A polarização afetiva e as armadilhas coletivas
28/01/2024 | 12h47
Imagem gerada por IA - Edmundo Siqueira

Não seria impossível — talvez tenha existido de fato — ver um vendedor de rua em qualquer capital brasileira expondo suas camisas de time de futebol em um varal, e entre elas estivessem camisas da Palestina e de Israel. O Brasil atravessa um tempo de polarização extremada e de pensamento binário, que mesmo sobre qual lado você está em conflitos no Oriente Médio são determinantes para formar identidades.

Vivemos, por vários motivos, o que está sendo chamado de “polarização afetiva”, que é quando as discussões e ideologias deixam de ser políticas e passam a ser formadoras de identidade e de pertencimento de grupos sociais. Em outras palavras: a depender da opinião sobre um tema, alguém pode ser aceito ou expulso de uma tribo, de um grupo de pessoas que radicalizaram suas posições.

Relacionar identidade e pertencimento com posições políticas, transformam o jogo democrático em algo tribalizado, essencialmente emotivo e afetivo, portanto. Podemos culpar as redes sociais, mas determinar qual raça ou tribo alguém pertence sempre foi um instrumento poderoso para o ódio, esse significativamente mais antigo que as redes.

A grande contribuição que o mundo virtual trouxe para esse jogo antipolítico foi a gamificação. Uma armadilha que traz ao manipulado uma sensação de prazer e satisfação quando oferece recompensas imediatas por cumprir determinada tarefa ou agir de determinado jeito. Os “likes” e “cliques” se multiplicam por posições radicais, ou por conteúdos que geram discórdia.

Os algoritmos não estão interessados em posições moderadas, principalmente políticas. Mas, de novo, não podemos culpar os instrumentos. O algoritmo responde aos estímulos dados pelas pessoas, que mesmo manipuladas, refletem suas próprias posições extremadas.
Sacadas de apartamentos em São Paulo exibindo bandeiras de Israel e da Palestina.
Sacadas de apartamentos em São Paulo exibindo bandeiras de Israel e da Palestina. / Folhapress - Folha de S. Paulo
Essas armadilhas modernas são eficazes e massificadas. Instrumentos virtuais que utilizam-se de sensações e instintos humanos, esses universais. Portanto, mesmo que tenhamos consciência desses fatores, não é humanamente possível nos colocarmos alheios a esses estímulos, e possivelmente nos reconhecemos caindo em algumas dessas armadilhas.


Voltemos ao caso das camisas de time misturadas às predileções na guerra do Oriente Médio: embora seja um conflito importante, de contornos milenares e envolto em questões religiosas, assumir uma posição neutra ou mediadora não é aceitável nesse jogo antipolítico. Defender a solução de dois estados — Israel e Palestina — não é uma posição que gera “engajamento”. É preciso que você defina de que lado está, mesmo em uma situação de alta complexidade.

Além de permitir que mais e mais pessoas se engajem, estimular posições binárias permite que as soluções sejam de fácil entendimento. Ora, basta eliminar Israel para que o povo palestino deixe de sofrer com o genocídio. Ou, fortaleça o domínio de Israel na região e terá a paz.
Muro com inscrições em hebraico, português e inglês, onde se lê "paz", em Higienópolis, bairro nobre de São Paulo.
Muro com inscrições em hebraico, português e inglês, onde se lê "paz", em Higienópolis, bairro nobre de São Paulo. / Folhapress - Folha de S. Paulo

O maniqueísmo proposital estimulado pelas redes simplifica decisões complexas, a ponto de pessoas determinarem que um semelhante está do lado do bem ou do mal por suas posições políticas. Se alguém é a favor de dois estados no conflito Israel e Palestina, está do lado do mais forte, portanto configura-se como mal na visão de alguém pró-palestina. E vice-versa.

Política e conflito - Radicalizar os temas se tornou crucial para os políticos que buscam visibilidade e engajamento virtual, e é preciso que um conjunto de posições seja pré-estabelecido para que esse representante seja aceito. Temas como aborto, armas e vacinas se tornaram dogmas definidores nos últimos tempos, no Brasil. Não há meio termo, é preciso que um combo decisório seja apresentado pelo político. Ou se é contra, ou se é a favor.

Há pouco mais de 80 anos, o mundo assistia tropas alemãs marcharem pela Europa em nome de dominação ideológica, maniqueísmo, radicalismo e tribalismo. Há pouco mais de 135 anos o Brasil açoitava e comercializava pessoas por questões raciais. Fatos que, historicamente, foram "ontem".

Discursos de ódio podem ser ouvidos hoje em mesmo tom, assim como camisas e bandeiras tremulam em varais e varandas ideológicas, esperando que o próximo manipulado as comprem e as exponham como sua identidade. São armadilhas perigosas. E repetidas. 

Senhora alemã lendo propaganda nazista exposta em locais públicos.
Senhora alemã lendo propaganda nazista exposta em locais públicos. / Holocaust Encyclopedia



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Lembrai-vos da liturgia do cargo
02/11/2023 | 12h11




Desde que a humanidade decidiu abrir mão de parte de sua autonomia e liberdade em nome de um pacto social — uma convivência coletiva pautada em normas e com a presença de um organismo chamado “Estado”, atuando não apenas nos ordenamentos mas com poder real sobre a vida das pessoas —, a preocupação com os preceitos éticos dessas relações foi uma constante.

O axioma acima, caro leitor, não é mero recurso retórico. Sócrates já pensava sobre a ética, já formulava teorias sobre como as pessoas agiam e reagiam diante do “bem” e do “mal”. Isso 300 anos antes de Cristo (ou antes da Era Comum, termo mais apropriado em tempos de guerra no Oriente Médio). Seu pupilo, Platão, e o aluno dele, Aristóteles, continuaram a refletir sobre ética e vida social.

“Conhece-te a ti mesmo”, dizia Sócrates, fazendo alusão direta à ideia de que quando o indivíduo conhece quem ele é, e onde está no mundo, age eticamente. Platão trouxe a discussão para as cidades — as pólis. Para ele, alguém só seria realmente bom sendo efetivamente um “bom cidadão” com a “subordinação do indivíduo à comunidade”, e na necessidade de um Estado. Já Aristóteles, entendia que as virtudes do indivíduo estavam relacionadas com sua prática, e essa deveria refletir em cidadania, participação, e reforçava a inseparabilidade entre ética e política.

Sim, há um abismo temporal e comportamental dos tempos do trio de filósofos da antiguidade. Mas as mesmas questões que refletiam continuam a produzir basicamente os mesmos efeitos, hoje. Quando discutimos políticas públicas, impostos, corrupção ou escolhemos em quem votar de dois em dois anos, estamos analisando, conscientes ou não, através de lentes éticas e morais.

