabemos a quanto tempo do fim do conflito no leste europeu. Diz uma máxima, usualmente atribuída a Ésquilo, um dramaturgo da Grécia Antiga, que a verdade é a primeira vítima de uma guerra. Nos conflitos bélicos as narrativas importam, e as nações envolvidas dependem de seu uso para conseguir apoio — ou para aumentar a força do inimigo, quando usadas erroneamente.
Na guerra eleitoral brasileira, que desponta no horizonte, as narrativas também deverão ser determinantes. Mas na realidade que a Rússia impôs à Ucrânia desde o último dia 24, as consequências custam vidas humanas. No conflito que não tem raízes ainda mais antigas, e em qualquer outro, as informações são usadas como armas e, sendo verdadeiras ou não, influenciam nas decisões de guerra.
Além das fake-news, vivemos em tempos de pós-verdade, onde a crença pessoal do interlocutor é mais valiosa que a veracidade, mais importante que o próprio fato, os dois países, Rússia e Ucrânia, precisam convencer sua população de que ela está do “lado certo”. No caso da Ucrânia, a surpreendente resistência foi instada por um presidente que soube usar a mídia e as redes sociais. Na Rússia, Putin controla a imprensa e isola-se cada vez mais.
Reprodução
O advogado e consultor em Direitos Humanos, Victor Del Vecchio, pesquisador do Observatório de Migrações de São Paulo/USP, diz que o conflito atual também é uma “guerra de informações”. Del Vecchio concede uma entrevista a este espaço e comenta sobre a primeira conflito armado entre nações "transmitido instantaneamente e nessa magnitude” da história.

Para além das narrativas, as guerras também são regidas por leis. No Direito Internacional, segundo Del Vecchio, não existe, apesar do que possa parecer, uma força acima dos países. Mas sim um esforço jurídico refletido em tratados e acordos que “dependem da adesão das nações para que ele funcione efetivamente”.
Nos estudos da Escola Ibérica da Paz a doutrina do "crime contra o gênero humano", ou "crimes contra a humanidade" surgem como instrumentos e princípios norteadores do direito internacional, que versa sobre guerra e informação, mas fundamentalmente sobre direitos humanos.
Confira a entrevista com Victor Del Vecchio:
Edmundo Siqueira - Tratados internacionais e a Carta das Nações Unidas vêm sendo violados por Vladimir Putin  repetidamente no conflito com a Ucrânia. Em tempos de guerra, a fragilidade desses documentos e acordos é exposta, e esbarram na soberania das nações. Como o direito internacional moderno pode criar efetividade para conter tais violações?
Reprodução
Victor Del Vecchio - Essa é uma questão muito delicada, uma vez que é importante lembrar que não existe, no direito internacional, uma força coatora que estaria acima dos países. O grande paradoxo desse direito, inclusive, é que ele depende da adesão das nações para que ele funcione efetivamente. A Rússia, que é uma nação que tem uma posição de poder com muito destaque no cenário internacional, não só por suas questões geopolíticas, mas também pela configuração pela qual o sistema ONU se desenhou, notadamente o Conselho de Segurança, na qual a Rússia tem poder de veto, existem sim, muitas limitações. No entanto, o Direito Internacional pode servir não só para apontar formalmente, juridicamente falando, quais são as violações que são cometidas, e isso dá peso e ajuda a quantificar melhor o que vem sendo cometido e com isso medidas econômicas e políticas serem tomadas, mas também nos Fóruns Multilaterais, nos espaços de tomada de decisão, pode criar as condições para que a Rússia possa ser colocada à parte, ser colocada de escanteio.
"Com certeza o Direito Internacional olha para a comunicação como um elemento crucial. Inclusive, a própria OTAN passou a considerar a dimensão cibernética como um dos campos da guerra. Então, soma-se ao campo terrestre, aquático e espacial, nós temos também o campo cibernético, no qual a comunicação está inserida." (Victor Del Vecchio)
Edmundo Siqueira
- Em conflitos bélicos, as narrativas importam e as nações envolvidas dependem de seu uso para conseguir apoio — ou para aumentar a força do inimigo, quando usadas erroneamente. Muitas vezes essas narrativas se enquadram na pós-verdade, onde a crença pessoal do interlocutor é mais valiosa que a veracidade, mais importante que o próprio fato. O direito internacional olha para a comunicação como um elemento crucial? Existem mecanismos de controle de inverdades ou manipulações?

Victor Del Velcchio em entrevista recente na Globo News
Victor Del Velcchio em entrevista recente na Globo News / Reprodução
 
Del Vecchio - Com certeza o Direito Internacional olha para a comunicação como um elemento crucial. Inclusive, a própria OTAN passou a considerar a dimensão cibernética como um dos campos da guerra.