Não se trata de moralismo. O julgamento ético que se faz de uma pessoa pública, ou de um político, abrange diversas questões relacionadas à postura, ao cuidado com o erário, ao passado dessa pessoa, e até seu linguajar e vestimenta. E essencialmente o modo que se relaciona com os seus, com inimigos e com desconhecidos.

O discurso do político importa, não apenas nas tribunas, mas o que e como alguém investido em um cargo público fala, influencia — para o bem e para o mal, no conceito socrático ou contemporâneo. São escolhas do ser político, mas que não se pode esquecer que também são seres sociais.

Ser agressivo em um discurso público agride o ouvinte, mas ofende ainda um princípio básico do fazer político ético: a preocupação com a comunicação e com o uso da língua para construir uma sociedade melhor, e principalmente permitir que mais pessoas possam participar e se sentirem representadas.

A construção da democracia parte de uma ideia abstrata, mas se consolida quando governo e sociedade têm voz e meios de fazer com que seus problemas sejam resolvidos. Nas cidades, é preciso criar as condições para que as pessoas se articulem num nível local de forma consistente, que possam ser ouvidos e sentir-se representados. A agressividade na comunicação e na construção dos discursos públicos afasta; não inclui.
Portanto, é uma postura antidemocrática.

Por tudo isso existe um termo que faz alusão aos rituais católicos que no meio político é conhecido por “liturgia do cargo”. No Brasil, a expressão foi popularizada pelo ex-presidente José Sarney que vinculou a responsabilidade de ocupar um cargo público — no seu caso de presidente da República — perante a população. Das palavras ditas, ao comportamento pessoal, tudo tem seu peso político, sua importância na construção da democracia.

Quando o político age agressivamente, com denuncismo ou tentando criar animosidade contra seus adversários, ele afeta sua moralidade individual, e assim destrói laços vitais e necessários que são visíveis ao povo.
Por outro lado, pode atrair seguidores que se identificam no conflito bélico comunicativo promovido pelo político, principalmente em tempos de redes sociais, mas isso não se sustenta. Primeiro pelo próprio esgotamento do conflito, depois pela percepção de quem o segue que sofreria os mesmos ataques caso desagradasse o político.

O julgamento eleitoral não é apenas relacionado aos resultados que um governante entrega, e embora haja muito de passionalidade nas eleições, a razão também está presente. Quem decide participar do escrutínio público de forma antiética e antidemocrática, utilizando-se de comunicação violenta, atrai o mesmo do eleitorado.

E vale lembrar, mesmo os pensadores que olharam para ética e a relativizaram, como Maquiavel, não dispensaram a obediência aos rituais formais de quem ocupa cargo público. Sob pena de atrair aliados e eleitores que dispensem qualquer liturgia. “O primeiro método para estimar a inteligência de um governante é olhar para os homens que tem à sua volta”, ensinou Maquiavel.
 
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As promessas de Wladimir e da oposição
21/07/2023 | 09h52
Reprodução/PMCG
A democracia é antes de tudo uma promessa. Esse modo de viver em sociedade exige que acreditemos na promessa de bem estar social e que os governantes representem da melhor forma possível o interesse de todos — não se trata de atender os desejos da maioria, mas sim definir prioridades, dirimir desigualdades e dar voz aos excluídos.

A Constituição de 1988 é repleta de promessas, como “erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais e regionais” e “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, definidas já em seus primeiros artigos. Em Campos, as promessas do governante — e da oposição — podem ter peso determinante.

A eleição de 2024 em Campos se desenha para ter um caráter plebiscitário. Wladimir Garotinho se mantém como um prefeito bem avaliado, e com a persistência dos interesses mútuos que resultaram na chamada “pacificação”, o cenário eleitoral tende a ser protagonizado por Wladimir. Portanto, e caso se concretize, a população deverá decidir essencialmente entre a permanência ou não do governo.

Na última pesquisa divulgada pela Folha, feita pelo Instituto GPP entre 10 e 12 de março, Wladimir teve avaliação “ótima” ou “boa” por 55,5% dos campistas, enquanto 34,8% regular.  Outros 8,8% avaliaram como ruim (3,3%) ou péssima (5,5%). Nas intenções de voto o prefeito liderou com 50,4% (61,4% dos votos válidos).

Infográfico: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.
A oposição e o primeiro turno


A força eleitoral da oposição irá depender de conjunturas: altas taxas de aprovação do Governo Federal pode levar ao impulsionamento de uma possível candidatura do PT em Campos (tudo indica que as convenções escolham o reitor do IFF, Jefferson Manhães, como candidato), o azedamento da pacificação levando algum Bacellar ao jogo, ou abrindo campo para outras possíveis candidaturas como a do deputado Thiago Rangel e o ex-prefeito Sérgio Mendes, ou algum tropeço sério do prefeito.  Mas, hoje, são apenas promessas.

Para Wladimir interessa mais a vitória em primeiro turno. Caso a disputa seja em dois, tudo pode acontecer. Claro que inclusive nada, como diria Marco Maciel, ex-governador de Pernambuco. A ida de um dos candidatos de oposição para o segundo turno pode significar que a cidade ficou satisfeita com a arrumação da casa por Wladimir, mas pensa em mudar o administrador.

Apesar de ser seu primeiro mandato no executivo, Wladimir é um político forjado nos bastidores, acompanhando seus pais em Campos e no Estado. E se mostra habilidoso politicamente e administrativamente, com excelente presença nas ruas. Manteve um ritmo de campanha com a máquina funcionando azeitada. Conjunção difícil de acontecer; uma olhada em suas redes sociais e isso se confirma.

As promessas de Wladimir e da Oposição

Para que o melhor dos cenários aconteça para Wladimir, a vitória no primeiro turno, o prefeito precisará manejar expectativas e usar o tempo a seu favor. Obras e ações de zeladoria — como o asfaltamento da área central e a pintura no cais da Lapa — devem estar prontas e conservadas em ano eleitoral, e as obras estruturantes — como transporte público, estradas e pontes — devem ser entregues parcialmente. Assim, as promessas de manter e concluir ficam factíveis ao eleitor.

Além das promessas factíveis, Wladimir tem o desafio de manter promessas de continuidade de governo. A revitalização do Centro Histórico, o restauro do Solar dos Airizes e do Colégio, o Novo Mercado, a alavancagem do turismo e do comércio, a continuidade da administração dos hospitais e a reformulação no ensino, como exemplos, podem servir para um acordo da população para que a vitória seja concedida no primeiro turno, decidindo o plebiscito favoravelmente ao governo.

Para a oposição, as promessas e expectativas devem superar as do governo. Em um governo bem avaliado, as promessas oposicionistas devem ser, ou parecer, melhores para o eleitor. Mostrar erros do governo sem apresentar promessas melhores, pode levar a desconfiança nesse cenário.

A democracia é feita de promessas. E cabe ao eleitor escolher em quais acreditar. Porém, é um sistema social e político que exige participação e cidadania — votar é apenas uma das formas delas acontecerem. E que fique claro: promessas, na democracia, devem ser cumpridas.
 
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Subdesenvolvimento romântico
11/06/2023 | 06h08
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David Drew Zingg era um repórter fotográfico nascido em New Jersey. Trabalhava para as revistas Life e Vogue. Veio para o Brasil cobrir a regata oceânica Buenos Aires-Rio, no final dos anos 1950. Naquela ocasião, teve a oportunidade de assistir um dos primeiros shows da Bossa Nova, na boate Bon Gourmet, em Copacabana. Se encantou profundamente com a magia cadenciada de Tom Jobim, Vinicius de Moraes e João Gilberto, a ponto de vir morar no Rio e depois em São Paulo. Zingg foi um dos principais responsáveis pelo Concerto de Bossa Nova no Carnegie Hall, de Nova York, em 1962.

“David, o Brasil não é para principiantes”. Esse foi o alerta dado por Tom Jobim, em voz ritmada, ao repórter da Vogue quando este lhe confidenciou suas pretensões de mudança de continente.

O maestro tentava mostrar que o Brasil não era apenas aquilo que ele viu na Bon Gourmet, e sim um país repleto de contradições — ao mesmo tempo que um regime de exceção se desenvolvia a passos largos para acabar com qualquer ideal democrático que se construía, nascia o de mais genial em música, arte, literatura, cinema, jornalismo e teatro que pôde se produzir por aqui.
 Frank Sinatra e Antônio Carlos Jobim
Frank Sinatra e Antônio Carlos Jobim / Courtesy of Frank Sinatra Enterprises


As contradições do Brasil não são para principiantes, de fato. Depois do regime ditatorial de 64, Fernando Henrique e Lula usaram a social-democracia para formar uma coalizão de esquerda e centro-direita, essencialmente. Com esse acordo, FH estabilizou o país e Lula incluiu alguns milhões de brasileiros no jogo democrático e econômico. A reeleição de Dilma Rousseff e os movimentos de rua de 2013 — as chamadas Jornadas de Junho, uma Primavera Árabe à brasileira — fertilizaram a extrema-direita, e com um empurrãozinho de conjunturas internacionais, Bolsonaro ascendeu de um polemista do baixo clero à presidência da República.

Além de contraditório, o país retrocede. O ódio freudiano nutrido na classe média contra as classes populares, externado em atos falhos na comparação de aeroportos com rodoviárias (Lilian Aragão, mulher de Renato Aragão, o Didi, comparou os aeroportos com rodoviárias: ‘parece rodoviária, né, gente?’) e críticas da ida de empregadas domésticas à Disney (Paulo Guedes, ex-ministro de Bolsonaro, disse que dólar alto era bom: 'empregada doméstica estava indo para Disney, uma festa danada!'), aliado ao crescimento de igrejas evangélicas com base na Teologia da prosperidade, deram a popularidade que Bolsonaro precisava e a fidelidade quase bovina de alguns seguidores.
Reprodução/Mídia Ninja


A insatisfação com os rumos econômicos do segundo governo Dilma e sua incapacidade de articulação com o Congresso, para além do ódio de classes cultivado e do cenário de saturação com o populismo petista, possibilitaram que a Nova República atravessasse outro processo de impeachment. Inevitavelmente, novas e severas rachaduras apareceram na democracia brasileira.

Semana de 22, Bossa de 60, Ditadura de 64 e Lula de 23
Os últimos 100 anos do Brasil foram de transições. A Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, tentou trabalhar uma nova imagem do país, que buscava entender ou retratar a transição de uma realidade eminentemente rural para grandes centros urbanos cheios de fábricas e problemas. A partir de uma estética inovadora inspirada nas vanguardas europeias, a Semana marcou a cultura do país.

Nos anos 1950-60 vieram as colheitas do que foi plantado em 22. O Brasil começava a se descobrir enquanto nação, e criava identidades próprias no futebol, na música, nas praias do Rio, no poder econômico de Sampa, nas riquezas amazônicas e na descoberta do cerrado com a construção de uma capital moderna e única, concebida por Oscar Niemeyer e disposta em forma de avião, com sua fuselagem no Eixo Monumental, com suas avenidas amplas, parques e a Praça dos Três Poderes.

Uma transição forçada e violenta afundou o país em mais de 20 anos de ditadura. Foi preciso reconstruir todas as bases de 22, colocadas em artigos na Constituição de 1988. A Nova República que se formou daí é tão problemática quanto transformadora — e outra transição. O SUS foi criado, um complexo sistema de educação foi iniciado, um continental território se integrou em alguma medida, o agronegócio se transformou em uma indústria de ponta e o 7º lugar das maiores economias do mundo foi alcançado.

O que não se conseguiu resolver e se mantém como fonte de muitos dos problemas estruturais do país é a desigualdade. A vida urbana se constituiu em miséria, violência, falta de estrutura, sistema educacional e prisional falidos e saúde precária. Se não bastasse, o mundo viveu a pior pandemia de nossa era e um regime de desinformação e ódio culminou em mais uma tentativa de golpe de Estado no último dia 8 de janeiro.
Lula III - mais do mesmo ou outra transição?
Lula III - mais do mesmo ou outra transição? / Agência Brasil


Para a nova transição que não apenas o Brasil mas o mundo atravessa, a alternativa que restou ao país escolher entre a manutenção da extrema-direita ou a volta ao poder de um líder popular e populista que tentaria promover outra conciliação de classes — e outra transição, mas essa essencialmente democrática. Embora o Lula III até agora tenha apresentado ‘mais do mesmo’, reedições de programas como Brasil Sorridente, Farmácia Popular, merenda escolar e o Bolsa Família conseguem promover impactos gigantescos e transversais no país. E buscam atenuar a desigualdade como mal originário.

O país de Tom Jobim rejeita principiantes por sua própria complexidade, mas começa a perceber que a fórmula de 1994-2006 não funciona mais. Incentivar carros populares movidos a combustão, explorar petróleo na Amazônia e apoiar ditaduras da América Latina não ajudam, em nada, um país que precisa — urgentemente — de uma nova transição tecnológica e informacional.