"Afinal, é uma guerra de informações também, basta percebermos como a opinião pública repercute também nas sanções, e em como todos os mecanismos a favor e contra a guerra são utilizados. Precisamos ressaltar também que essa é a primeira vez na história que temos uma guerra transmitida instantaneamente, e nessa magnitude" ()
Então, soma-se ao campo terrestre, aquático e espacial, nós temos também o campo cibernético, no qual a comunicação está inserida. Afinal, é uma guerra de informações também, basta percebermos como a opinião pública repercute também nas sanções, e em como todos os mecanismos a favor e contra a guerra são utilizados. Precisamos ressaltar também que essa é a primeira vez na história que temos uma guerra transmitida instantaneamente, e nessa magnitude. Já tivemos a Guerra do Golfo, como a primeira transmitida “ao vivo”, mas hoje temos em um grau muito maior, em uma dimensão muito superior, justamente pelo uso das redes sociais, que permite uma dissipação e criação de conteúdo muito mais rápida e eficaz, e perigosa do ponto de vista da criação de fake news.

Edmundo Siqueira - Brasil, EUA, Hungria, Filipinas e outros países do globo viram governantes de extrema-direita chegar ao poder. Ondas neofascistas e neonazistas surgem com certa força no cenário. Nesses fenômenos históricos requentados o nacionalismo é evidente. Estamos passando por um processo de transição que passa inevitavelmente por conflitos entre cosmopolitas e nacionalistas? A guerra na Ucrânia é reflexo desses movimentos?
Del Vecchio - Não diria necessariamente que vivemos em uma época em que exista esse conflito entre nacionalistas e cosmopolitas. Mas vivemos em uma era onde o multilateralismo e o regionalismo mostram-se em decadência, está na UTI, vemos isso com o movimento do Brexit, a Polônia falava em sair da União Europeia há pouquíssimo tempo, a ONU com problemas financeiros por falta de pagamento, os Fóruns mundiais sendo cada vez mais esvaziados, inclusive com as grandes potências tentando se regionalizar. Podemos ver isso com os EUA, sobretudo na era Trump, onde foi tirado investimento de organizações importantes, se retirou de acordos, e isso acaba a fazendo nascer nacionalismos nesse vácuo de poder.
Eu entendo que esse conflito é reflexo desses movimentos em alguma medida. Não só pelo perfil bastante expansionista e nacionalista da Rússia, que vem não apenas tentando ganhar aliados, mas também territórios, e quer garantir segurança militar através de seus aliados e outros governos. E é aí que o Zelensky entra, que em contrapartida também vem desse movimento nacionalista, na Ucrânia, onde tem em uma de suas manifestações grupos neonazistas. Não podemos caracterizar, em minha opinião, o regime ucraniano como um país ou um governo nazista. Mas ele tem flertes como neonazistas, com grupos formalmente agregados ao seu exército e ocupam governos locais.
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Moïse e a barbárie complacente
01/02/2022 | 09h03
Imagens do que ficou conhecido como o "holocausto colonial belga", no Congo. Imagem retirada do site Aventuras na História /Reprodução.
Imagens do que ficou conhecido como o "holocausto colonial belga", no Congo. Imagem retirada do site Aventuras na História /Reprodução.
Moïse tinha 16 anos quando chegou ao Brasil. Em companhia de sua mãe e seus irmãos, o garoto tinha esperança de uma vida nova no além-mar. Como refugiados do Congo, pensavam em deixar para trás o que recebiam como compatriotas do país africano: violência, desigualdade, fome e guerra.
Por aqui encontraram trabalho. Mesmo longe das condições ideais de cidadania, a família via o Rio de Janeiro como sua casa. Cidade cosmopolita, receptiva, de maioria negra e alegre. Foi no Rio que Moïse Kabamgabe conseguiu trabalho, em um quiosque perto do Posto 8, na Barra da Tijuca. Ele trabalhava por diárias no Tropicália.
O Rio igualou-se ao Congo, na segunda-feira da semana passada, 24. Pouco depois das dez da noite, uma discussão envolvendo um funcionário do quiosque terminou com a morte de Moïse. Covardemente amarrado e espancado por cinco homens. Morto a pauladas. O crime bárbaro — todo filmado por câmeras de segurança — foi assistido por outras pessoas que estavam no local e nada fizeram para impedir.