Para isso, será preciso se valer da boa estrutura tecnológico-científica que o Brasil possui (excelentes universidades e a Fiocruz, por exemplo), transformar espaços como a Amazônia e Pantanal em centros da economia do conhecimento. Além disso, promover infraestrutura fora do Sudeste e do Sul em hospitais qualificados, UTIs, estradas, portos e ferrovias modernas, desistindo de um subdesenvolvimento romântico imposto ao Nordeste.

Para que na Bossa Nova atual do mundo — o 5G e as Inteligências Artificiais — não sejamos apenas principiantes.
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Um presidencialismo manco e tricameral
04/06/2023 | 11h22
Algum estrangeiro, não conhecendo previamente nosso sistema político, que tivesse desembarcado no Brasil há duas semanas poderia facilmente inferir: o país vive um regime parlamentarista. Explico. 

O resultado apertado das eleições de 2022 foram determinantes para estabelecer uma relação tensa entre executivo e legislativo, este último eleito com maioria conservadora. Precisando de pacificação na Câmara, o presidente Lula se viu obrigado a apoiar a reeleição de Arthur Lira para presidente da Casa. Lira, por sua vez, quis manter seu status de primeiro-ministro —  cargo que foi "atribuído" a ele no governo anterior quando passou a controlar boa parte do orçamento federal. 

Mas o sistema político do Brasil não possui primeiro-ministro. Qualquer brasileiro — ou mesmo aquele estrangeiro que desembarcou há duas semanas — que resolva buscar a Constituição Federal de 1988 e fazer a leitura dos artigos 48 e 62, teria certeza: trata-se de um regime presidencialista. Mas a confusão inicial não é exatamente uma novidade no Brasil. 

As democracias liberais modernas entendem — por conceitos que vieram antes delas — que o poder deve ser limitado e compartilhado. Foi justamente o combate ao absolutismo que provocou os principais movimentos revolucionários e de emancipação no mundo — como a Revolução Francesa e a independência dos EUA.

Esses movimentos (e antes deles a obra do filósofo francês Montesquieu) prepararam os marcos do liberalismo e do ordenamento constitucional do Estado Liberal. A Constituição Brasileira foi construída com as mesmas bases, portanto separa obrigatoriamente os poderes em três, atribui funções específicas para cada um deles, e determina um legislativo bicameral.

Mas há no Brasil o que convencionou-se chamar de ‘presidencialismo de coalizão’, termo cunhado pelo sociólogo Sérgio Abranches que é um imbróglio político típico do Brasil, onde exige do presidente da ocasião negociar cargos, compartilhar poder e principalmente distribuir uma enormidade de dinheiro público para os parlamentares, via emendas.

Lira e as emendas de relator

Compartilhar poder e distribuir emendas não é, em essência, um problema. Democracias exigem que haja oposição ativa, e que o governo seja o mais plural possível, onde várias frentes atuem em conjunto. Mas para ser republicano como se deve, não se pode abrir mão da transparência.

Em 2020, com a criação do Orçamento Impositivo, as chamadas ‘emendas do relator’ eliminaram toda forma de transparência na alocação dos recursos. Naquele ano foi dado ao parlamentar relator da Lei Orçamentária Anual o direito de distribuir as emendas priorizadas pelo Executivo.
Esse instrumento foi batizado de “orçamento secreto” pois, diferentemente de outras emendas parlamentares, não havia qualquer critério definido para a distribuição ou destino do dinheiro, o que dificultava a fiscalização sobre a execução da verba. E eliminava a transparência. 

O deputado Arthur Lira passou a comandar o orçamento da União que passava pela Câmara. Na prática, Lira atuava como primeiro-ministro em um regime parlamentarista, onde o chefe de Estado e de Governo não ficam representados pela mesma pessoa.

Mas, em dezembro de 2022, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) consideraram inconstitucional a distribuição de recursos das emendas de relator. A maioria dos ministros do STF considerou que não havia transparência nem igualdade nos repasses. Com a decisão, passou a ser obrigatório a identificação do deputado ou do senador, e os repasses deveriam obedecer parâmetros de acordo com o tamanho das bancadas partidárias.

Marco temporal, MP dos Ministérios e o ‘pato manco’

Nas últimas semanas de maio todos esses elementos foram colocados à prova. Dois temas prioritários do governo Lula foram usados como demonstração de força da Câmara, com movimentações políticas que estremeceram os laços republicanos e a separação de poderes.
O primeiro foi a tramitação do projeto de lei que propõe que a demarcação de terras indígenas se restrinja àquelas ocupadas à época da promulgação da Constituição Federal, e que impossibilitava a ampliação de áreas já demarcadas. O texto foi aprovado pela Câmara no último dia 30/05.

O segundo tema foi a chamada ‘MP dos Ministérios’ (MP 1.154). Seguindo o artigo 48 da CF, Arthur Lira ameaçou a tombar a MP e fazer com que o governo Lula perdesse pastas essenciais. Ao todo 17 ministros perderiam seus cargos caso a MP fosse rejeitada pelos deputados. Após intensas negociações, com a participação direta do presidente Lula, e a liberação de R$ 1,7 bilhão em emendas parlamentares, a MP foi aprovada na Câmara, com votos favoráveis de 337 deputados e 125 contrários.

Lira tentou impor a Lula a imagem de ‘pato manco’ (a expressão lame duck é importada da política americana para se referir ao presidente em final de mandato que ainda está no cargo, mas com seu poder e prestígio esvaziados). Com apenas 6 meses de governo, onde ainda tudo por acontecer — inclusive nada —, o presidente da Câmara percebeu que Lula conta com bastante capacidade de mobilização e negociação, e se recusa a entregar o controle total do orçamento federal como fez o governo anterior.

Lula tem hoje uma situação muito mais confortável no Senado, que permite que haja contenção de danos nas derrotas. A questão do marco temporal, por exemplo, esbarra no aval do Senado para passar a valer, onde o governo pretende segurá-la.

Além do Senado, o STF é visto como último recurso em algumas matérias que o governo entende como prioritárias. Caso o Senado siga a Câmara e o marco temporal entre em vigor, há a possibilidade de ser considerado inconstitucional pela Corte. E o governo conta com isso para outros temas espinhosos no futuro.

A República sem conceitos

A ditadura militar (1964-1985) implodiu todas as bases democráticas que o país vinha construindo à duras penas. O atraso institucional e social imposto pelo regime cobrou seu preço, e os desajustes encarados hoje já poderiam ter sido resolvidos há bastante tempo.

O período chamado de Nova República ou Sexta República, que vivemos na contemporaneidade, construiu uma Constituição de forte amparo social com diretrizes que buscam tratar todo brasileiro de forma igualitária. Aspectos sociais, trabalhistas e político-institucionais foram modernizados e uma série de "Direitos e Garantias Fundamentais" foram instituídos, saudados como um dos mais modernos e democráticos do mundo.

Porém, uma série de desvios e interpretações foram corroendo as relações políticas e o equilíbrio entre os poderes. Há um problema conceitual na República Brasileira, fruto desses desequilíbrios.

Quando o governo usa o STF como esteio das decisões do Congresso, ele passa a contar com três câmaras legislativas. O sistema se corrompe, passando a um inexistente sistema 'tricameral'. Quando o Congresso controla boa parte do orçamento federal, ele passa a ocupar um papel que foi determinado para que outro poder o exercesse. Determinado pelo voto e pela Constituição.

Se o Brasil insistir na corrupção de conceitos, estará fadado a permanecer com suas mazelas, e transformar o jogo democrático em algo incompreensível para estrangeiros e brasileiros. Mesmo sendo essa incompreensão proposital para impedir a participação e cidadania, ela tratará de corroer as instituições até que elas se tornem inoperantes — ou mancas. E o resultado de instituições e poderes mancos é o absolutismo.
 
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Extrema-direita revolucionária e esquerda atrasada
27/02/2023 | 09h12
Se existe alguém do campo progressista — de esquerda — que esteja plenamente satisfeito com o cenário político atual, é preciso decepcioná-lo; não, não está tudo bem. A derrota de Jair Bolsonaro, a volta à presidência de um líder popular vindo da classe trabalhadora e a interrupção de um golpe de Estado em 8 de janeiro deveriam ser vitórias consideráveis, mas o buraco para o campo progressista é — muito — mais embaixo.

Mesmo com quase 700 mil mortes na pandemia, muitas causadas por ineficiência do governo anterior com o evidente desestímulo à compra e aplicação de imunizantes, Bolsonaro perdeu as eleições por apenas 2,1 milhões de votos, disputando com o maior líder de esquerda que o Brasil já produziu. Mesmo com todas as declarações desastrosas do ex-presidente, aumento substancial da desigualdade e o caos institucional provocado, os adeptos ao bolsonarismo continuaram com uma surpreendente adesão.

Sérgio Lima/AFP
Muitos fatores contribuem para isso. Alguns são mais perceptíveis, resultados de construções históricas do país e de movimentos políticos ao redor do mundo, como o colapso da democracia liberal, a ascensão de uma nova extrema-direita que tem o Brasil como laboratório, a indiferença social cultivada por anos — terreno fértil para a extrema direita — e os diversos casos de corrupção dos governos do PT.
E há também elementos subjetivos, como o aumento da ligação emocional de pessoas por muitos anos silenciadas que encontraram-se através das redes sociais e conseguiram nos discursos da direita radicalizada uma forma de ampliar sua voz, de serem efetivamente ouvidos. Além dos símbolos que a figura política e pessoal de um líder como Jair Bolsonaro costuma emanar.

O bolsonarismo é um movimento de massa. O diagnóstico do momento que o país atravessa passa por essa evidência. Embora esteja inflado por parte do empresariado e instigado por uma rede de comunicação criada, que engloba redes sociais e veículos de comunicação profissionais, abarcar cerca de 49% de eleitores demonstra que não é um movimento de classe média ou elitizado. Trata-se de um movimento de massa que consegue imprimir coletividade e senso de pertencimento em um enorme grupo de indivíduos. São pessoas que idealizam o líder carismático, em uma nuance narcísica, que o indivíduo passa a se ver no poder, compartilhando as mesmas fraquezas e inabilidades. Ou a visão de um "pai" que resolve os problemas, às vezes com grosseria e violência, mas que propõe soluções práticas aos problemas. O bolsonarismo tratou de humanizar Bolsonaro, para que esses elementos subjetivos consigam cumprir o objetivo de fidelização incondicional.

A democracia liberal que desde o século 17 apresenta soluções ao absolutismo e ao autoritarismo, e foi resultado de revoluções e movimentos de independência — caso francês e americano, por exemplo —, encontra-se em um momento perigoso, onde não oferece resultados práticos para os problemas estruturais em um mundo globalizado e com relações interdependentes entre os países. Essa possível falência do modelo também advém das promessas que a democracia não vem conseguindo cumprir, principalmente em igualdade de oportunidades e nos aspectos de liberdades individuais. Ora, quando o Estado falha na oferta de direitos básicos e a democracia precisa se proteger limitando liberdades, os efeitos pendulares provocam movimentos libertários que explicam, em alguma medida, a negação da ciência, da cultura e da educação formal.

Movimento de massa que passa a ser insurrecional

Os atos de 8 de janeiro em Brasília são a evidência catastrófica de que o bolsonarismo não se arrefece com a derrota eleitoral; ao contrário. Convencidos — ou não — de que as eleições foram fraudadas, o sentimento predominante em parte relevante do bolsonarismo é o de que a luta deve continuar, pois quem venceu a disputa é um inimigo, não um adversário. A insurreição, o ato de virar-se contra o sistema através de ações armadas ou com emprego de violência, mostra-se como outra fase do bolsonarismo, em última análise, outro momento da extrema-direita brasileira.
Insurreição em 8 de janeiro
Insurreição em 8 de janeiro / Reprodução
O bolsonarismo como movimento de massa — com a manutenção ou substituição de Bolsonaro — passa a ter uma caráter ainda mais revolucionário quando se encontra na condição de oposição ao governante da ocasião, principalmente quando esse se materializa na figura de Lula. Se antes a ideia era um autogolpe, para que amplos poderes pudessem ser delegados ao mandatário, para que ele na condição de “representante do povo” pudesse promover a limpeza ou as revoluções necessárias no sistema, agora a ideia é ainda mais forte: é preciso tomar o poder do inimigo.

(Continua na parte II: Identitarismo, soberba e silenciamento - a esquerda resistirá?)
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A Guarda Nacional, a Constituição e o art. 142
07/02/2023 | 09h09
Paris, julho de 1789. As ruas estavam ocupadas pelo Terceiro Estado — gente do povo e da burguesia não pertencentes à Igreja e à realeza. O objetivo era derrubar a monarquia absolutista francesa que governava a nação por séculos. Ideais iluministas derrubaram tradições aristocráticas e católicas, que davam lugar a novos princípios: Liberté, Égalité, Fraternité — liberdade, igualdade e fraternidade.