A família do congolês, inconformada com a naturalização que foi tratada a violência extrema, resolver se manifestar no último sábado (29). O protesto, na mesma praia que Moïse foi assassinado, conseguiu que o país tomasse conhecimento da barbaridade. O vídeo do espancamento circulou nas redes sociais e pautou os principais veículos de comunicação.
Pela versão dos familiares, Moïse foi cobrar uma dívida. O dono do quiosque Tropicália estaria devendo dois dias de serviços prestados. Apresentando outra motivação, um dos envolvidos, Alisson de Oliveira, disse que Moïse e um senhor, estavam brigando. “Ele teve um problema com um senhor do quiosque do lado, a gente foi defender o senhor e infelizmente aconteceu a fatalidade dele perder a vida”, disse.
Movimento de artistas e lideranças do movimento negro pedindo justiça.
Movimento de artistas e lideranças do movimento negro pedindo justiça.
O fato de uma pessoa ser amarrada e espancada até a morte, por outras cinco, suplanta qualquer explicação. Para a barbárie não há motivação; há sangue e ódio. Segundo o Instituto Médico Legal (IML), Moïse Kabamgabe morreu por traumatismo, com contusão pulmonar. Os pulmões, com áreas hemorrágicas, também tinham vestígios de broncoaspiração de sangue.
Moïse não conseguiu fugir da guerra. Saiu do Congo, mas veio viver em um país que há muito se distanciou do conceito de “homem cordial”, definido no livro ‘Raízes do Brasil’ do historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda. Talvez nunca tenha sido de fato cordial, basta olhar o histórico recente de escravidão. Não há evidência concreta que o crime contra Moïse tenham motivações racistas. Embora certamente exista relação ali. Os homens que o espancaram não conseguiriam fugir disso; é estrutural.
Nos últimos anos o Brasil se tornou ainda mais violento, cheio de ódio e preconceito, e aprofundou sua desigualdade. É um país que aplaude justiçamentos. Apenas no primeiro mês de 2022, e apenas na Zona Sul do Rio, 12 linchamentos foram registrados. Nas últimas eleições presidenciais, o vencedor vendia a ideia, que foi comprada por muitos, que “bandido bom é bandido morto”. Há cerca de 40 anos, as pessoas davam entrevistas nas ruas do Rio afirmando que homossexuais deveriam ser mortos.
Voltando à barbárie atual, em um depoimento emocionado transmitido aos quatro cantos esta semana, um parente de Moïse desabafa:
“Ele trabalhava! A gente trabalha, duro! Fugimos da África, para sermos acolhidos aqui...ai, Brasil!...Uma mãe, segunda casa...como vai matar o irmão trabalhando? Justiça...vai ter que ser feita”.
Vai ter que ser feita.
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Campos e Jacarezinho - resultados dos nossos silêncios resignados
09/05/2021 | 10h26
“O fotojornalismo é a captura do acontecimento em pleno vôo”, como definiu a jornalista e doutora em Comunicação, Beatriz Sallet. A imagem conta uma história, humaniza o texto e muitas vezes traz a identidade dos personagens, oferecendo um rosto ao fato. “Jornalismo é trabalho coletivo, ou nada” — dessa vez definido por Aluysio Cardoso Barbosa. É preciso cooperação. A foto não “vale mais que mil palavras”, ela conta histórias e fatos, assim como as palavras. São o que fazem as duas fotos aqui trazidas.
A primeira é do fotojornalista Ricardo Moraes, da Reuters.
A imagem mostra um policial na operação do último dia 06, no Jacarezinho (RJ). Ele sobe o morro, correndo, concentrado e armado com fuzil. Como esperado, afinal o Rio de Janeiro vive uma guerra perversa e sangrenta. O policial estava arriscando sua vida, foi treinado e condicionado à matar primeiro, para que ele possa voltar para casa com vida, no lugar de uma medalha. O inimigo vive à margem de qualquer civilidade, está muito bem armado e atira para matar. Não há prisioneiros nessa guerra. Os capturados são torturados e mortos. O policial não tem qualquer responsabilidade nela. É mais uma vítima.
Mas é preciso perceber a história completa que a foto traz. Os moradores da comunidade incluíram em seu cotidiano a cena. Um policial correndo com fuzil na mão já faz parte da paisagem deles. Na foto e nas comunidades mais carentes a maioria esmagadora é negra. Na imagem dois moradores caminham para o lado oposto, de costas para o agente, anestesiados de qualquer perigo que possa decorrer dali. Duas mulheres riem, como se contassem algo uma para outra, de maneira relaxada. Dois homens, esses mais sérios, assistem passivamente. Embora o policial represente o Estado ali — o único com poder coercitivo numa democracia —, a naturalização daquela cena mostra a total ausência de direitos básicos e da presença de políticas públicas. A falência de uma política de segurança se evidencia quando o caráter preventivo é quase inexistente. Traficantes assumem o papel de governo, nesse vácuo. Não é um estado paralelo. É o único naquela realidade. E o policial representa um invasor externo. E o combate é assistido pelo povo, passivamente e cotidianamente.