O que estava se desenhando nas ruas de Paris naquele final de século, mudaria o mundo definitivamente. O resultado de toda aquela agitação, sustentada por comerciantes ricos, políticos radicais e até por pequenos camponeses, foi o início de uma revolução que está na base de todas democracias liberais da atualidade. A Revolução Francesa e a Americana (deflagrada pouco antes) ofereceram os fundamentos do que entendemos por uma República Constitucionalista.

Porém, mudanças de regime e processos revolucionários — por sua própria natureza — não são feitos de forma pacífica. É preciso que armas sejam empunhadas, e um dos lados consiga impor seus desejos, para que o outro submeta-se a eles. Sem incutir juízo de valor e sem a dualidade inocente que venha definir “bem” e “mal”, é sempre pela força que esses processos acontecem na história.

Na revolução parisiense, foi necessário criar uma milícia, chamada de “Guarda Nacional”. O grupo paramilitar cumpriria dois objetivos fundamentais: a proteção contra os possíveis excessos de uma multidão revoltada e, principalmente, conter a investidas da nobreza e de suas tropas em retomar o status do Antigo Regime. A Guarda Nacional teria necessariamente controle civil, independência das tropas reais e capacidade de reação violenta, essencialmente para controle de ameaças internas, não invasões estrangeiras.
Revolução Francesa - 1789
Revolução Francesa - 1789 / Reprodução


No Brasil Império, nos anos 1830, foi criada uma Guarda Nacional com propósitos parecidos, mas que deveria proteger o status quo. À época, já éramos uma nação regida por uma Constituição, que havia sido promulgada em 1824, constituindo, portanto, uma monarquia constitucional. Essa, a que a Guarda Nacional deveria defender,  com poderes de forças armadas,  e pelo compromisso firmado de seus membros de sedimentar a tranquilidade e a ordem pública.

Esse novo braço armado que o Brasil estabeleceu, poderia participar todo brasileiro, entre 21 e 60 anos. Porém, era preciso possuir “direitos políticos” para tal, que eram garantidos basicamente pela condição financeira. Com essa exigência, o Império excluía qualquer possibilidade de uma participação efetivamente popular.
A Guarda Nacional se tornou uma milícia criada para proteger interesses específicos, manejadas por inclinações políticas, e agindo em entendimentos estendidos do que seriam transtornos à “ordem pública”.

Na prática, consolidou-se como um instrumento político militar das classes dominantes, agindo no reforço do poder local, principalmente nas pequenas cidades, dando sustentação aramada ao coronelismo e o clientelismo da oligarquias políticas, historicamente ligadas ao latifúndio e a escravidão.

A “nova” Guarda Nacional
Foto: Ricardo Stuckert


A Guarda Nacional, por aqui, terminou em 1918, durante a Primeira República. Foi absorvida pelo Exército. Mas o governo atual, via ministro da Justiça e Segurança Pública, deve enviar ao Congresso, ainda em fevereiro, um conjunto de propostas que está sendo chamado de “Pacote da Democracia”. Dentro dele, segue uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que pretende recriar a Guarda Nacional.
A proposta procura responder ao evento golpista de 8 de janeiro, onde as sedes dos três poderes foram invadidas e depredadas. O caos criado pretendia legitimar um golpe de Estado, e teve inicício com a complacência evidente de alguns integrantes da Polícia Militar do Distrito Federal (DF), que escoltaram os golpistas até os prédios públicos e confraternizaram com eles enquanto a destruição era feita.
Alguns meses antes, o Exército permitiu que milhares de pessoas permanecessem acampadas em zona militar, em frente aos quartéis, pedindo uma intervenção golpista e funcionando como células embrionárias dos atos de janeiro.

O Palácio do Planalto, sede da Presidência da República, é protegido não apenas pela Polícia Militar do DF. A missão é compartilhada com o Batalhão da Guarda Presidencial (BGP), também conhecido como Batalhão Duque de Caxias. Diferente da proposta da Guarda Nacional que o governo prepara, o BGP é uma unidade pertencente ao Exército, que conta com cinco Companhias de Infantaria de Guarda, cada uma com aproximadamente 200 soldados. Um trecho da música desse batalhão ressalta que “desde o império” ele representa uma “sentinela imortal”.

Durante a invasão de 8 de janeiro, o BGP não cumpriu sua atribuição primeira — fato inédito em sua longa história. Não havia efetivos para proteger o Palácio do Planalto, e apenas uma parte do batalhão foi acionada, mesmo assim depois que as sedes dos três poderes já haviam sido tomadas.
Reprodução


O cenário devastador de 8 de janeiro afetou ainda mais a confiança que governo e sociedade depositam nas Forças Armadas. Em um país que já sofreu golpes e viveu uma ditadura militar sangrenta por mais de 20 anos, a descrença de que o alto comando militar esteja definitivamente alinhado à preceitos democráticos é justificável.

A história — e os acontecimentos recentes — justificam a criação de uma Guarda Nacional, que não esteja subordinada ao Exército e que atue a favor da democracia. Porém, há amparo constitucional na Carta de 1988? A criação de outro braço armado resolve o abalo de confiança? A democracia brasileira depende de aparatos paramilitares para sobreviver?
As armas que vem da Constituição

A proposta de criação de uma nova Guarda Nacional está longe de ser um consenso, mesmo entre os membros do governo. Desperdício de dinheiro público, anacronismo e aumento desnecessário da tensão com o Exército estão entre os argumentos mais utilizados para impedir que a ideia prospere.


Com ou sem Guarda Nacional, a necessidade premente de uma discussão jurídica e social aprofundada em relação ao papel das Forças Armadas, continua. Quebrar o monopólio das armas não impedirá que os militares continuem a ambicionar o poder ou a cometerem insubordinações.

Militar da ativa não participa da vida política — essa é a regra nas democracias. Braços armados não podem interferir nas decisões políticas e costumeiras do país, pois quando o fazem, a balança de forças fica fatalmente desequilibrada. As Forças Armadas subordinam-se ao poder civil em um regime democrático por força constitucional, e é ela, a Constituição, que rege as relações e está acima dos poderes constituídos.

Um dos artigos da Carta Magna, o art. 142, é constantemente utilizado por golpistas numa tentativa de dar contornos legais ao intento. Porém, o legislador constitucional não previa no texto do artigo em permitir que o Exército atue como um poder moderador — vale lembrar que a última Constituição do Brasil foi escrita no pós-ditadura militar, em um processo de reabertura democrática.

Diz o art. 142: “As Forças Armadas (...) são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

A “garantia da lei e da ordem” proposta pelo legislador não confere ao artigo poderes de intervir na democracia. Até mesmo pela regulamentação que sofreu em legislação complementar no governo Fernando Henrique Cardoso. Além disso, o Supremo Tribunal Federal (STF) é a única instituição que tem a missão de interpretar — e guardar — a Constituição, não cabendo, portanto, às Forças Armadas esse papel.

Embora tenha supremacia sobre à República, a Constituição é um ordenamento jurídico criado por determinações humanas, e como tal não são imutáveis, tampouco possuem o condão de paralisar o tempo e as mudanças na sociedade que ela mesma ampara. O papel da Constituição não é a eliminação de conflitos, mesmo entre os poderes. A real função da Lei Maior é dirimir os inevitáveis conflitos através de princípios norteadores — esses imutáveis enquanto pactuados. 






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O que o Peru Livre deve ensinar ao PT
08/12/2022 | 11h20
Reprodução
José Pedro Castillo Terrones, agora ex-presidente do Peru, está preso, encarcerado na mesma prisão do ex-ditador peruano, Alberto Fujimori. Castillo foi deposto da presidência após tentar um golpe de Estado, nesta terça-feira (7).

O que foi tentado por Castillo nesta terça é o que a ciência política chama de “autogolpe”. Alguém investido de forma legal e democrática na presidência alega que não consegue governar em um Estado de Direito, que o congresso o persegue e que o judiciário está contra ele e o povo. Para isso, o governante precisa dissolver o parlamento, tornar impotente o poder judiciário e impor uma autocracia, onde só ele manda, onde apenas o presidente é o Estado.

A democracia do Peru agiu rápido e impediu que Pedro Castillo conseguisse seu intento. Foi destituído pelo Congresso, preso e teve asilo negado. A sua vice tomou posse, Dina Boluarte, e se tornou a primeira mulher presidente do país. O golpe de Estado de Castillo previa uma Assembleia Constituinte e tentou instaurar toque de recolher. Mas a democracia venceu.

Pedro Castillo é um professor peruano e líder sindical. Foi uma figura de destaque na greve dos professores de 2017. Concorreu à presidência pelo 'Peru Libre', partido de esquerda de base marxista, e teve uma vitória apertada contra uma candidata de direita, herdeira de Fujimori.

O partido de Castillo não hesitou em romper e condenar a ação golpista do líder. O Peru Livre entendeu o óbvio: golpe e autocracias não tem ideologia — não são de direita ou de esquerda. Um regime ditatorial pode ter qualquer coloração ideológica para o ditador.

No Brasil, o PT de Lula celebrou a vitória de Pedro Castillo, em 2021. O que não fez com Mauricio Macri, da Argentina, que é um político de direita. Ontem, quando Castillo tentou um golpe de Estado, Lula demorou a se posicionar, e quando o fez, em um comunicado oficial, iniciou dizendo que “é sempre de se lamentar que um presidente eleito democraticamente tenha esse destino”, mas que entendeu que “tudo foi encaminhado no marco constitucional”. Mas, em nenhum momento nomeou o que de fato foi: golpe de Estado.
E o Lula? E o PT?
Daniel Ortega e o então presidente Lula, durante visita do ditador ao Brasil, em 2010.
Daniel Ortega e o então presidente Lula, durante visita do ditador ao Brasil, em 2010. / Foto: Roosewelt Pinheiro/Agência Brasil
O PT parece ter dificuldade de reconhecer — com todas as letras e obrigações democráticas — que países vizinhos, com governos de esquerda, são ditaduras. Regimes como os que são impostos na Venezuela, Nicarágua e Cuba, não podem ser suavizados sob a ideia de “autodeterminação dos povos”. Não são regimes passíveis de relativização. São ditaduras que devem ser rechaçadas por qualquer líder político realmente democrático.


O problema maior é que passamos os últimos meses sob o risco real de um golpe de Estado no Brasil. O que estava no radar de Bolsonaro era justamente subverter o Estado brasileiro: fechar o Supremo e governar com o aval dos militares.
O que pretende os manifestantes em frente aos quartéis é exatamente o mesmo que Pedro Castillo tentou fazer no Peru. Se pudessem, o STF seria fechado, o Congresso estaria submisso e o Exército teria o aval de fechar veículos de imprensa e prender quem é de esquerda.

O PT tem a obrigação — dada pelo momento histórico — de impedir ao máximo qualquer corrupção no governo, e de defender a democracia cotidianamente. A cultura democrática precisa ser reconstruída no Brasil, e para isso, definir o que é ou não um regime democrático é fundamental.

O que o Peru Livre tem a ensinar ao PT é que não se negocia com a democracia. De esquerda ou de direita, um ditador é sempre um ditador. Se relativizar autocracias em outros países, estará dando um sinal perigoso ao Brasil.
Democracia é um valor abstrato, mas sem uma defesa constante, dá lugar a violência e repressão. Essas, bastante concretas.



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As cidades e a humanidade
01/10/2022 | 02h39
Ah, quem me dera ouvir de alguém a voz humana.

Mas não apenas uma voz que confessasse algum pecado, ou enxovalho. Mas uma voz essencialmente humana. Que tivesse defeitos, sim, mas que viesse a falar de suas qualidades sem cometer vitupério. Desse tipo, rara. Na política, ainda mais.

A política é uma atividade essencialmente humana. Desgastada, vilipendiada, demonizada, e ainda com personagens beatificados sem qualquer processo diocesano. Mas até por isso, humana.

“Culpado!”. “Inocentado!”— Julgamentos parciais feitos por juízes incompetentes, muitas vezes meros espectadores que se negam a dar um voto, um único apertar de teclas em urnas, mas que se colocam na condição de julgadores da moral alheia. Fariam diferente em seus lugares, sentados em suas cadeiras?

Príncipes na vida — todos eles.

Nós, humanos, escolhemos viver na polis, desde os tempos gregos. E nelas, nas cidades, na politeia, encontramos nossa humanidade. Nos deparamos com a reles, com a latrina, com a dor e a fome.
Atenas,  no período Arcaico, séculos VII – VI a.C., onde a sociedade da cidade era divida em castas: Eupátridas, Georgóis, Demiúrgos, Metecos e Escravos
Atenas, no período Arcaico, séculos VII – VI a.C., onde a sociedade da cidade era divida em castas: Eupátridas, Georgóis, Demiúrgos, Metecos e Escravos / Reprodução
Coletivistas, todos, somos forçados a combatê-las, mas somos levados como reses a aceitá-las. Passamos por irmãos deitados em calçadas das farmácias e não lhes compramos um remédio que seja; um “boa-noite” que lhe caiba. Rezes, irmãos. Precisarão das preces.