Leia aqui artigo do Policial Federal Roberto Uchôa, também blogueiro do FOlha1, sobre o caso: Um dia sangrento
“Tudo bandido. Entra um policial, em uma operação normal, leva um tiro na cabeça de cima de uma laje (...) são verdadeiras narcoguerrilhas, que tem controle sobre determinadas áreas”. Foi como o vice-presidente, Hamilton Mourão, definiu a operação no Jacarezinho, a mais sangrenta da história do Rio, que deixou 28 mortes — dentre elas a de um policial civil. Que será substituído por uma medalha na sala de sua família. Um agente mal remunerado, sem retaguarda, sem estrutura e lutando de forma extremante desigual em uma guerra de conivências. Repito: o policial não tem qualquer responsabilidade nela. É mais uma vítima.
A fala do vice-presidente traz a falência do governo — moral e administrativa. Reconhecendo que são narcoguerrilhas e que ocupam territórios, coloca o Governo Federal, que ele representa, como principal culpado pelo desastre. Crime organizado é responsabilidade do ente federal. O Estado brasileiro não está presente nas causas e também não está nas consequências.
A segunda é do fotógrafo César Ferreira, da equipe de comunicação da prefeitura de Campos.
A foto mostra uma mãe alimentando sua filha no restaurante popular, recém-inaugurado no centro da cidade. De máscara no queixo, possivelmente por também se alimentar. Divisórias de acrílico tentam dar mais proteção e afastamento. Outras pessoas se alimentam. As instalações novas, as bolas azuis e brancas ao fundo e a sentimentalidade empática trazida podem levar a foto para servir como material de propaganda política. Assim como a inauguração do restaurante sugeriu, levando ao local os políticos e suas equipes, mas produzindo efeito contrário quando promove grande ajuntamento de pessoas em um momento que pedem sacrifício ao comércio.
A imagem evidencia também a nossa situação de miséria social. Milhares de pessoas aglomeram-se e se arriscam por um prato de comida. Gente que vai ao local em transporte público lotado, que está desempregada e precisa escolher entre a doença e fome. Inclusive crianças. E agradecem passivamente o alimento recebido. Alegram-se, com toda razão, por poder alimentar seus filhos. Não se pode culpa-los por aglomeração alguma. Eles são mais vítimas, nessa outra frente de batalha da guerra brasileira. É o Estado ausente novamente. Políticas públicas ineficientes, novamente.
Nós nos acostumamos com a morte e a cada semana com tragédias. Nas últimas trouxeram o massacre na creche em Santa Catarina, a morte do ator Paulo Gustavo, e a fúnebre marca de 400 mil mortos pela pandemia, entre outras. Vamos nos anestesiando pela dor de hoje - e por tantas dores passadas. O pressuposto do brasileiro é a tragédia. Acostumamo-nos. Anestesiados, alimentamos nossa passividade e nossos silêncios resignados.
Ontem, dia 8 de maio, comemora-se o fim da Segunda Guerra, quando em 1945 o horror do nazismo alemão foi derrotado. Poderíamos estar comemorando dias melhores. Mas acostumamos com sangue preto escorrendo nas vielas, com crianças passando fome, com policiais assassinados, com incompetências governamentais, com boicotes à saúde pública e com outros tantos horrores. Uma sociedade que silencia é uma sociedade conivente.
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A democracia que morre por dentro - Lamentaremos outro 31 de março no Brasil?
30/03/2021 | 05h55
1964 - O ano que parece não ter terminado
1964 - O ano que parece não ter terminado / Reprodução
“Grande dia da liberdade!” “Um marco para a democracia brasileira!” “Reformas (militares) que desenvolveram o Brasil!” Essas frases são do ano passado, em “comemoração” ao dia 31 de março de 1964, dia do golpe militar, que iniciou uma ditadura sangrenta no país. A primeira foi dita por Bolsonaro, as outras duas por Hamilton Mourão (vice-presidente) e Fernando Azevedo e Silva (então ministro da Defesa, exonerado hoje, 30), respectivamente. No ‘31 de março’ de amanhã, 57 anos depois, o cavalo ensanguentado do autoritarismo parece continuar galopando; e Bolsonaro pretende cavalgar.