As cidades se unem e tornam uma grande coisa. Uma res publica — uma coisa pública. Grande polis, que uma vez formada, passa a depender tanto da política — essa, essencialmente humana e indesculpavelmente vil. Os políticos passam a condição de nobreza. Irrespondivelmente parasitas, acabamos por achar deles.

Ah, quem me dera ouvir de alguém político, a voz humana. Não estão no campo da humanidade, se refugiam em palácios e se acham príncipes de principados alijados da humanidade. Mas, fariam, os plebeus das polis, algo diferente se oportunidade tivessem?

Os plebeus têm sofrido enxovalhos calados. E quando não calam, são ridículos. Mais ridículos ainda são os falsos profetas ou os sacerdotes de um clero apócrifo. Os únicos que se mantêm agachados quando o soco vem — fora da possibilidade, do soco — são os que reuniram algum dinheiro.

Os burgueses, os endinheirados, a burguesia baixa, que só tem vantagem quando esta é pecuniária. Mas que vivem a sofrer a angústia das pequenas coisas ridículas. Aprisionados à limitação intelectual e à desumanidade.

Acabam por formar microscópicas polis, cercadas por grades e guaritas. Cidades fechadas para invasores humanos, mas com casas abertas, sem qualquer muro, para os que nela vivem. Decidiam por viver assim: sem voz humana, num oco pote de ouro, que se descasca, mesmo sem oxigenar.

Onde é que há gente? Onde é que há gente no mundo?

Estão na cidade, nos plebeus que fariam igual? Estariam no clero mentiroso? Onde há gente nos covis gradeados dos ricaços? Haverá humanidade nos semi-deuses da política?

Ah, quem me dera ouvir de alguém a voz humana. Mas, mesmo após o silêncio sepulcral de ruas pandêmicas, nenhuma voz humana ecoou. Pelo contrário. Sufocou-se ainda mais os que queriam os brados, mesmo absortos, dos humanos.

Sim, estamos fartos de semideuses. Mas nos assustamos quando nos deparamos com a voz humana; mesmo ela rara e desejada! Afinal, humanos apesar de tudo? Ou renunciaremos a humanidade em nome das diferenças? Nos esconderemos em casulos gradeados?

Seremos, todos, refugiados em um mundo que já foi essencialmente e demasiadamente humano. Mas, talvez, sempre haverá uma voz humana que resistirá. E gritará.



 
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Engodo, Ódio e Ressentimento
18/09/2022 | 11h24
General Bonaparte no Conselho dos Quinhentos, por François Bouchot. Paris, França.
General Bonaparte no Conselho dos Quinhentos, por François Bouchot. Paris, França. / Reprodução

Estavam marcadas as eleições presidenciais na República de Pindorama. Três candidatos estavam à frente das pesquisas: Engodo, Ódio e Ressentimento.

A população de Pindorama parecia estar mais decidida que nunca; um dos dois primeiros colocados ganharia a eleição. Engodo tinha uma relativa vantagem, era dono de um carisma nuca antes visto na história do país. Ódio vinha crescendo, mas parecia ter um problema em furar a bolha eleitoral que o apoiava, e teria atingido seu teto.

Ressentimento era o mais preparado, com um projeto consistente para Pindorama. Mas não conseguia convencer o número de eleitores suficientes para ganhar. Com uma linguagem tecnicista — com “t” de tapioca — e conceitos rebuscados, não ganhava a simpatia do votante.

Muito se discutia em Pindorama sobre o risco que representava a reeleição de Ódio. Havia razão de ser. Enquanto estava à frente do país, aprofundou-se na sociedade o desprezo pela vida humana e pela democracia. Cultura e educação estavam sofrendo ataques severos, com cortes no orçamento e desconstruções diversas. Milhões de pessoas em Pindorama estavam na miséria e episódios de violência estavam cada vez mais frequentes.

Mas apesar de ter muita rejeição, Ódio sabia como poucos instigar sua claque. Usava a estrutura do governo para fazer eventos de todos os tipos, onde sempre aparecia como alguém predestinado a estar ali e usava os inimigos coletivos imaginários do povo a seu favor.

Engodo, por outro lado, sabia que parcela ainda mais numerosa da população de Pindorama estava conseguindo ver os absurdos impostos por Ódio. E também usava isso a seu favor. Vendia-se como a única solução para aquela crise e operava politicamente no medo. Sua militância, também aguerrida, atacava Ressentimento e tentava a todo custo lhe impor a pecha de auxiliar de Ódio. Engodo já falava em regular a imprensa e se negava a apresentar propostas concretas.

Alguns analistas tentavam alertar que aquele, apesar de grave, não era o momento mais perigoso de Pindorama. O país já tinha atravessado um período de repressão sangrenta. Revoluções nos anos 1930, com um presidente havia cometendo suicídio duas décadas depois, atos institucionais extremamente repressivos, e ainda dois governantes máximos da República haviam sido depostos por processos dramáticos depois que o país foi redemocratizados. O alerta era de que certamente um processo eleitoral apenas não iria resolver aquela situação.

Era preciso mais política, não menos. Era preciso mais conscientização e não processos despolitizantes que queriam impor o voto por constrangimento ou medo. Mas a população de Pindorama não ouvia os analistas, não escutava quem ponderava, e o jogo havia se tornado essencialmente uma escolha de torcidas. E como todas, cegas.

No dia marcado as eleições aconteceram. Não sem traumas e atos violentos. Ódio tentava a todo custo desacreditar o sistema que ele próprio havia sido eleito, Engodo usava e abusava de sua flauta política para o encantamento de serpentes e Ressentimento destilava arrogância e altivez despropositada. Mas a votação aconteceu.

A apuração começou e a população de Pindorama estava ansiosa para o resultado. Quase todos em suas casas aguardando o anúncio final. A disputa estava favorável para Engodo e a claque de Ódio estava pronta para usar de violência, se aquilo se concretizasse como parecia. Ressentimento já falava em se abster e sua equipe de marketing se arrependia profundamente de ter usado uma charge em vídeo onde ele aparecia como o “Mestre dos Magos”, um personagem que sempre desapareceria em momentos cruciais.

Um pouco antes do anúncio derradeiro, um jovem anarquista black bloc pichava a parede do Tribunal Eleitoral: “Deus tenha misericórdia dessa nação”. A frase, oportuna para aquele momento, não era dele. Alguns anos antes o presidente da Câmara, Deputado Maracutaia, a havia dito.

Pindorama estava condenada a ver encenações de sua história se repetirem. As primeiras como tragédias; as segundas como farsas.
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Sobre o autor

Edmundo Siqueira

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