Os últimos dias foram atípicos — até para um governo atabalhoado como o de Bolsonaro. Foram seis trocas no primeiro escalão e os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica entregaram seus cargos. O chamado Centrão compeliu a saída do chanceler Ernesto Araújo e emplacou uma representante, a deputada Flávia Arruda, na Secretaria de Governo. Flávia é esposa do ex-governador do Distrito Federal José Roberto Arruda, preso por corrupção. As causas e consequências da reforma ministerial forçada exigem do presidente conciliação e cautela. Mas ele — como de costume — dobra a aposta.
A defesa foi a área mais afetada. Na troca de comando, Azevedo e Silva deixa um recado: “preservei as forças armadas como instituições de estado”. Claro como água limpa — Bolsonaro pretende transformá-las em instituição de governo. A questão central nessa crise, que nos distancia de 64, é a real capacidade do presidente em guiar a cavalaria rumo à ruptura institucional e democrática. Por outro lado, percebe-se até aqui a ampla adesão de generais ao governo, inclusive da ativa, como o ex-ministro da Saúde Pazuello. O que os aproxima dos anos chumbo.
Presença ostensiva de militares no Governo
Presença ostensiva de militares no Governo / Reprodução
Se as forças armadas embarcarão em uma aventura golpista (novamente!), o tempo dirá. Mas, episódios recentes demonstram que há uma base radical de apoiadores do presidente pronta para o ataque, e sedenta por migalhas de atenção. E o bolsonarismo, através de ações orquestradas, alimenta a manada. A verborragia da deputada Bia Kicis é uma das principais armas para isso. Como no último domingo, quando o soldado Wesley Soares, em evidente surto psicótico, foi alvejado após ter erguido um fuzil e disparado contra os colegas da PM que negociavam a sua rendição, na Bahia. O policial tinha o rosto pintado de verde e amarelo.
Bia Kicis incita via redes sociais um motim e chama de “herói” o soldado morto, alegando que estaria lutando contra “ordens ilegais do governador Rui Costa da Bahia”. O filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, segue a mesma linha. Kicis, que é presidente da comissão mais importante da Câmara, a CCJ, em tese percebendo a barbaridade que havia cometido, apaga a postagem e diz que o caso “precisa ser investigado”.
Como as democracias morrem?
As democracias estão sendo testadas em vários países. Mas a maneira “moderna” de decretar sua morte é a corrosão interna. Ditadores como Putin (Rússia) e Maduro (Venezuela) vivem sob a égide de uma democracia fajuta — há eleições, as intuições funcionam, mas o regime é totalitário e inexiste oposição. O que define a democracia não é o governo e sim a existência de freios e contrapesos e da oposição. No Brasil, a ida do Centrão ao governo, garantindo a conivência do legislativo, o aparelhamento de instituições de controle, da segurança pública e da defesa (leia-se Forças Armadas) podem garantir uma escalada golpista. Esses elementos tem feito com que neofacistas a se perpetuem no poder e decretem a morte do sistema democrático.
O caso do soldado baiano é emblemático. A base de sustentação ideológica do governo Bolsonaro tem, em boa parte, braço armado. A extrema direita delirante que acredita em uma há uma ameaça comunista iminente no Brasil, composta basicamente por antiglobalistas, olavistas e neofacistas, cooptam grupos paramilitares nas milícias e nas forças policiais, para servirem como um “último recurso”. As corporações policiais, que são compostas em sua maioria por trabalhadores responsáveis e distantes desse radicalismo, são empurradas à uma generalização perigosa e contam com apoio de setores da esquerda, que teimam em colocar a pecha de fascista ou “de direita” em todo e qualquer policial.
O país já passou pela experiência trágica de uma ditadura militar. Se o apoio das Forças Armadas teve alguma relação ingênua com o “fim da corrupção”, e o golpismo nos moldes de 64 estaria definitivamente enterrado na história, os movimentos dos últimos dias poderão levar ao desembarque do governo. Embora devam prestar contas por conivência criminosa e por condutas errôneas, o radicalismo bolsonarista pode trazer uma espécie de redenção aos generais, caso decidam pelo rompimento. Caberá a eles sacrificar o cavalo galopante do autoritarismo e colocar o capitão na rédea. Estariam dispostos a deixar 64 no esgoto que merece? A conferir.
Grupo de apoiadores radicais do presidente Bolsonaro ameaçam conflito armado.
Grupo de apoiadores radicais do presidente Bolsonaro ameaçam conflito armado. / Reprodução
Saudação, de grupo identificado como paramilitar, à Bolsonaro.
Saudação, de grupo identificado como paramilitar, à Bolsonaro. / Reprodução
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Edmundo Siqueira

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